Genes de cão podem ter ajudado o lobo-ibérico a adaptar-se à forte presença humana na Península Ibérica



O lobo-ibérico (Canis lupus signatus) divergiu do seu antepassado lobo-cinzento (Canis lupus) há cerca de 10 mil anos. Foi também por essa altura que os humanos começaram a transformar profundamente a face do planeta com o advento da agricultura, com a domesticação de animais e de plantas.

Desde então, as vidas de lobos e Homo sapiens têm estado inextricavelmente entrelaçadas, especialmente em relações de competição, algo que levou à perseguição e até à extinção local de várias populações lupinas pelo mundo fora, incluindo na Europa. Aliás, o célebre naturalista espanhol Félix Rodríguez de la Fuente, conhecido como o “Amigo dos Animais”, um grande defensor dos lobos e um dos fundadores da WWF Espanha, sentenciou que “o lobo transformou-se num proscrito, num fora-da-lei, quando o homem se tornou agricultor e pastor”.

Terá sido então, segundo ele e muitos outros, que a coexistência entre lobos e humanos tornou-se quase uma relação de soma zero, na qual a presença de um era vista como incompatível com a presença do outro.

No entanto, os lobos-ibéricos, isolados na península europeia mais ocidental, mantiveram-se relativamente a salvo das grandes campanhas de extermínio que procuravam apagar o predador das paisagens europeias. Apesar de a população ibérica de lobos ter sofrido também, sem dúvida, fortes declínios, atingindo um pico na década de 1970, as perdas não foram tão acentuadas quanto noutras regiões do continente e a subespécie continua a resistir.

Um dos segredos dessa extraordinária capacidade de sobrevivência reside na habilidade que os lobos-ibéricos têm para se conseguirem adaptar a paisagens altamente humanizadas, conferindo-lhes uma resiliência que lhes permitiu persistir mesmo apesar da forte presença humana e de todas as transformações daí resultantes nos habitats naturais desse canídeo selvagem. E tudo terá começado há uma mão-cheia de milhares de anos, quando um lobo-ibérico e um cão se cruzaram.

ADN de cães ajuda lobos a prosperar na Península Ibérica

Os cães (Canis familiaris) terão começado a divergir dos lobos há 135 mil anos (embora haja ainda muito debate sobre este horizonte temporal, com alguns autores a defenderem datas anteriores e outros datas mais recentes), e os canídeos domésticos como aqueles que hoje fazem parte de muitas famílias humanas começaram a surgir há, pelo menos, 15 mil anos, fruto do processo que conhecemos como domesticação. Mas lobos e cães mantêm uma estrutura genética altamente semelhante, partilhando uns com os outros cerca de 99% do ADN, razão pela qual alguns cientistas escolhem descrever os cães com o nome científico Canis lupus familiaris, ou, se quisermos uma formulação mais prosaica, “lobos que foram domesticados”.

Por serem geneticamente muito próximos, os cães e os lobos podem acasalar e produzir descendência fértil, os chamados híbridos. E, porque os lobos, especialmente na Península Ibérica, enfrentam paisagens com uma forte presença humana, é de esperar também uma presença significativa de cães, usados numa série de tarefas, como na guarda de propriedades e na proteção de rebanhos e manadas. Por isso, encontros entre lobos e cães, e reprodução entre eles, é uma consequência expectável.

Uma investigação internacional liderada pelo Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (BIOPOLIS-CIBIO) da Universidade do Porto, vem agora aprofundar o conhecimento sobre os lobos-ibéricos e tentar desvendar os segredos da sua notável capacidade de sobrevivência e adaptação.

A equipa, liderada por cientistas de Portugal, e com colaboração de cientistas da Dinamarca, Reino Unido e Espanha, quis perceber se “as características que o lobo-ibérico tem, algumas únicas da subespécie” poderiam estar relacionadas com a integração de genes de cães no ADN do lobo, um fenómeno conhecido como introgressão, “a passagem de genes do cão para o genoma do lobo”, explica-nos, em conversa telefónica, Raquel Godinho, do BIOPOLIS-CIBIO e uma das principais autoras do artigo publicado recentemente na revista ‘Genome Research’.

Não procurando, à partida, nenhum gene em particular, os investigadores esquadrinharam todo o genoma do lobo-ibérico para tentarem identificar regiões qua contivessem genes que tivessem passado do cão para o seu antepassado selvagem. Para tal, compararam o genoma do lobo-ibérico com o do cão, que é considerado uma espécie-modelo, com “um genoma muito mais estudado, sendo um animal doméstico, e que tem muita qualidade”, diz-nos Diana Lobo, primeira autora do estudo.

O genoma de outras populações europeias, eurasiáticas e norte-americanas de lobos foi também comparado ao do cão, para compreender a presença e localização de genes do canídeo doméstico nesses animais.

Por ter um ADN muito semelhante ao do cão, perceber que genes do lobo vieram do canídeo doméstico não é tarefa fácil. Mas a equipa conseguiu descobrir uma região genómica no lobo-ibérico, e ausente noutras populações de lobos, que, ao que tudo indica, terá passado do descendente para o antecessor.

“Descobrimos que o genoma do lobo na Península Ibérica, e só na Península Ibérica, herdou uma porção de genoma de cão que contém um gene que está associado a funções neurológicas”, detalha Raquel Godinho.

Essa herança genética foi encontrada no cromossoma 2 do lobo-ibérico, numa região que inclui o gene MAST4, que codifica funções relacionadas com o comportamento e que se crê ter influenciado o comportamento do lobo-ibérico, especialmente ao nível da dispersão.

“Achamos nós que este gene também pode, de alguma maneira, estar envolvido naquela característica que nós mais temos tentado descortinar, e que nos interessa mais particularmente, que é o facto de o lobo-ibérico não ter uma função que todas as outras populações de lobo no mundo têm: uma migração a longa distância”, detalha Raquel Godinho.

Pensemos, por exemplo, nos lobos de Yellowstone ou nas alcateias de lobos-cinzentos que vivem na Europa central e do norte, com grandes áreas de floresta e que percorrem muitas dezenas ou centenas de quilómetros em busca de alimento, de novos territórios ou de parceiros. O lobo-ibérico, ao contrário e por influência desse gene do cão, “só consegue fazer movimentos curtos, de 10 ou 20 quilómetros, mas nunca faz movimentos de 100, 500 ou mil quilómetros como está descrito para as outras populações”, acrescenta a bióloga.

“Esta possível associação entre este gene [MAST4] e a ausência de movimentos de dispersão de longa distância é aquilo que mais nos entusiasma e que queremos continuar a estudar”, confessa-nos.

Assim, o ADN do cão, estimam os investigadores, terá passado para o lobo-ibérico há, mais ou menos, entre três e seis mil anos, no que chamam de um “evento de hibridação”, quando um lobo, provavelmente um indivíduo que dispersou da sua alcateia, e um cão cruzaram o caminho um do outro e produziram descendência, marcando o início de uma nova etapa na evolução de um dos últimos grandes predadores da fauna ibérica.

Uma “vantagem adaptativa para viver nestes ambientes altamente humanizados”

A evolução não é um processo linear e muito menos será orientado por um conjunto de regras bem definido e infalível.

Neste caso, como explica Diana Lobo à Green Savers, “o gene do cão, no início, certamente que ficou no genoma do lobo não por uma razão específica, mas simplesmente acabou por lá ficar”, mas reconhece que ainda não se sabe quando exatamente é que começou a ser vantajoso para o lobo-ibérico.

“É muito interessante perceber que a evolução é um jogo de sorte”, salienta.

Facto é que, algures no tempo, o gene do cão tornou-se realmente benéfico para o lobo-ibérico, tendo-se mantido até hoje no genoma do predador selvagem, porque foi selecionado, por processos evolutivos, como uma mais-valia.

E em que se traduz realmente esse benefício? Numa Península Ibérica altamente humanizada, com pouco território amplo, contínuo e desimpedido que os lobos possam percorrer, ter um gene que limita o comportamento de dispersão é uma vantagem. Permite que o lobo consiga viver em espaços mais pequenos, sem necessidade de grandes áreas, como noutras regiões do mundo.

Se, por outro lado, o lobo se lançasse em dispersões de longa distância numa Península Ibérica repleta de humanos, a probabilidade da subespécie correr risco de extinção seria mais alta do que é atualmente. Por isso, essa introgressão genómica tornou-se, realmente, numa “vantagem adaptativa para viver nestes ambientes altamente humanizados”, diz Diana Lobo, “porque o facto de dispersar a longas distâncias pode aumentar a probabilidade de ter encontros mais indesejados, por exemplo com humanos”.

O comportamento de dispersão também ajuda das populações a manterem uma relativa diversidade genética, ou seja, permite trocas de genes com outras populações. Essa mistura de genes é crucial para a sobrevivência das populações e até das espécies, uma vez que se todos os indivíduos tivessem a mesma composição genética estariam todos altamente vulneráveis às mesmas doenças, por exemplo, pondo em risco o futuro dos núcleos populacionais e da espécie.

Por isso, não seria descabido pensar que se o lobo-ibérico tem um comportamento de dispersão muito limitado, a diversidade genética das populações ibéricas poderá ser, também ela, limitada. Contudo, as investigadoras dizem que na Península Ibérica, com cerca de três mil lobos, a diversidade genética está assegurada, pois há trocas entre indivíduos de populações na região, não representando, por isso, uma ameaça.

“O lobo-ibérico tem esta característica há milhares de anos, pelo que se comprometesse a diversidade genética já teríamos níveis muitíssimo mais baixos do que temos hoje”, aponta Raquel Godinho.

O lobo-ibérico não é um híbrido

As investigadoras querem deixar bem claro que o lobo-ibérico é um lobo e não um híbrido cão-lobo. “O lobo-ibérico é, efetivamente, um lobo, e quando comparamos os genomas do ibérico com o do italiano e o resto dos europeus vemos que há uma unidade dos lobos e que são diferentes dos cães”, destaca Raquel Godinho.

“Apesar da imensa similaridade entre as duas entidades, nós conseguimos muito bem diferenciar o que é um lobo e o que é um cão”, frisa.

Apesar de só nas populações de lobo na Península Ibérica ter sido encontrada essa introgressão genómica do gene MAST4 do cão, Diana Lobo salienta que nas populações lupinas noutras regiões são também já conhecidas evidências de “hibridação antiga” e de “outros blocos genómicos de cão”, o que demonstra uma prolongada coexistência e cruzamento fértil entre estas duas espécies do género Canis.

“Não é que o lobo-ibérico tenha mais blocos de cão do que os outros”, afirma.

Além disso, a hibridação entre cães e lobos em Portugal “não é significativa”, aponta Diana Lobo, estimando-se que não será superior a 8%, continuando, por isso, a ser “um evento raro” na Península Ibérica e, para já, não representa uma preocupação no que toca à conservação do lobo-ibérico.

Contributos para a conservação do lobo-ibérico

Diana Lobo considera que um dos principais contributos que este trabalho pode dar para a conservação do lobo na Península Ibérica é “mostrar que o lobo-ibérico é definitivamente uma unidade genética diferente das outras, dos outros lobos”.

Dada a expansão do lobo-cinzento um pouco por toda a Europa, e embora ainda não haja indícios de cruzamento com o lobo-ibérico, a bióloga considera que as abordagens à sua proteção podem passar pela “gestão dos cruzamentos”, de forma a preservar o lobo-ibérico enquanto subespécie distinta e única.

Em Portugal, “o que ameaça mais o lobo é a ausência de uma política que seja amiga dos criadores de gado”, sublinha Raquel Godinho, “porque se houvesse uma política em que, efetivamente, as compensações por perda de animais [de gado] devido a ataques de lobo fossem bem geridas e bem implementada e amiga dos criadores, provavelmente teríamos menos conflitos”.

Além desses obstáculos a uma coexistência mais pacífica entre humanos, especificamente criadores de gado, e lobos, a bióloga salienta que há também uma dimensão cultural que dificulta o alcance de uma maior harmonia, ou, pelo menos, de uma menor animosidade.

“Intrinsecamente, as pessoas têm medo do lobo. Ele faz parte do imaginário de todo o mundo, mesmo no hemisfério sul onde não há lobos, e onde se contam histórias de lobos”, diz-nos Raquel Godinho.

“Isso é uma questão cultural que é muito mais difícil de trabalhar em termos de conservação, porque vai haver sempre esta vontade de ir contra aquela espécie que nós, intrinsecamente, tememos ou de que não gostamos”, aponta. E recorda que, embora seja relativamente mais fácil promover uma coexistência mais positiva através de um maior apoio aos criadores de gado, “Portugal já teve políticas mais favoráveis aos criadores”, que “foram mudadas há uns anos e isso deteriorou muito a situação e aumento o conflito”.

O mais recente censo da população de lobos-ibéricos em Portugal revelou uma diminuição de 20% da área de presença da espécie e um declínio de 8% no número de alcateias, para 58, desde o primeiro e último censo realizado há 10 anos. No rescaldo dos dados, divulgados pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), o Governo pediu a esse instituto para rever e atualizar o Plano de Ação para a Conservação do lobo-ibérico (PAC Lobo), que data de 2017.

Esse plano revisto será a base do Programa Alcateia 2025-2030, que terá como principal objetivo reforçar a conservação da subespécie lupina em Portugal e travar a tendência de declínio plasmada no novo censo.

“Acho muito bem que o ICNF faça a revisão do PAC Lobo, que faça propostas de projetos que são necessários, que seja gerado mais conhecimento, porque isso faz falta”, diz Raquel Godinho. “Parece que já sabemos muita coisa, mas sabemos muito pouco e o que se faz é muito lento”, acrescenta, lembrando que o trabalho para o censo foi feito em 2019 e 2020, mas o trabalho só foi divulgado em dezembro passado.

Há um desfasamento, comum a tantas outras áreas, entre o conhecimento científico e a ação política que é preciso colmatar, defendem as investigadoras.

Sobre se é possível alguma vez haver uma coexistência realmente pacífica entre humanos e lobos, Diana Lobo pensa que sim. “Acho também que, com a mudança de gerações e de ideias, isso pode, de alguma forma, não tornar a coexistência pacífica, mas melhorá-la”.

Raquel Godinho confessa-nos, por seu lado, que “também quero acreditar que sim, que é possível”, mas salienta, em nota de cautela, que em países, como no norte da Europa, onde as preocupações com o Ambiente e a Natureza estão já enraizadas há muito, “o lobo continua a ser visto como uma ameaça e a haver muito conflito”.






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