Morcegos resistentes à Covid-19 podem ser a chave para combater a próxima pandemia



Amplamente retratados como espíritos malignos ou demónios sugadores de sangue, os morcegos têm tido uma má reputação ao longo dos anos. Nenhum filme de vampiros, de Drácula a Buffy, ficou completo sem a entrada de um destes arautos da morte, avança o “The Guardian”.

“Mas estas representações sombrias”, acrescenta a mesma fonte, “rebaixam o morcego. Temos muito a aprender com eles, insistem os investigadores que acreditam agora que os morcegos podem ser cruciais para nos ajudar a enfrentar futuras pandemias”.

Por isso, foi lançado um projeto genético global para descobrir como os morcegos evitam os piores impactos de alguns dos vírus mais perniciosos do mundo, incluindo o agente responsável pela Covid-19. “Os morcegos têm o potencial de nos ensinar muito sobre como combater as doenças”, afirmou a investigadora Emma Teeling, da University College Dublin, que desempenhou um papel fundamental na criação do projeto Bat1K ao jornal.

Os morcegos são notáveis por uma série de razões, diz Teeling. São os únicos mamíferos que podem voar; têm vidas excecionalmente longas para criaturas do seu tamanho; e muitos deles utilizam ondas sonoras para localizar as suas presas. Existem também numa variedade notável de formas e tamanhos, desde o morcego abelhão, do tamanho de um inseto, até aos morcegos frugívoros australianos, que têm asas de dois metros de envergadura.

Alguns morcegos apanham peixes, outras espécies alimentam-se de insetos e três bebem sangue: o morcego vampiro comum, o morcego vampiro de pernas peludas e o morcego vampiro de asas brancas. “Outras espécies desenvolveram as línguas mais longas dos mamíferos para poderem enfiá-las em flores enormes e compridas, para obterem o seu néctar”, acrescentou Teeling.

No entanto, a razão para o atual entusiasmo dos cientistas pelos morcegos advém da descoberta de que estes podem ser hospedeiros de um número surpreendente de vírus potencialmente letais – incluindo os coronavírus que causaram as epidemias de Sars e Mers, bem como os vírus Marburg, Nipah e Hendra – mas sem sofrerem quaisquer efeitos nocivos aparentes. “Existe uma espécie de tratado de paz entre os morcegos e os agentes patogénicos que albergam”, afirmou recentemente o virologista Joshua Hayward, do Burnet Institute de Melbourne, na revista Nature.

Pensa-se também que os morcegos são a fonte original do vírus Sars-CoV-2, que causa a Covid-19. “Os morcegos-ferradura da Ásia são considerados o reservatório original do vírus que evoluiu para se tornar o Sars-CoV-2, que mudou muito provavelmente numa espécie intermediária de mamífero”, disse Teeling. “Esse animal foi infetado por um morcego, provavelmente num mercado, transformando o progenitor viral do Sars-CoV-2 num agente que se podia propagar através dos seres humanos. O resultado foi a pandemia de Covid-19”.

Por isso, Teeling considera mais provável que o Sars-CoV-2 não tenha sido criado num laboratório, dada a quantidade de provas recentes que sugerem que o mais provável é que tenha acontecido acidentalmente durante a mistura de animais no mercado.

Como é que os morcegos atuam como reservatórios de tantos vírus sem ser afetados?

Estas descobertas levantam, no entanto, uma questão fundamental. Como é que os morcegos atuam como reservatórios de tantos vírus que são prejudiciais a outros animais, incluindo os humanos, mas que eles próprios não são afetados? É um quebra-cabeças que os cientistas estão agora a tentar resolver. “A resposta tem a ver com a sua capacidade de voar”, disse Teeling.

O voo é extremamente exigente, requerendo o dispêndio de enormes quantidades de energia para qualquer criatura que queira voar. A libertação desta energia intensa no corpo de um mamífero deve levar à degradação de algumas das suas células. É de esperar que pedaços de ADN se soltem e flutuem pelo corpo.

Nos mamíferos que não voam, estes pedaços de material genético são identificados pelas células imunitárias e são frequentemente tratados como sinais de que está a ocorrer uma invasão de um organismo causador de doença. É lançado um contra-ataque que pode despoletar uma inflamação intensa. Em muitos casos – incluindo os da Covid-19 – esta inflamação é frequentemente a causa principal de reações graves que podem levar à morte.

“Mas os morcegos não têm essa reação intensa”, disse Teeling. “Ao longo da sua evolução – que começou há cerca de 80 milhões de anos – modularam os seus sistemas imunitários de modo que as suas respostas diminuíssem. A inflamação não ocorre com tanta frequência ou gravidade. Como resultado, podem transportar todos estes vírus sem sofrerem reações perigosas”.

Por outras palavras, os morcegos – porque evoluíram para voar – tiveram de desenvolver sistemas imunitários que são muito menos suscetíveis de desencadear inflamações prejudiciais. Desta forma, são capazes de lidar com os vírus sem sofrerem as reações intensas que afetam outros tipos de mamíferos. A forma exata como o fazem ainda não é clara, mas é agora objeto de intensa investigação.

Uma das principais abordagens envolve o projeto Bat1K, fundado por Teeling juntamente com a Professora Sonja Vernes, da Universidade de St Andrews, com o envolvimento de outras instituições, como o Instituto Max Planck de Biologia Celular Molecular e Genética, em Dresden, e o Instituto Sanger, perto de Cambridge.

O seu objetivo é ambicioso, mas simples: criar genomas de alta qualidade para todas as espécies de morcegos. Desta forma, deverá ser possível desvendar todas as instruções de ADN – que se apresentam em milhares de milhões de unidades – que são transportadas pelas cerca de 1450 espécies de morcegos que evoluíram no nosso planeta.

Até à data, apenas um punhado de genomas de morcegos foi sequenciado, embora os cientistas estejam confiantes de que, a partir destas análises, em breve será possível desvendar as formas precisas através das quais os morcegos evitam sucumbir aos vírus que hospedam – com o objetivo final de utilizar este conhecimento para desenvolver medicamentos que possam imitar esse comportamento nos seres humanos.

“Os morcegos não são responsáveis pela transmissão de doenças aos seres humanos”, acrescentou Teeling.

“Nós invadimos as suas vidas, e não o contrário. Mais importante ainda, precisamos de estar preparados para a próxima pandemia e, se os morcegos conseguirem indicar formas de modificar rapidamente as nossas respostas imunitárias, isso demonstrará a importância que têm para o nosso mundo”, conclui.





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