Entrevista a Matos Fernandes, ministro do Ambiente: “Portugal é um exemplo à escala mundial”



Será “sempre o rapaz” que era ministro do Ambiente quando Portugal foi o primeiro país no mundo a dizer “vamos ser neutros em carbono em 2050”.
Nesta entrevista à Green Savers, o ministro do Ambiente e da Ação Climática aponta algumas das prioridades e desafios da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia na área ambiental: a aprovação da Lei do Clima, a aprovação do regulamento sobre as baterias, o sublinhar da biodiversidade e do estado dos ecossistemas e a concretização dos Planos de Recuperação e Resiliência no que é o Acordo Verde Europeu.

Pela primeira vez temos um ministro que, para além do Meio Ambiente, assume no título da sua pasta a “Ação Climática”. Foi um cunho pessoal seu? Como surgiu?

Não, não foi, até foi vontade do primeiro-ministro e vou ser franco: para mim o nome “Ambiente” até é suficientemente vasto para albergar as competências – que são muitas – que este Ministério tem. Mas a partir do momento em que foram definidos os três eixos centrais da política deste governo – o combate à desigualdade, a transição digital e a ação climática -, até achei por bem que se utilizasse este sufixo.
Porém, se perguntarem o que é que eu sou e o que é que eu faço, eu respondo: sou ministro do Meio Ambiente.

Como define a presidência europeia no domínio ambiental?

Posso dizer-lhe que o mote é o da presidência portuguesa [do Conselho da União Europeia]: “Tempo de agir”. As grandes apostas são a aprovação da Lei do Clima, a aprovação do regulamento sobre as baterias, o sublinhar da biodiversidade e do estado dos ecossistemas – claramente o grande tema que vai emergir ao lado da mitigação ou redução de emissões – e por fim a concretização dos Planos de Recuperação e Resiliência, enquanto braço armado e financeiro fortíssimo do que é o Acordo Verde Europeu [Ecológico].

Quais são as grandes prioridades e os grandes desafios da presidência europeia neste domínio?

Aprovar a Lei do Clima, para que fique em lei a consagração da meta europeia, o primeiro continente que vai ser neutro em carbono em 2050. E já com metas exigentes, de acordo com aquilo que as próprias Nações Unidas sugerem, para 2030 – ou seja o de reduzir pelo menos 55% das emissões. Já o regulamento das baterias é fundamental porque é o primeiro regulamento de um produto que abrange todo o seu ciclo de vida. Isto é, quando normalmente se definem normas, por exemplo, para introduzir um produto no mercado, nunca há a preocupação na sede de regulamento sobre o que fazer a esse produto quando ele deixa de ser útil.

E portanto é muito importante, para que nada seja feito sem a perspetiva da reciclabilidade. Isso é fundamental para a economia circular. Nós temos de uma vez por todas de deixar de inserir produtos no mercado sem perceber o que vai acontecer quando deixamos de usar esses produtos. Eu presido a dois conselhos na UE: do Meio Ambiente e da Energia. Neste último, é de destacar o regulamento para as redes transeuropeias de transporte e de energia, que é fundamental e que iremos aprovar durante este semestre.

Mais fácil de aprovar parece-me ser o pacote dos químicos (dentro do pacote de poluição-zero), para que a Europa e o Mundo deixem de usar quaisquer produtos tóxicos naquilo que são, por exemplo, os seus processos industriais ou os seus processos agrícolas.

Qual é a posição de Portugal perante a polémica Carta da Energia?

Eu tenho de ser completamente franco e dizer que, claramente, a posição de Portugal é a posição de quem lidera a União Europeia, e por isso é uma posição de quem defende a existência da Carta da Energia. Isto é, eu não vejo vantagem em deixar de ter a Carta da Energia – tendo claro de reconhecer que este Tratado tem um grau de exigência muito débil em face daquilo que são os propósitos europeus e aquilo que são mormente os objetivos de Portugal.

Ou seja, a Carta da Energia para ser útil tem de ser muito mais ambiciosa, do que aquilo que é hoje. Percebo que Espanha e França, que não têm a responsabilidade que Portugal tem neste momento, digam “nós queremos abandonar”. Portugal não quer ter uma posição enquanto país, no sentido em que a maior polémica surgiu durante a nossa presidência e nós temos de assumir o papel da presidência, que é um papel de “honest broker”, e tentar fazer que a Carta da Energia seja o mais ambiciosa possível, mesmo reconhecendo que este é um trabalho árduo.

A revisão do Tratado está em curso e temos obviamente de ser mais exigentes com a limitação da emissão de partículas de CO2 feita pela produção de energia. Agora qual vai ser o final dessa decisão não sei, mas prefiro deixar para depois da presidência a conclusão da revisão da Carta da Energia do que fazê-lo já mas com metas pouco ambiciosas, se assim tiver de ser.

Como atrair o capital verde para África, o continente na mira da presidência da UE? O bloco europeu pode ajudar nesta matéria? Como?

Esta é uma pergunta muito interessante. Em primeiro lugar, há uma coisa que é indesmentível: nós temos de ter em África investimentos em prol da sustentabilidade. Nós somos 7 mil milhões de habitantes no planeta e as estatísticas indicam que em 2050 vamos ser 10 mil milhões, sendo que este crescimento será sobretudo em África. A economia africana tem de crescer bastante para poder dar satisfação àquilo que são as exigências normais dos cidadãos e isso implica, entre outras coisas, o aumento do consumo da energia.

O que não pode acontecer é esse consumo recorrer aos métodos do passado que são mormente o investimento nos combustíveis fósseis. Sendo a luta contra as alterações climáticas uma luta que ninguém ganha sozinho e que se alguém perder, perdem todos, mesmo aqueles que são exemplares, como nós – Portugal é um exemplo à escala mundial -, temos mesmo de nos focar no apoio e na partilha com África. Essa partilha tem de ser a negação do paternalismo, pelo que não se deve sequer utilizar o verbo “ensinar”, mas sim o verbo “partilhar”.

E com toda a franqueza, é óbvio que não se pode comparar aquilo que é o apoio do Fundo Ambiental com o que é o Fundo Verde das Nações Unidas – o primeiro é uma gota de água face ao segundo. Mas sei dizer onde está cada um dos projetos que o Fundo Ambiental apoiou em África, e qual o seu estado de execução ou maturidade. E não há aqui situações de ninguém a ganhar [ilegal ou ilegitimamente] com isto.

Se são 2 milhões de euros para 2020, são 2 milhões de euros concretos nos países com quem trabalhamos em conjunto. O Fundo Ambiental Português está a resolver problemas concretos: a falta de água em Maputo, projetos de apoio ao Parque Nacional da Gorongosa (que foi amplamente afetado pelo furacão que atingiu o centro de Moçambique há dois anos), a reestruturação da estrutura de ensino do único mestrado no mundo que é lecionado dentro de uma área protegida, projetos de apoio à proteção e educação ambiental na Tunísia, até projetos de recuperação de lixo, para pôr fogões a funcionar em São Tomé. São inúmeros os projetos que têm sido aprovados, todos eles muito concretos.

A próxima cimeira pode trazer a Índia para um acordo de neutralidade carbónica e diminuir o seu papel poluente no mundo?

Primeiro devemos saudar a Índia, porque a sua NDC (Contribuição Nacional) é muito ambiciosa. A Índia é um país super populoso, mas que tem recursos para se poder comprometer e dar um salto muito grande, não tanto no comportamento dos cidadãos, mas [sobretudo] das empresas – como é o caso da produção de eletricidade a partir de fontes renováveis. Apesar de não conhecer a agenda, este será um tema muito importante durante a cimeira.

E mais, Portugal vai ter um papel muito relevante dentro da Europa, no setor da água. As Águas de Portugal já estão a trabalhar com Goa, e temos de facto um know-how que pode interessar ao Estado indiano, para que a Índia transforme em projetos as vontades políticas que assume na NDC que apresentou no contexto do Acordo de Paris.

A seu ver, a taxa de carbono deve ser aplicada apenas ao setor petrolífero e energético, ou deve abranger outras atividades económicas responsáveis por emissões de Gases com Efeito de Estufa (GEE)?

A taxa de carbono deve ser aplicada a vários setores da economia, nomeadamente à indústria. Nós não podemos ter setores da economia que beneficiaram durante décadas de subsídios perversos para a produção de eletricidade, a partir de combustíveis fósseis. Porque é que terminou a central [termoelétrica] de Sines e vai acabar a do Pego? Por uma razão muito simples: porque a produç ão de eletricidade a partir de carvão em Portugal há 4 anos pagava 0 de ISP [Imposto Sobre os Produtos Petrolíferos], 0!

E bastou ter de pagar 50% do imposto para o negócio deixar de ser viável. Por isso, é óbvio que tem de haver justiça no pagamento de impostos, e depois tem de haver uma taxa de carbono que compense aquilo que são os custos ambientais da produção de eletricidade a partir de combustíveis fósseis. Essa taxa de carbono tem mesmo de ser generalizada, apesar de a aplicação ser muito complicada em setores difusos.

Como é possível ajudar o meio ambiente e ao mesmo tempo o bolso dos portugueses e restantes europeus, ao recorrer ao hidrogénio verde? Vai ser possível avançar com apoios para pessoas e empresas?

É preciso criar um mercado, e isso é evidente. O mercado tem regras e essas regras são transparentes, e permitem criar estabilidade para gerar investimentos. É verdade que o hidrogénio verde é mais caro que o gás natural, o seu maior concorrente, porém também é verdade que o hidrogénio verde é uma tecnologia não banalizada, pelo que quando isso acontecer o preço vai reduzir, assim como o preço do gás natural vai aumentar com o aumento da taxa de carbono.

Nós definimos cinco cadeias de valor na nossa estratégia para o hidrogénio verde. Uma delas é a injeção na rede. Está previsto desde o primeiro momento, e vai ser feita de forma absolutamente transparente e por leilão. O apoio não pensará em quem produz, mas em quem consome. Durante dez anos é de esperar que tenha de haver algum apoio à tarifa do hidrogénio verde, para que ele possa concorrer com o gás natural, nunca esquecendo que esse apoio se funda numa coisa muito importante que é o bem público maior, a descarbonização.

Dentro do bloco europeu, Portugal pode ser uma rampa de lançamento no setor da transição tecnológica e digital verde? Em que termos?

Portugal já o é, e a prova disso mesmo foram – para além dos 60% de eletricidade que produzimos a partir de fontes renováveis – os últimos leilões que lançámos, em que batemos dois recordes do mundo, o último abaixo de 11,50 euros por megawatt/hora. Isto quando o preço médio costuma ser entre os 45 e os 55 euros megawatt/hora, ou seja, a capacidade de investimentos tem por certo uma base de know-how tecnológico, porém isso não basta e por isso há de facto neste momento uma aposta e uma estabilidade legislativa e regulatória que fará certamente com que Portugal – que já hoje é uma referência para muitos destes setores- venha a sê-lo.

Nunca se esqueçam que Portugal foi o primeiro país no mundo a anunciar que seria neutro em carbono em 2050, e se isto representou uma ambição muito grande, não foi nenhuma aventura. Quando o primeiro-ministro disse essa frase, sabia muito bem o que estava a dizer e aquilo que isso implicava. Obviamente que eu não deixo de me sentir corresponsável por esse “statement”, mas sabemos muito bem que temos de reduzir 85% das nossas emissões desde 2005 para sermos neutros em carbono em 2050. Mas já reduzimos em 26% [até 2019] e acredito que os números de 2020 hão de ser muito positivos, ainda que obviamente inquinados pelo efeito da pandemia.

Que metas podem ser alcançadas na final da COP26, no final deste ano na Escócia?

Tenho a maior das expectativas. Por muito que a COP [25] de Madrid tivesse corrido bem, não era uma COP de grandes decisões e infelizmente as que tinha para tomar, não conseguiu. Já a COP de Glasglow é a COP [que acontece] cinco anos depois de Paris e, de facto, a cada cinco anos as COP são diferentes porque cada país ou cada região (no caso de Portugal, está integrado na UE) tem de apresentar um plano mais ambicioso.

Aliás, este é o segredo de Paris: é uma perspetiva multilateral em que cada um disse ao que vinha, em que nós sabemos que tomadas todas as contribuições nacionais (NDC) que foram apresentadas em Paris não chegamos ao 1,5ºC, nem mais ou menos; mas essa é a “base line”, onde nós podemos construir mais. Eu dou o exemplo europeu.

Em Paris houve uma enorme discussão entre os países europeus para lá chegar, comprometemo- nos a reduzir em 40% as emissões até 2030. Agora passámos, pelo menos, para 55%. E portanto, é fundamental que a COP de Glasglow corra bem e que de facto nós consigamos, com o somatório das NDC, ser capazes de ter metas mais ambiciosas do que as que foram definidas há cinco anos. Se querem saber qual a minha opinião, o tema “pickle” de Glasglow vai ser o financiamento verde. Cada vez mais, os países que foram menos ambiciosos há 5 anos estão a sê- lo agora. Isso é manifesto. As NDC são uma boa surpresa. Agora claro, a fatura está lá e essa fatura vai saltar para cima da mesa.

No seu entender, o que espera a União Europeia de Biden? E como pode a UE responder aos apelos do enviado presidencial para o clima John Kerry?

Espera que se concretizem as afirmações do Presidente Biden, que não podiam ser mais alinhadas com aquilo que nós pensamos. Assim como o Presidente Trump, tendo sempre uma linguagem errada de quem está do lado errado da história, não conseguiu na prática destruir muita coisa, porque é inimaginável um mundo com mais carbono hoje, e porque uma democracia como a americana é muito mais que a sua administração, e encontrámos nos EUA alguns dos Estados mais progressistas do mundo, mesmo durante a Presidência de Trump.

É óbvio que, por outro lado, houve uma série de coisas que ele inverteu que Biden não vai conseguir reverter com um “estalar de dedos”. É uma coisa que é curiosa, ao longo destes anos, mesmo assim, os EUA reduziram muito as suas emissões com a passagem do carvão para o gás. Tudo começa com o compromisso político – e com Joe Biden nomear John Kerry para uma espécie de embaixador do clima. John Kerry é um homem muito conhecedor destas matérias, foi ele que assinou o acordo de Paris, em Nova Iorque em Abril de 2016.

E portanto, “bem-vindos”, EUA, à liderança deste projeto. Apesar de quem lidera ser a Europa, aprovar a Lei do Clima terá uma dimensão para lá da política, mas queremos muito estar acompanhados neste combate. E os Estados Unidos são fundamentais para tal, enquanto grande economia mundial, pelo que representam em termos de emissões líquidas e também pela capacidade de influenciar outros países.

Entrevista publicada originalmente na edição impressa da Green Savers – Edição Março





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