Lei dos maus-tratos a animais: O porquê de tanta polémica 8 anos depois da aprovação



Em 2014, foi aprovada, pela primeira vez, uma lei que criminaliza os maus-tratos a animais de companhia, alterando o Código Penal. Para muitos, surgiu como um marco civilizacional que colocou Portugal na vanguarda no que toca à harmonização entre humanos e não-humanos.

Desde então, o Código Penal passou a estabelecer, no Artigo 387.º, que a morte de um animal de companhia, “sem motivo legítimo”, arrisca pena de prisão de 6 meses a dois anos ou “pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. O limite máximo da pena de prisão pode ser “agravado em um terço” caso a morte do animal aconteça “em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”.

Quanto aos maus-tratos, passou a definir que “quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias”.

No entanto, se desses maus-tratos “resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção”, quem executou o crime enfrentará pena de prisão de 6 meses a dois anos ou multa de 60 a 240 dias.

Outra das grandes alterações e inovações trazidas por essa lei ao Código Penal foi a classificação do abandono como crime. Passou a definir-se que “quem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias”. Essa pena pode ser agravada em um terço se desse abandono “resultar perigo para a vida do animal”.

Alguns juízes do Tribunal Constitucional apontam inconstitucionalidade da lei

Apesar da maior proteção dos animais de companhia, a lei tem gerado grande controvérsia, não apenas porque os resultados práticos são escassos, mas também porque alguns juízes do Tribunal Constitucional (TC) consideram que a lei viola a Constituição da República Portuguesa. Mas a opinião não é partilhada por todos os magistrados do Palácio Ratton.

Em declarações à ‘Green Savers’, Maria da Conceição Valdágua, professora de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa, e especializada em direitos dos animais, explica-nos que os juízes da 3.ª secção do TC “consideram inconstitucional a incriminação dos maus-tratos a animais por violação do disposto no art. 18º, nº2 da [Constituição]”, que estabelece que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

A especialista afirma que, de acordo com esses magistrados, “a incriminação dos maus-tratos a animais não tutela um bem jurídico com respaldo na Constituição” e que só quase 10 anos após a aprovação da lei se está a gerar tanta controvérsia “porque só agora os arguidos condenados por maus-tratos a animais recorreram para o TC”.

Por outro lado, os juízes da 1.ª secção do TC “consideram que há bem jurídico com cobertura constitucional”. Contudo, argumentam que “a indeterminação do tipo legal viola o princípio da legalidade” plasmado na Constituição.

Num manifesto divulgado recentemente, dezenas de juristas defendem a constitucionalidade da lei, assinalando que a criminalização dos maus-tratos e o abandono de animais de companhia coloca, por fim, Portugal “no maioritário grupo de Estados-Membros da União Europeia alinhados com a civilidade, que criminalizam a violência gratuita contra animais”.

E recordam que a lei “teve origem numa petição de cidadãos que recolheu mais de 40 mil assinaturas, tendo sido aprovada pela quase unanimidade de votos parlamentares, factos bem expressivos da consensualidade social que lhe está na base”.

Os signatários do manifesto salientam que, no fim de 2021, um acórdão da 3.ª secção do TC “julgou inconstitucional a norma que prevê e pune o crime de maus-tratos a animal de companhia”, sendo que três do cinco juízes conselheiros dessa secção consideravam que não existe “respaldo constitucional suficiente para esse tipo de crimes por omissão da referência aos animais no texto da Constituição”.

E recordam que dessa decisão “resultou, assim, impune, entre outros, o tenebroso caso conhecido do grande público como o ‘caso da cadela Pantufa’, do indivíduo que esventrou, a sangue frio, uma cadela, deixando-a, durante dias, em agonia até morrer, tendo igualmente atirado ao lixo as crias, que acabaram também por morrer”.

“A perspetiva acolhida pela 3.ª Secção do Tribunal Constitucional, que é excessivamente formalista, tem gerado enorme perplexidade entre juristas e não juristas, para além de grande alarme social e de calamitosa injustiça em sucessivos casos de maus-tratos que chocaram, e chocam, o País”, destaca o manifesto.

E apela a que “em nome do progresso civilizacional já alcançado pela ordem jurídica portuguesa e, bem assim, pela sua estabilidade, pugnem pela sustentação da conformidade constitucional do tipo legal de crime que prevê e pune os maus tratos a animais de companhia, garantindo a efetiva ‘construção de uma sociedade livre, justa e solidária’, inclusive para com os animais”.

Então a lei corre o risco de ser revogada? Maria da Conceição Valdágua, que é uma das signatárias do manifesto, diz que isso pode acontecer “se for pedida pelo Ministério Público a fiscalização abstrata e o Plenário do Tribunal decidir pela inconstitucionalidade a declaração terá força obrigatória geral”.

Ora, esta semana, uma nota da Procuradoria-Geral da República informava, segundo a agência Lusa, que “na sequência de três decisões do Tribunal Constitucional (TC) nesse sentido, o Ministério Público no TC pediu a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral da norma que criminaliza os maus-tratos a animais”.

Com esse pedido feito, cabe agora ao plenário do TC decidir sobre a constitucionalidade da lei e “essa decisão terá força obrigatória geral”, refere a especialista, que afirma que “em meu entender, nem a Constituição, nem a lei que criminaliza os maus-tratos a animais, precisam de qualquer alteração, porque a lei não sofre de nenhuma inconstitucionalidade”.

Um entendimento que é partilhado não só pelos signatários do manifesto, mas também por dois dos cinco juízes da 1.ª secção do TC.

Maria da Conceição Valdágua diz que se a lei for revogada será “sem dúvida alguma, um enorme retrocesso civilizacional” e que “o próprio Tribunal Constitucional reconhece que a incriminação dos maus-tratos a animais é um imperativo ético e civilizacional, mas lamentavelmente não tem decidido em consonância com essa ideia”.

No atual ordenamento jurídico nacional, caso isso venha a acontecer “aos agressores apenas poderão ser aplicadas sanções pecuniárias (coimas) por contraordenações”, explica.

O que dizem os partidos?

No que toca aos partidos com assento na Assembleia da República, as reações a uma possível declaração de inconstitucionalidade vão desde a oposição clara a posições menos vincadas.

Em chamada telefónica, o gabinete da representação parlamentar do Livre afirmou que “somos favoráveis à criminalização dos maus-tratos a animais de companhia” e que “se se tiver de alterar a Constituição, que se altere a Constituição”.

Inês Sousa Real, porta-voz do partido Pessoas-Animais-Natureza, disse-nos que a decisão do TC abre portas “à possibilidade de um retrocesso incompreensível que, a confirmar-se, deixará impunes atos grotescos praticados contra animais de companhia”, e, com pedido do Ministério Público, “corremos o sério risco de ver os maus tratos a animais ficarem à margem da lei”.

A deputada única assevera que “casos como animais espancados com barras de ferro, cadelas enforcadas porque engravidaram, animais esquartejados em contexto de violência doméstica, animais deixados a morrer à fome, animais presos a veículos e arrastados pela estrada”, foram “casos que geraram e geram forte indignação social e que nos levam a afirmar que criminoso e inconstitucional é maltratar um animal”.

E assinala que “a Constituição não tem de reproduzir de forma taxativa o elenco de todos os tipos de crimes previstos ou que venham a ser previstos em Portugal, não o faz – e bem – com crimes como o branqueamento de capitais, a interrupção de cerimónias fúnebres e até com o crime de lenocínio e não deve, por conseguinte, fazê-lo com o crime contra animais”.

Apesar de estar em curso um processo de revisão constitucional que poderá plasmar os direitos dos animais na lei fundamental, Sousa Real alerta que quando e se tal alteração acontecer, podem ficar impunes “atos de maus-tratos que venham a ser praticados e que tantas vezes começam nos animais para acabar nas pessoas, bem como assistir à devolução de animais vítimas de maus-tratos aos seus agressores e ainda o eventual pagamento de indemnizações aos agressores”.

Por sua vez, o Bloco de Esquerda, pela voz do líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, afirmou em plenário que “o Tribunal Constitucional tem o direito de decisão e nós temos o poder de discordar das suas decisões”, e declarou que “é incompreensível” a posição dos juízes do Palácio Ratton e que a lei dos maus-tratos é um “avanço civilizacional” que “todos julgávamos estar alcançado e que afinal está agora colocado em causa”.

Do lado da bancada socialista, Pedro Delgado Alves afirmou que “caberá ao parlamento respeitar a decisão do Tribunal Constitucional e dar o tempo próprio para o tribunal para formular o seu juízo”.

Já o Chega, pela voz da deputada Rita Matias, defendeu a necessidade da lei, apontando que “o desfecho previsível para esta lei é, de facto, um retrocesso civilizacional”, pois “uma sociedade equilibrada só existe com respeito pela vida, pelos humanos e pelos animais”.

A deputada recordou também que já em setembro o partido tinha apresentado uma proposta de revisão constitucional que previa, entre outra coisas, incluir os direitos dos animais na Constituição.

O deputado Duarte Alves, do Partido Comunista Português, recordou a declaração de voto que enunciou quando a lei foi aprovada em 2014, mantendo que o estabelecimento de novos crimes não é a opção certa, sendo mesmo “errada e ineficaz, e que “criminalizar sem fazer todo o caminho de prevenção, de controlo e fiscalização pode muitas vezes não levar a lado nenhum”.

Petição e manifestação defendem manutenção da lei dos maus-tratos

Em resposta a uma possível revogação da lei dos maus-tratos a animais de companhia, foi lançada uma petição “Pela inclusão da protecção dos animais na Constituição da República Portuguesa”, que, há data da escrita deste artigo, conta com mais de 22 mil assinaturas.

Dirigindo-se ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, os peticionários pedem que “em sede de alteração/revisão Constitucional, [seja aprovada] a inclusão explícita e inequívoca da protecção dos animais não-humanos na Constituição da República Portuguesa”.

Considerando o número de assinaturas já conseguido, e que o artigo 24.º da Lei n.º 43/90, de 10 de agosto, define que as petições são apreciadas em plenário da Assembleia da República quando “sejam subscritas por mais de 7500 cidadãos”, o assunto deverá ser discutido pelos deputados, embora não tenha ainda sido definido qualquer calendário.

A par dessa iniciativa, este sábado, dia 21, decorrerá uma manifestação em Lisboa em defesa da lei que criminaliza os maus-tratos, que arrancará às 15h00 do Marquês de Pombal e que terminará em frente ao Tribunal Constitucional

De acordo com a associação IRA – Intervenção e Resgate Animal, parte da organização da marcha, “esperam-se milhares e milhares de pessoas concentradas numa única voz de protesto” e “um movimento de defesa animal como nunca antes visto, que terá certamente impacto no futuro do bem-estar animal e na sociedade de Portugal”.





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