O bairro lisboeta onde nasceu uma Agrofloresta



Fotografia: Cristina Bernardo

Num espaço de 400 metros quadrados, outrora abandonado, vê-se hoje terreno cheio de vida, que se desenvolve graças à dedicação comunitária.

O vento sopra no ar e sente-se o cheiro a flores silvestres e ervas aromáticas. Ao longe, o som dos pássaros confunde-nos os sentidos. De vez em quando passa uma borboleta e sente-se o cheiro de ervas aromáticas. Mas não estamos no meio do campo, na verdade, estamos em plena cidade de Lisboa… na Agrofloresta de Campolide – Bela Flor Respira.

Foi em setembro de 2019 que surgiu o projeto MedTOWN, cuja ação seria concretizada na Agrofloresta de Bela Flor. Mas antes de falarmos do projeto em si, é preciso perceber a origem deste espaço na zona de Campolide. Em 2018 a Bela Flor Respira candidatou-se ao programa BIP/ZIP, financiado pela Câmara Municipal de Lisboa, e ganhou. Nasceu assim a Agrofloresta de Campolide. A ideia era dinamizar as zonas e bairros de intervenção prioritária, sendo um deles o da Bela Flor.

Foi então criado um consórcio, constituído por Junta de Freguesia, Circular Economy Portugal, Cooperativa da Habitação, Associação Viver Campolide, BioVilla e Santana Futebol Clube, que acabaram por ganhar um financiamento de 50 mil euros para, durante um ano, desenvolverem uma iniciativa de impacto de desenvolvimento comunitário neste bairro.

De forma a dar continuação ao projeto e à gestão do espaço, o projeto MedTOWN acabou por intervir e continuar a dar-lhe vida. Mas afinal, o que é o MedTOWN? “É um projeto internacional, acontece em seis diferentes países na Bacia do Mediterrâneo e envolve nove entidades destes seis países: Portugal, Espanha, Grécia, Tunísia, Palestina e Jordânia.

Resulta de um programa de financiamento da cooperação transfronteiriça da União Europeia e, portanto, é financiado por este programa, ENI CBC MED”, explica Cristina Sousa, a coordenadora do projeto a nível nacional. Em Portugal, o MedTOWN tem presença na Agrofloresta, e tem como conceito principal o da coprodução, ou seja, criar uma ação em prol do desenvolvimento local sustentável, igualitário, que promova a justiça e a inclusão social, integrando os beneficiários em todo o processo. No fundo, os moradores estão envolvidos e fazem eles próprios parte desta solução, e é através das ferramentas disponibilizadas pela administração pública e da economia social e solidária que conseguem em conjunto atingir o seu objetivo.

A Bela Flor Respira tem assim uma vertente ambiental e social; promove a sustentabilidade ambiental, a sustentabilidade económica, a integração social, cultural e ética. “O projeto tem acima de tudo três pilares de ação”, acrescenta a coordenadora. Em primeiro lugar, a de capacitação, em que se pretende capacitar os agentes locais para eles próprios fazerem verter para a comunidade conhecimentos sobre economia social e solidária, e começar assim processos mais participativos e inclusivos.

Numa segunda vertente, a compreensão do que é a economia social e solidária em Portugal, como é que ela se desenha no contexto nacional, e divulgá-la. “Associações do território, a própria Junta de Freguesia e outras entidades públicas dão a conhecer as ferramentas da economia social e solidária, para percebermos como é que conseguimos encontrar formas eficazes de cooperação, de partilha de recursos”, indica Cristina Sousa. O terceiro pilar corresponde à ação demonstrativa em que as pessoas compreendem na prática como tudo isso funciona, focando-se no projeto da Agrofloresta. Embora a pandemia da covid-19 tenha conduzido a alguns atrasos no desenvolvimento do projeto, e impossibilitado a partilha entre comunidade, voluntários e trabalhadores, o espaço continua a desenvolver-se. Ainda que, no começo, o ganho da confiança da comunidade tenha sido difícil, atualmente o envolvimento já é bastante positivo, afirma Joaquim Espada, formador especializado no conceito de agricultura sintrópica.

“A pouco e pouco acho que se vão envolvendo, começam a pensar: ‘esta gente já está aqui há tanto tempo, se calhar não se vão embora (risos). Vieram aqui para ficar’”. Já foram dadas algumas formações e workshops, nomeadamente a nível de cultivo e de produção agrícola, de permacultura, como dos conceitos de economia social e económica, de economia circular, e até oficinas de carpintaria criativa comunitária. Neste último, foram feitos vários bancos com a comunidade, aproveitando madeira disponibilizada pela Junta de Freguesia, que assim foi reaproveitada em vez de seguir para o lixo. Todas as quintas-feiras, das 10 às 18 horas, a Agrofloresta recebe a visita de dois trabalhadores, de Joaquim Espada, formador especializado no conceito de agricultura sintrópica, e também de Cátia Sá, especializada em dinamização comunitária. Em conjunto vão fazendo a manutenção do espaço e recebendo os voluntários e os moradores, e partilhando os seus conhecimentos.

Qualquer pessoa pode fazer parte deste projeto e juntar-se neste espaço, porque a Bela Flor está aberta ao resto da cidade. Cátia Sá relembra, “No outro dia chegámos cá e estava esta linha plantada de couves. Depois apareceu um vizinho e disse: “eu vim da terra, tinha aquelas couves e vi que estão a fazer assim essas linhas e plantei aí também”; então a dinâmica também é essa, que as pessoas se vão chegando e apropriando do espaço – dinamizar o espaço elas próprias”, esclarece. Existe sempre um acompanhamento por parte dos formadores e da equipa da Junta de Freguesia de Campolide, pelo que não é necessário haver o conhecimento, não é preciso cumprir uma agenda, é apenas preciso ter interesse e vontade de aprender e de participar. É também ao som da concertina e da boa disposição do vizinho Salvador que a equipa já realizou vários plantios e passou alguns bons momentos.

A vizinha Jacinta e a sua maneira de ser engraçada são também recordadas, e ainda alguns lanches oferecidos pelos moradores do prédio em frente, como os bolos da vizinha Madalena. Mas se pensa que este espaço é só para os de perto, está enganado. Nesta quinta-feira, dia 18 de março, encontrámos também a Lisa, uma voluntária alemã que sempre que vem a Lisboa gosta de dar um saltinho à Agrofloresta. “É a única horta que encontrei em Lisboa onde se pode ajudar, onde cada um pode vir sem ter de ser um membro de uma associação ou ser vizinho, e gostei muito do ambiente e de ser tão aberto a cada um ajudar e poder aprender”, revela. Mas afinal, o que difere a Bela Flor Respira das outras hortas urbanas?

É o facto de esta ser um espaço aberto, sem cercas e muros, onde qualquer um pode entrar e ajudar. “Há muitas hortas em Lisboa. Esta tem a particularidade de ser um espaço aberto, não tem chave para entrar, não tem dono, e é de todos”, distingue Cátia Sá.

BIODIVERSIDADE

É um local onde se vê o equilíbrio entre a participação da comunidade e do próprio ecossistema. Além disso, neste espaço não existe só uma cultura, o plantio é feito com muitas espécies plantadas juntas e em linha. Desde árvores a espécies hortícolas e frutícolas ou ervas aromáticas. Quando se olha à volta, é possível ver um pouco de tudo: feijão, tomate, alface, couves, choupos, pessegueiros, freixos, figueiras, nespereiras, couves, romãzeiras, favas, ervilhas, rosmaninho, louro e muitas mais. Neste espaço, até as plantas invasoras são importantes. Como explica a responsável, “não existem ervas daninhas, todas as ervas têm uma função própria e refletem algo que existe no local e no ecossistema”.

Além disso, não são utilizados quaisquer pesticidas nem adubos, é tudo feito manualmente e com o que o próprio espaço produz. A ideia é perceber que respostas o ecossistema dá, se se planta algo e a espécie não se dá bem, troca-se de sítio e tenta-se perceber o porquê, não se força. Existe também uma circularidade, e o objetivo é que embora ainda exista uma entrada, que não haja uma saída. “Os montes de matéria orgânica são os resultados das podas e nós vamos devolvendo a matéria orgânica ao solo, portanto, nada sai, é um circuito fechado.” Em parceria com uma empresa que utiliza borras de café para fazer cogumelos, a Agrofloresta de Campolide recebe os resíduos de pós-produção e integra-os no solo.

Em simultâneo, alguns vizinhos contribuem com a sua própria compostagem ou a própria Junta de Freguesia direciona para o espaço algumas matérias recolhidas. Ao mesmo tempo, a horta foi alinhada com diferentes pedaços de madeira, que vêm em grande parte da poda das árvores ali presentes, embora também de arranjos exteriores, sendo assim sempre reaproveitadas.

A água da chuva é aproveitada, os profissionais procuram utilizar as linhas com a madeira de forma a reter humidade e consecutivamente menos necessidade de rega, mantendo assim a água no solo. “Hoje em dia ainda fazemos alguma rega no pico do verão mas pouca, e a ideia é que se crie um ecossistema em que o ensombramento de umas e a cobertura do solo vá fazendo com que a necessidade de rega seja cada vez mais baixa e que o sistema se autorregule”, indica Cristina Sousa.

“Há aqui uma fixação de carbono não só associada às plantas, mas acima de tudo à reabilitação do solo, há uma melhor gestão da água”, acrescenta. Alguns dos benefícios diretos que podem destacar-se são a existência de uma zona mais fresca com sombras, a prevenção de ondas de calor, e acima de tudo a naturalização dos centros urbanos. A ideia é que no futuro o espaço possa expandir-se e que possam plantar- se mais árvores autóctones, como medronheiros, murtas e loureiros. Sendo um espaço feito com a comunidade e essencialmente para a comunidade, as decisões também são tomadas com a sua ajuda.

Por exemplo, a linha mais próxima das janelas das casas é composta por plantas aromáticas, a pedido das vizinhas. Outra situação que retrata esta proximidade foi o facto de, durante a pandemia, duas famílias terem plantado uma árvore no espaço de forma simbólica no dia de anos dos filhos – além de a mesma ser apadrinhada pelos pequenos, que receberam um certificado, também podem visitá-la quando querem. “O principal intuito deste projeto é promover essa reciprocidade, a vizinhança e cooperação, que deveria florescer em qualquer bairro”, afirma Cristina Sousa.

Mas nem só de plantas e humanos é esta comunidade feita. É também o espaço das borboletas, das minhocas, dos pássaros, dos caracóis, dos gatos e dos cães, de um galo e de uma galinha. No fundo, nesta Agrofloresta existe espaço para todos: para os humanos, enquanto cuidadores e cultivadores da biodiversidade; para os animais, enquanto polinizadores e combustível para o funcionamento do ecossistema; e para as plantas, enquanto figura principal que dá razão e ser à sua vida.

Um local onde o bem-estar ambiental e social se unem, de mãos dadas, como um só.

Artigo publicado na Revista Green Savers nº3, disponível nas bancas ou em formato digital aqui.

 

 





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