Entrevista: Proteger os oceanos é uma questão de sobrevivência. Projeto internacional vai instalar primeiros recifes artificiais em Portugal



Proteger os recifes de coral da degradação causada pelos impactos das atividades humanas é uma questão de sobrevivência de toda a vida na Terra. Foi essa constatação que levou a The Reef Company e a IBM a unirem esforços para ajudar na recuperação e conservação dos recifes em todo o mundo, incluindo Portugal.

Os recifes de coral são ecossistemas complexos, altamente biodiversos e que existem num delicado equilíbrio. Apesar da grande diversidade de vida que suportam lhes conferir uma resiliência a mudanças ambientais que outros ecossistemas não têm, os recifes são, no entanto, suscetíveis às consequências da forma como nós, humanos, temos lidado com o planeta: poluição, aumento da temperatura das águas marinhas, acidificação, pesca excessiva, sobre-desenvolvimento das áreas costeiras.

Os recifes de coral albergam cerca de um terço de todos os peixes do mundo e são habitats de grande biodiversidade, rivalizando com as florestas tropicais no que toca à abundância de espécies.
Foto: Sirrob01 / Wikimedia Commons

Além de serem a casa de milhares de espécies de peixe, albergam perto de 700 espécies diferentes de corais e muitas mais de plantas e outros animais. E fornecem serviços de grande importância para as comunidades humanas, especialmente as que vivem em zonas costeiras, como proteção contra o embate das ondas e redução da erosão, bem como alimento e modos de subsistência para milhões de pessoas por causa de atividades económicas como o turismo.

E não nos devemos esquecer de que é nos oceanos que é produzido perto de metade de todo o oxigénio presente na nossa atmosfera, sendo que parte dele é gerado pelas pequenas algas que vivem nos recifes, protegidas dos predadores.

Contudo, os recifes estão entre os ecossistemas mais ameaçadas em todo o mundo, sendo que se estima que desde a década de 1980 cerca de metade tenham desaparecido, e tudo indica que, à medida que os oceanos se tornam mais quentes e ácidos, e não foram tomadas medidas para protegê-los e evitar cenários catastróficos, até ao final deste século as perdas podem chegar aos 90%.

Foi a consciência da urgência de agir já para assegurar um futuro melhor que levou à parceria entre a IBM e a The Reef Company, que fará de Portugal o primeiro país do mundo a ter recifes de coral artificiais concebidos a partir de materiais desperdiçados por setores como o da construção e que têm o potencial para sequestrar dióxido de carbono ao mesmo tempo que revitalizam a biodiversidade marinha.

Antes de olharmos para o Espaço, devemos primeiro cuidar da nossa casa comum

Jeroen van de Waal, CEO da The Reef Company, contou à ‘Green Savers’, em entrevista presencial exclusiva, que a humanidade tem pela frente “um desafio enorme” para revitalizar e proteger os ecossistemas. Grande tem sido o investimento feito nos últimos anos para abrir o Espaço ao turismo e para explorar a ideia de uma colonização humana de Marte, mas para o empresário holandês “primeiro temos de revitalizar o planeta Terra”, para garantir que as futuras gerações têm “uma vida boa”.

Depois de no final do ano passado, na cimeira global da biodiversidade (COP15), no Canadá, os governos do mundo terem assumido o compromisso de travar e reverter a perda de biodiversidade e de proteger 30% dos habitats, a parceria, de âmbito global, entre a IBM e a The Reef Company pretende precisamente impulsionar esses esforços.

Coral ‘branqueado’ após expulsão de algas simbióticas. O branqueamento dos corais, fruto da exposição a fatores de stress como o aumento da temperatura marinha e a acidificação causada pelo excesso de carbono dissolvido, é uma das principais ameaças à sobrevivência dos recifes e de todas as formas de vida que eles albergam.

O objetivo é construir entre 2.500 e 7.500 recifes artificiais, com cerca de 50 quilómetros quadrados cada um, em várias regiões do mundo, para “ajudar a revitalizar os oceanos”, explicou Jeroen van de Waal, recordando que “70% de tudo neste planeta” depende desses ecossistemas.

O empresário considera que não podemos apenas focar-nos na conservação das florestas, e que é preciso olhar também com muita atenção para o que se passa abaixo da superfície marinha, pois é aí que, segundo ele, “a magia acontece”.

Reconhecendo que sem investimento não é possível fazer muito, a The Reef Company tem procurado firmar parcerias com as maiores empresas mundiais. “Eu não consigo sozinho levantar um bilião de dólares para construir cinco mil recifes de 200 milhões de dólares cada”, admitiu Jeroen van de Waal, apontando que é aí que entra a IBM, que tem trabalhado ao longo de anos com as empresas da Fortune 500 e para a qual projetos de recuperação dos ecossistemas não são novidade.

Ricardo Martinho, presidente da IBM Portugal, recordou que a ideia de constituir uma parceria com a The Reef Company surgiu precisamente durante a Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos, que decorreu no verão passado em Lisboa. “Vimos logo que esta era uma ideia brilhante”, afirmou, “que iria ajudar a mudar o nosso planeta de uma forma muito mais rápida e eficaz do que qualquer outra iniciativa que possamos ter”.

Para o gestor português, o papel dos oceanos na vida na Terra não pode, nem deve, ser subestimado, e é preciso reforçar a sua recuperação e travar os sucessivos ataques de que tem sido alvo ao longo dos últimos séculos. E as empresas têm um papel central a desempenhar, pois ao aliarem-se a projetos como este podem não só melhorar a sua imagem perante o público, mas ser agentes diretos da conservação da Natureza.

Cascais e Comporta serão as primeiras localizações em Portugal a ter recifes artificiais

Jeroen van de Waal explicou-nos que, de acordo com os números do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), só para compensar as emissões de dióxido de carbono que lançamos atualmente por ano na atmosfera serão precisos entre 2.500 e 7.500 recifes. “O desafio é enorme”, admitiu, mas está confiante de que é uma ambição concretizável.

Portugal será o primeiro país a receber os recifes artificiais da The Reef Company. No início de junho, a empresa recebeu as primeiras licenças para duas concessões, uma na Comporta e outra em Cascais, na zona da Boca do Inferno. A escolha desses dois locais foi motivada pela constatação de que as águas marinhas que banham essas costas estão praticamente desertas no que toca à presença de animais e de plantas.

O da Comporta seria o maior recife artificial do mundo, com cerca de 50 quilómetros quadrados. Por outro lado, o de Cascais assumiria a forma de um “laboratório subaquático”, revelou o holandês, aberto a todas as universidades e centros de investigação de Portugal e do mundo, onde poderão observar e estudar o recife em tempo real.

Além disso, o recife cascalense servirá também um propósito de educação e sensibilização da população, bem como de transmissão de conhecimento para as próximas gerações, com atividades como mergulho “para observar o que nós fizemos debaixo de água e como tudo está a funcionar”.

Uma terceira concessão está planeada para a Madeira, cuja licença deverá ser emitida no próximo mês de agosto.

Se tudo correr como planeado, os primeiros recifes deverão ser instalados nas águas portuguesas entre abril e maio do próximo ano, mas a The Reef Company está já a desenvolver uma série de trabalhos essenciais à colocação dos recifes, como o mapeamento do leito marinho, por exemplo.

“Portugal será o primeiro país do mundo a ter este tipo de projeto”, afiançou.

Reaproveitar materiais desperdiçados para criar uma economia circular marinha

“Tudo o que estamos a fazer neste planeta tem betão e cimento, e não estamos a reciclar este material”, salientou Jeroen van de Waal, apontando que entre 10% e 12% de toda a energia produzida globalmente é consumida para gerar esses materiais, com “um output de carbono enorme”.

Além dos benefícios para a biodiversidade marinha, a The Reef Company quer que os seus recifes possam ajudar a atenuar as emissões de carbono lançadas na atmosfera, pelo que os módulos que servirão como ‘corais artificiais’ serão concebidos com materiais considerados como resíduos, dando-lhes uma segunda vida e reduzindo o desperdício e as emissões.

“Vamos produzir módulos que consomem 70% menos energia e produzem 70% menos emissões de carbono”, avançou o empresário, revelando ainda, embora ainda sem muitos detalhes, que a The Reef Company está a trabalhar com uma empresa de captação de dióxido de carbono atmosférico e a produzir nanofibras de carbono, que são duas mil vezes mais fortes do que o kevlar.

Jeroen van de Waal afirmou que “o nosso sonho é, no futuro, injetar essas fibras de carbono no nosso material reciclado para reforçar ainda mais os módulos”. Assim, conseguir-se-á um “duplo efeito”: o sequestro de carbono e o reforço dos recifes artificiais para prolongar a sua vida útil.

Os módulos que darão forma a este novo tipo de recifes serão produzidos localmente, a partir de matérias-primas recolhidas nos países em que são instalados e com trabalhadores desses locais. Esse é outro dos pontos que orienta a parceria entre a The Reef Company e a IBM: mitigar a desigualdade económica e social.

Ainda, a tecnologia de produção dos módulos será disponibilizada a todos, procurando alavancar as economias locais e transferindo o poder produtivo para as comunidades abrangidas pelo projeto.

Depois de o recife estar instalado, “vamos criar turismo e pesca sustentável”, que também reforçarão e tornarão mais sustentáveis as economias locais, sobretudo das comunidades costeiras, que atualmente representam mais de metade da população mundial.

Aliar a tecnologia à conservação dos oceanos

Para que a iniciativa de recuperação e conservação dos habitats marinhos a que estas duas empresas se propõem seja bem-sucedida, são precisos dados cientificamente robustos e confiáveis. Para isso, esses recifes artificiais estão também munidos de uma panóplia de dispositivos e sensores que medirão indicadores ambientais como a temperatura da água, a salinidade, o pH e o oxigénio e carbono dissolvidos.

Para além dos equipamentos se serão fixados ao fundo do mar, serão também usados drones subaquáticos e dispositivos flutuantes, sendo que “todos eles vão recolher, em tempo real, dados sobre os oceanos”, afirmou Jeroen van de Waal. Todos os dados serão depois encaminhados para a plataforma cloud BluBoxx, da The Reef Company, onde serão cruzados com o que são recolhidos por satélites, criando o que disse ser “a primeira rede de satélites subaquática do mundo”.

Proteger e revitalizar os recifes de coral é fundamental para garantir a recuperação da biodiversidade marinha, bem como para assegurar a subsistência de muitas comunidades humanas que dependem dos oceanos para a alimentação e como fonte de rendimento. Foto: David Clode / Unsplash

Isso permitirá “reforçar e acelerar o conhecimento sobre o que está a acontecer em baixo de água”, explicou, destacando que o papel da IBM será fundamental para assegurar a fiabilidade dos dados recolhidos pelas tecnologias.

E essa credibilidade e transparência perante o público, e investidores, é indispensável, pois Jeroen van de Waal considera que existe hoje uma proliferação de branqueamento das responsabilidades de algumas empresas e organizações, através de greenwashing e bluewashing, “e nós não temos nada a ver com isso”.

Ricardo Martinho disse que a parceria com a The Reef Company está a mobilizar não só tecnologias que a empresa já tem no mercado, como a Environmental Intelligence Suit e o watsonx, “mas estamos a criar nova tecnologia específica para este projeto”.

O gestor português acredita que aliar a tecnologia de ponta e certificada a um projeto deste tipo garante uma visão muito mais fidedigna e rastreável dos seus resultados e impactos, e torna todo o processo muito mais transparente e responsabilizável. Ricardo Martinho apontou que hoje podemos ver desencontros entre os dados recolhidos por várias plataformas sobre uma mesma porção de floresta ou de mar, pelo que é importante uniformizar e otimizar a forma como se recolhem esses dados através de tecnologias reconhecidas como fiáveis.

“Com esta parceria vamos poder colocar a nossa tecnologia e a nossa expertise ao serviço de uma grande ideia”, afirmou. “Vamos retirar todas as informações dos oceanos e usá-las da melhor forma para podermos protegê-los.”

Conhecer os oceanos para reduzir impactos e alcançar uma maior sustentabilidade

A The Reef Company e a IBM querem criar modelos fundacionais, credíveis e transparentes, a partir dos dados recolhidos pelos sensores associados aos recifes artificiais, e “disponibilizá-los a quem quiser usá-los”, disse-nos Ricardo Martinho, por exemplo, para informar investigações científicas ou para ajudar as empresas a reduzirem os seus impactos ambientais.

Com essa tecnologia, será possível criar bases de referência para os recifes artificiais e, a partir delas, avaliar a evolução dos impactos dessas estruturas, como na produção de biomassa e inputs nas áreas marinhas circundantes, na captura e carbono e na libertação de oxigénio.

A pesca sustentável pode também vir a ter lugar nestes recifes. Jeroen van de Waal disse que, por exemplo, é possível que nos 50 quilómetros quadrados de recife, 10 possam acolher atividades piscatórias durante um ano, sendo que no ano seguinte outros 10 serão disponibilizados, permitindo que as restantes áreas possam recuperar.

“O recife terá sempre um ‘pulmão’ para recuperar” e “tudo isso tem de ser medido”, explicou o holandês.

“O nosso planeta está numa trajetória de declínio, e sabemos que se não fizermos nada os nossos filhos e os nossos netos terão vidas cada vez piores”, avisou Ricardo Martinho, responsável da IBM Portugal.

As câmaras implementadas nos módulos podem também permitir aos professores levarem as suas turmas em visitas subaquáticas em qualquer parte do mundo sem deixarem as salas de aula através de óculos de realidade virtual.

Os dados recolhidos e o conhecimento gerado podem também ajudar a orientar políticas de conservação mais bem informadas e sustentadas, pelo que as aplicações são tantas quanto maior for a imaginação, aliando a economia à biodiversidade.

“Estamos a lançar uma economia que hoje não existe, e aposto que essa economia poderá gerar 100 biliões de dólares”, acredita Jeroen van de Waal, reiterando que “toda a vida no planeta depende dos oceanos”.

Reconhecendo a chamada ‘economia azul’, baseada no mar e nos serviços e recursos por ele disponibilizados, como de grande importância para podermos alcançar uma relação mais sustentável com o planeta, o holandês disse que “depois de ter trabalho 30 anos no mercado comum, estou muito cansado de promessas vazias”. Para ele, precisamos de compreender realmente o que é essa ‘economia azul’ e colocá-la ao serviço da proteção da Terra, porque com a deterioração e destruição de ecossistemas e com a redução da biodiversidade, não há economia que resista.

Jeroen van de Waal e Ricardo Martinho lamentam que hoje se fale muito sobre a urgência de proteger o planeta, mas que muito poucas ações, devidamente estruturadas e consequentes, sejam realmente tomadas. E consideram que este projeto é uma medida proativa para proteger e revitalizar o que ainda temos para que não seja perdido no futuro.

“O nosso planeta está numa trajetória de declínio, e sabemos que se não fizermos nada os nossos filhos e os nossos netos terão vidas cada vez piores”, avisou o responsável da IBM Portugal.

“Há uma necessidade tremenda de fazermos alguma coisa em prol deste nosso planeta”, apontou, e “se não agirmos agora, os danos serão irreversíveis”.





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