ONG: Propostas de Lula “sinalizam uma mudança significativa em relação à postura do governo Bolsonaro”



Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência do Brasil no passado dia 1 de janeiro, com um programa que procura romper com as políticas de extrema-direita do antecessor Jair Bolsonaro, sob o qual a desflorestação da Amazónia, por exemplo, terá aumentado cerca de 56%, segundo dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazónia. Parte central desse recomeço é o reforço das medidas para proteger os povos indígenas brasileiros e o ambiente do qual dependem.

No programa eleitoral apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral, a coligação ‘Brasil da Esperança’, encabeçada pelo líder trabalhista, assume o compromisso “com a proteção dos direitos e dos territórios dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais” e que “temos o dever de assegurar a posse de suas terras, impedindo atividades predatórias, que prejudiquem seus direitos”. Para tal, o novo governo assume que “é fundamental implementar políticas que lhes assegurem vida digna e cidadania, respeitando e valorizando sua cultura, tradições, modo de vida e conhecimentos tradicionais”.

A recuperação da temática dos povos indígenas para o topo das prioridades da Presidência brasileira ficou também evidente na criação do primeiro Ministério dos Povos Indígenas, que será chefiado por Sónia Guajajara, da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, e que em 2018 foi eleita para o parlamento federal pelo estado de São Paulo.

Aquando da nomeação por Lula da Silva, Sónia Guajajara afirmou que “mais do que uma conquista pessoal, esta é uma conquista coletiva dos povos indígenas do Brasil, um marco na nossa história de luta e resistência” e que “a criação do Ministério dos Povos Indígenas é a confirmação do compromisso que o presidente Lula assume connosco, garantindo a nós autonomia e espaço para tomar decisões sobre nossos territórios, nossos corpos e nossos modos de viver”.

Sónia Guajajara, nova ministra dos Povos Indígenas (à esq.), Presidente Lula da Silva (ao centro), e a nova presidente da Funai, Joenia Wapichana (à dir).
Fonte:
Sonia Guajajara / Twitter

“O Brasil está no centro das discussões sobre a crise climática e, apesar de nós, povos indígenas sermos apenas 5% da população mundial, somos responsáveis por mais de 80% da proteção ambiental do mundo”, salientou a nova ministra.

Além da defesa dos povos indígenas, Lula da Silva tomou também como prioridades do seu novo governo defender o meio ambiente, combater a mineração ilegal na Amazónia e “o crime ambiental promovido por milícias, grileiros, madeireiros e qualquer organização econômica que aja ao arrepio da lei”, e “conservar a Amazônia, o cerrado, a mata atlântica, a caatinga, o pantanal, os pampas e os outros biomas e ambientes”.

Governo de Lula da Silva acende rastilho de esperança para os povos indígenas no Brasil

Todas estas medidas, em maior ou menor grau, terão impacto sobre os povos indígenas no Brasil, pelo que a ‘Green Savers’ procurou saber quais as expectativas sobre o novo tempo político que agora arrancou, numa altura em que os povos indígenas e as comunidades locais são considerados os principais guardiões da biodiversidade e que não há proteção da natureza sem o reconhecimento dos direitos dessas populações, um nexo que ficou abundantemente claro na redação final do Acordo de Kunming-Montreal que resultou da cimeira global da biodiversidade, a COP15.

“As medidas já anunciadas dão uma diretriz clara de defesa da Amazônia e dos direitos dos Povos Indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais”, explicou-nos Adriana Ramos, especialista em políticas públicas socioambientais do Instituto Socioambiental (ISA), uma organização não-governamental brasileira que assume a missão “defender a diversidade socioambiental brasileira, seja nos corredores de Brasília ou no chão da floresta”.

“As propostas sinalizam uma mudança significativa em relação à postura do governo Bolsonaro”, assinalou Adriana Ramos, recordando que o último Presidente “fragilizou os direitos e a proteção dos territórios, ao mesmo tempo em que defendeu atividades ilegais dentro das terras indígenas, estimulando a invasão e os conflitos”.

Durante o anterior governo, “os povos indígenas estiveram ainda mais vulneráveis à violência, à expropriação de recursos de suas terras, assim como à contaminação por mercúrio utilizado pelo garimpo ilegal”, ressaltou.

Questionada sobre se está confiante de que Lula da Silva colocará um fim a essas ameaças existenciais aos povos indígenas, a especialista afirmou que “acredito que o governo estará empenhado em coibir essas atividades que ameaçam a vida das comunidades”.

Sobre a criação do novo Ministério dos Povos Indígenas, Adriana Ramos lembra que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), uma organização que congrega associações indígenas por todo o país, apresentou já um conjunto de exigências ao novo governo que se dividem em seis grandes eixos estratégicos: Direitos Territoriais Indígenas, o restabelecimento de/ou criação de instituições e políticas sociais para povos indígenas, retomada e/ou criação de instituições e espaços de participação e/ou controlo social, interrupção de iniciativas anti-indígenas no congresso e ameaças no judiciário, a criação de uma agenda ambiental indígena, e o estabelecimento de alianças e parcerias internacionais para reforçar a voz desses povos.

Em dezembro, mulheres líderes do povo Yanomami, escreveram ao então Presidente-eleito Lula da Silva uma carta na qual pedem “o fim do tormento causado pelo garimpo ilegal”, a exploração de minerais preciosos que acontece à margem da lei e que é apontada como uma das principais ameaças à natureza e aos povos indígenas.

“Queremos viver na floresta viva e bonita. Nós Yanomami queremos viver novamente na terra sadia, que é a verdadeira terra-floresta Yanomami. Nós queremos que nossas crianças continuem nascendo bem e fortes. Precisamos de sua ajuda para curar a floresta e também os animais que aqui vivem”, dizem as indígenas na missiva.

COP15: Não há proteção da natureza sem reconhecimento dos direitos dos povos indígenas

Apesar de os líderes reunidos em Montreal para a COP15 terem, pela primeira vez, reconhecido a ligação entre a defesa da natureza e a proteção dos direitos dos povos indígenas, a abordagem terá, ainda assim, marginalizado esses grupos para uma posição secundária.

Adriana Ramos, apesar de reconhecer que “a Convenção da Biodiversidade é um instrumento importante”, lamenta que o acordo final tenha sido criado “sob um paradigma de proteção da natureza para o qual os povos indígenas e comunidades tradicionais são uma parte do processo e não protagonistas”.

A especialista relatou-nos que essa perspetiva, felizmente, está a mudar, uma vez que “estudos arqueológicos atestam que essas populações são fundamentais para os processos que geram e mantêm a diversidade biológica que se quer proteger”. No entanto, “os mecanismos da Convenção ainda estão distantes de incorporar devidamente esse entendimento”.

Momento da oficialização da adoção do Acordo Global para a Biodiversidade, na COP15, em Montreal, Canadá, a 19 de dezembro de 2022.
Fonte: UN Biodiversity

“Os povos indígenas e as comunidades tradicionais, com seus modos de vida distintos, estão envolvidos direta e historicamente na geração e manutenção da biodiversidade e devem, portanto, estar entre os tomadores de decisão, protagonistas dessa agenda”, declarou, acrescentando que hoje “há uma preocupação pelo fato de que o processo histórico de estabelecimento de áreas protegidas se deu sob um paradigma de conservação sem gente, em que povos e comunidades muitas vezes foram impactados e deslocados em nome de uma suposta preservação ambiental”.

Essa forma díspar de olhar para a natureza e para a sua conservação e restauro, que, de um lado, coloca a perspetiva ocidentalizada e do outro a visão indígena, “não garante que o cumprimento da meta se dará com eles [com os povos indígenas] como partes fundamentais das decisões, e não apenas como ‘elementos’ a serem respeitados”, sublinha Adriana Ramos.

No que toca ao financiamento para a conservação e recuperação de espécies, habitats e ecossistemas, outro dos pontos de grande destaque da agenda da COP15, a especialistas afirmou que atualmente as organizações indígenas, quilombolas e das comunidades tradicionais estão a criar os seus próprios fundos, que “assumem a gestão dos recursos de modo a viabilizar o apoio direto às organizações locais geridas por povos e comunidades tradicionais, atravessando, assim, o bloqueio de acesso a recursos via governos”.

E “essa é uma solução que deve ser ampliada”, defendeu Adriana Ramos, ao invés do modelo vigente que prioriza o financiamento dos Estados ao invés se colocar o foco sobre o financiamento direto das organizações locais.

“Está comprovado que a diversidade socioambiental é essencial para a conservação das florestas, que por sua vez são peças chave da manutenção da vida no planeta”, asseverou a especialista do ISA, pelo que “ter representantes indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais nos espaços de decisão é fundamental para promover políticas efetivas de conservação”.

Pela primeira vez, Funai tem mulher indígena como presidente

Além de uma ministra de raízes indígenas para liderar o novo ministério que devolverá a voz a esses povos, a agência governamental para os povos indígenas, a Funai, tem também agora, pela primeira vez em 55 anos de existência, uma mulher indígena como presidente, a advogada Joenia Wapichana.

Joenia Wapichana, nova presidente da Funai (ao centro em pé).
Fonte: Funai

A Funai tem como objetivo lutar pela “plena autonomia e autodeterminação dos povos indígenas no Brasil, contribuindo para a consolidação do Estado democrático e pluriétnico”, indica o órgão no seu website.





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