Fatos feitos de borracha natural certificada podem revolucionar mundo dos desportos aquáticos



É na comuna francesa de Hendaia, na costa sudoeste de França e a cerca de 10 minutos de carro da fronteira com Espanha, que pode estar a nascer uma revolução da relação entre os desportos aquáticos e o planeta Terra.

Durante décadas, as práticas de desportos como o surf e o bodyboard ou de atividades como o snorkeling têm dependido fortemente de fatos e de outros equipamentos de vestuário desportivo feitos a partir de neopreno, uma borracha sintética criada a partir do petróleo ou, menos frequentemente, do calcário.

Atualmente, de acordo com a associação ambientalista WWF, perto de 70% de toda a borracha usada é sintética, que, proveniente de combustíveis fósseis ou de origem mineral, é insustentável e é prejudicial à Terra e aos habitats e ecossistemas. Algo especialmente preocupante numa altura em que a perda de biodiversidade e as alterações climáticas são consideradas duas das grandes crises planetárias dos nossos tempos.

Centro de Desportos Aquáticos da Decathlon, em Hendaia, França.

Mas é precisamente em Hendaia que a Decathlon está a desenhar o futuro dos desportos aquáticos. A marca francesa de produtos desportivos quer virar a página do neopreno e fazer fatos e outras peças de vestuário a partir de borracha completamente natural extraída de árvores de florestas certificadas pelo Forest Stewardship Council (FSC) e pelo Programa para o Reconhecimento da Certificação Florestal (PEFC).

A mudança resulta de uma parceria com a empresa norte-americana Yulex, que permitiu aos especialistas da Decathlon ir mais além na conceção e produção de fatos aquáticos totalmente feitos a partir de borracha natural de florestas certificadas. Assim, surgiu o Yulex 100, que, de acordo com a marca, é o primeiro e para já o único material alternativo ao neopreno que não contém um grama de borracha sintética.

Numa primeira fase, o Yulex 100 está a ser usado para produzir fatos aquáticos curtos para crianças e camisolas de adulto para snorkeling e mergulho. Com a entrada deste novo material nas lojas, incluindo nas portuguesas, a Decathlon descontinuou as versões em neopreno. O objetivo é, eventualmente, deixar de vender fatos e outras peças em neopreno e comercializar somente produtos em borracha natural certificada.

Camisola de snorkeling para adulto e fato para criança feitos em Yulex 100. Por agora, apenas esses dois produtos são feitos totalmente com borracha natural certificada e sem neopreno, mas a Decathlon planeia estender a solução a todos os seus fatos para desportos aquáticos, com cinco novos produtos a serem lançados em 2025.

Para 2025, está planeado o lançamento de outros cinco produtos feitos totalmente a partir de borracha natural certificada, livres de neopreno.

Da floresta…

A borracha natural usada no Yulex 100 provém de florestas de árvores do género Hevea localizadas no Vietname e na Tailândia. Sabendo que a destruição de florestas para fins comerciais é um dos principais motores da perda de biodiversidade, e também das alterações climáticas, mesmo que a borracha seja natural, se não for assegurado que as árvores que a produzem não foram plantadas propositadamente para a extração dessa matéria-prima em substituição de florestas já existentes, a sustentabilidade acaba ser inalcançável.

Contudo, em entrevista à Green Savers em Hendaia, Anna Turrel, responsável global de sustentabilidade da Decathlon, assegurou que a borracha que usam é originária de florestas que já existem, que foram certificadas pelo FSC e pelo PEFC, garantindo, dessa forma, que não há desflorestação.

“Estas certificações são uma garantia de que as Heveas não foram plantadas em lotes de terra resultantes de desflorestação de florestas primárias”, diz Turrell, acrescentando que asseguram também que não há uso de pesticidas e que os silvicultores são remunerados de forma justa pelo seu trabalho.

Por norma, as florestas certificadas de Hevea para extrair de borracha são desenraizadas ao fim de 30 anos, altura em que a produção de borracha por hectare começa a decair e, com isso, o rendimento que delas se consegue obter. Ainda assim, é-nos garantido que a madeira dessas árvores é reaproveitada para fazer artigos de mobiliário e que algumas são trituradas e os seus fragmentos são deixados no terreno para fertilizar o solo e fazer nascer a próxima geração de Heveas.

Extração de borracha natural de uma árvore do género Hevea.
Foto: Dinkum / Wikimedia Commons

Essas árvores evoluíram em habitats quentes e húmidos, daí serem mais abundantes, por exemplo, nas florestas tropicais do sudeste asiático e também da América do Sul. Por isso, transferir essas plantações para a União Europeia, onde as regulações ambientais são rigorosas do que noutras regiões do mundo, poderá ser difícil, pelo que a certificação é fundamental.

“Teoricamente, será possível plantá-las noutras partes do mundo, e com as alterações climáticas temos visto mudanças nas origens de produção da borracha natural”, disse Anna Turrell, mas, pelo menos no futuro próximo, a borracha continuará a vir de florestas mais perto do equador.

…para o mar

Foram precisos dois anos e meio para que os especialistas conseguissem afinar a fórmula para criar o Yulex 100. Olhando para o caminho percorrido, Julien Cazelles, um dos engenheiros da Decathlon responsável pelo desenvolvimento dos fatos com Yulex 100, recordou que “a ideia era encontrar uma alternativa sustentável ao neopreno” sem afetar a funcionalidade do produto e, claro, o preço a ser pago pelos compradores. Fontes da empresa disseram-nos que os preços dos novos artigos em Yulex 100 serão exatamente iguais aos das versões anteriores em neopreno.

Já existiam no mercado algumas alternativas, ainda que parciais, à borracha sintética, com 85% de borracha natural e 15% de neopreno. “Mas queríamos ir mais longe”, apontou o especialista.

Era já sabido que o neopreno, por derivar do petróleo, tinha impactos ambientais significativos. Por que razão demorou tanto tempo a surgir uma alternativa? Cazelles explicou-nos que o principal desafio foi dotar os artigos de borracha natural da mesma resistência dos que são feitos com o material sintético. Depois de “inúmeros testes em laboratório” foi possível, por fim, chegar a uma solução em borracha natural totalmente livre de neopreno e com a mesma resistência e a mesma durabilidade. “Não teríamos desenvolvido o Yulex 100 se não fosse tão bom quanto o neopreno”, salientou.

A primeira gama de fatos aquáticos com Yulex 100 já está nas prateleiras, mas para que essa revolução possa realmente ter um impacto significativo e positivo no planeta é preciso estender a solução a todos os fatos. No entanto, alguns desportos e atividades aquáticos podem levantar obstáculos maiores do que outros, como mergulho de profundidade e atividades em águas frias.

“A borracha natural tem os seus limites”, reconheceu Cazelles, indicando que alguns desportos exigem fatos próprios para ambientes aquáticos com pressões mais elevadas do que as que se sentem em atividades realizadas à superfície da água. Contudo, o especialista recordou que se trata de um caminho que está a ser percorrido e que há não muito tempo não se pensava que uma solução totalmente natural fosse capaz de oferecer a mesma performance que a sua versão em neopreno.

A produção de produtos em borracha natural permite também reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, como o dióxido de carbono (CO2). “Esse foi o objetivo da mudança para borracha natural”, afirmou Cazelles, indicando que a produção do Yulex 100 representa uma redução de 80% nas emissões de CO2 comparativamente ao neopreno.

Plage d’Hendaye, no sudoeste de França.

Stephane Saigre, diretor do departamento de desportos aquáticos da Decathlon, revelou que, embora o processo de investigação e criação que resultou no Yulex 100 ter começado há cerca de dois anos e meio, a ideia de criar uma alternativa ao neopreno esteve sempre presente. “Tem sido uma maratona”, comentou, observando que “esses sonhos tornaram-se realidade quando, um dia, conhecemos a Yulex”.

Uma parte curiosa do processo de criação dos novos fatos tem por base a observação direta dos praticantes de desportos aquáticos. A estratégia da Decathlon de localizar os centros de conceção das diferentes atividades em locais onde essas atividades são praticadas permite uma aproximação ao público-alvo. O centro de desportos aquáticos, em Hendaia, tem uma vista desafogada para as praias do Golfo da Biscaia, estando a uma caminhada de nove minutos da Plage d’Hendaye, onde as equipas técnicas podem ver como os desportistas usam os equipamentos e identificar soluções para responder às suas necessidades.

Um caminho que se faz caminhando

O surgimento do novo material Yulex 100 enquadra-se na estratégia de sustentabilidade da Decathlon, que almeja ser neutra em carbono até 2050 e alcançar nos próximos seis anos uma redução de 42% das suas emissões absolutas de CO2 face aos níveis de 2021.

Anna Turrell espera que a mudança lançada pela marca francesa provoque uma transformação mais abrangente da indústria dos desportos. “Queremos liderar pelo exemplo”, disse a responsável, admitindo que “nem sempre conseguimos acertar completamente”. Mas assegurou que a empresa quer garantir que toda a sua cadeia de valor se orienta por esses mesmos princípios de redução dos impactos negativos sobre o planeta, salientando que a certificação das matérias-primas é importante, mas deve ser suportada pela rastreabilidade e transparência relativamente às origens e à forma como são produzidas.

“Os consumidores são hoje muito mais ambiental e socialmente conscientes do que alguma vez foram, especialmente os mais jovens”, afirmou a responsável, referindo que “adorava que nós fôssemos um farol para liderar o resto da indústria”.

“Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas, aos poucos, estamos a percorrê-lo”.

 

*O jornalista viajou até Hendaia (França) a convite da Decathlon.





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