Onde anda o Estado a gastar o dinheiro? Uma entrevista exclusiva aos autores do Má Despesa Pública.
Rui Oliveira Marques e Bárbara Rosa são dois dos autores do projecto Má Despesa Pública, lançado há um ano e que tem cumprido a sua promessa inicial: denunciar e agregar exemplos de má despesa no Estado, uma espécie de “observatório” de todos os gastos supérfluos de gestores e instituições públicas.
Um ano depois, confirmou o Green Savers junto de dois dos autores do projecto, o Má Despesa Pública está de boa saúde e hoje, felizmente, com menos más notícias para dar aos portugueses. “Pela pesquisa que temos feito, constatamos, sem margem para erro, que os gastos mais disparatados foram feitos em 2009, ano em que decorreram três eleições: autárquicas, legislativas e europeias”.
Trezentas e trinta denúncias depois, leia a entrevista exclusiva do Green Savers aos autores do Má Despesa Pública.
O Má Despesa Pública foi lançado num período pré-Troika. Sentem que os gestores públicos moderaram os seus gastos supérfluos com a chegada do trio da UE/FMI/BCE?
Rui Oliveira Marques (ROM): Por coincidência, o Má Despesa (MDP) ficou online a 1 de Abril de 2011, dias antes de ser oficializado o pedido de ajuda externa. Esse tipo de gastos considerados supérfluos está muito mais controlado. Não há dinheiro e o que existe, se for mal gasto, pode originar logo notícias negativas na imprensa. Pela pesquisa que temos feito, constatamos, sem margem para erro, que os gastos mais disparatados foram feitos em 2009, ano em que decorreram três eleições: autárquicas, legislativas e europeias.
Quantos exemplos de má despesa pública já denunciaram até hoje?
Bárbara Rosa (BR): Já ultrapassámos as 330, sendo que a maioria são da responsabilidade do Má Despesa, isto é, viram a luz do dia graças à nossa pesquisa.
Recebem muitas dicas dos vossos leitores?
BR: Sim, recebemos alertas e denúncias importantes. Quando as denúncias são fundamentadas e documentadas, analisamos e publicamos, ressalvando a privacidade do leitor. Curiosamente, a maior parte dessas denúncias prendem-se com questões ligadas ao poder local.
Inspiraram-se em algum projecto internacional para o lançamento do Má Despesa Pública, ou é criatividade/empreendedorismo/cidadania 100% nacional?
BR: Pode-se dizer que é 100% cidadania made in Portugal. Não sei se existe algum exemplo internacional deste género. A ideia inicial não teve outra inspiração além da manifesta falta de informação sobre má despesa pública.
O vosso projecto foi citado várias vezes nos media tradicionais. Sentem-se uma espécie de departamento de investigação jornalística gratuita em outsourcing?
BR: Não. Sentimo-nos como somos: um grupo cívico informal que usa algum do seu tempo a ler documentos públicos pouco divertidos, tendo em vista divulgar a má gestão pública.
Acreditamos na capacidade de intervenção cívica do cidadão, individualmente considerado, e, por isso, temos o objectivo um pouco pretensioso de tentar contribuir para informar sobre a (má) despesa pública. Defendemos a informação – e o acesso a ela – como substrato de uma intervenção cívica construtiva. O País precisa de uma sociedade civil forte.
Dizem que o Estado arranjou esquemas para ocultar dos cidadãos a forma como gasta o dinheiro público. Que esquemas são estes?
BR: Genericamente, adoptou o esquema mais básico, como o da ocultação de informação. Esse é o resultado, também, de uma sociedade que não exige contas, ou exige pouco. Não pode haver “obscuridade” na contabilidade pública, pois estão em causa contas que também pagamos.
A propósito da não disponibilização de informação, temos Belém como exemplo crasso. A Presidência da República não tem o seu orçamento publicado online, ou seja, não sabemos, especificamente, como e onde são gastos os €15 milhões (R$37,2 milhões) que recebe do orçamento de Estado. Para se ter uma ideia, no site da Presidência encontram-se cinco documentos sobre uma Auditoria Energética ao Palácio de Belém, mas nada concreto sobre como é gasto o seu orçamento. Já escrevemos ao Presidente da República sobre isso. Nunca nos responderam.
Alguma vez receberam um comentário, indicação ou reacção de um gestor público, responsável pela transparência das contas públicas ou representante do Estado?
ROM: Muito menos do que aqueles que estaríamos à espera. Temos tido principalmente reacções de pessoas anónimas ou próximas dos projectos em causa. Há algumas excepções. Quando abordámos o caso da construção do parque de estacionamento subterrâneo em Baião tivemos vários comentários dos responsáveis pela obra, para justificar o projecto.
Tiveram cerca de 200 mil visitas no primeiro ano. Estão satisfeitos com estes números?
ROM: Na verdade, o contador de visitante foi colocado no blogue há cerca de quatro meses. Portanto, esses valores dizem respeito a esse período. São números motivantes mas não temos expectativas quanto a isso. O MDP é um hobbie. No fundo, gostaríamos de ter mais tempo para nos dedicarmos a aprofundar e alargar o objecto da informação que divulgamos, mas, além do MDP, cada um de nós tem toda uma vida a cumprir.
Sentem que há uma sensação de impunidade nos gestores que, dia após dia, assinam despachos para despesas públicas sem sentido?
ROM: É óbvio e é um sentimento generalizado, caso contrário a má despesa pública não tinha o estatuto de costume nacional, tal como é retratado no blogue. Ficamos sempre surpreendidos como é que estas questões não são exploradas pelos partidos, outros grupos de cidadãos e até pelos media.
Apesar de tudo, têm um número muito pequeno de seguidores no Facebook. Os portugueses não estão interessados em saber a forma como o dinheiro dos seus impostos é gasto?
ROM: Ultrapassámos os 2.500 seguidores no Facebook, o que pode ser considerado pouco tendo em conta a dimensão dos problemas que existem no país. Mesmo assim, temos recebido muitas mensagens de pessoas que não nos conhecem a dar-nos força para continuarmos. É sinal que o trabalho que estamos a desenvolver faz sentido.
Quais os próximos passos do projecto Má Despesa Pública?
ROM: Infelizmente não temos tempo para muito mais, o que muitas vezes nos impede até de responder a todas as solicitações que nos chegam. Temos várias ideias em mente, no entanto também nos faltam meios para implementá-las. Mas nada disto é dramático para que o projecto prossiga.
O Má Despesa Pública poderá, caso a sua dimensão assim o permita, tornar-se num projecto comercial, com periodicidade programada e colaboradores remunerados?
BR: Não temos planos nesse sentido, além de que o Má Despesa dificilmente poderia ter um carácter comercial, tendo em conta a sua essência. No fundo, estamos aqui para apontar o dedo à má gestão pública, como mero exercício cívico, de forma independente e apartidária.
Ilustração: Paulo Capdeville