Paraguai: Orquestra infantil faz música com instrumentos feitos de lixo



Duas grandes antigas embalagens de enlatados simulam o som de uma guitarra clássica. Raios-X velhos funcionam como pele de um tambor onde se batuca. A conjugação de uma tigela de salada de alumínio amolgada, cordas afinadas com garfos e aquela que deve ter sido uma elegante mesa dá origem a um violino.

No aterro sanitário de Cateura, no Paraguai, estes instrumentos musicais são os únicos acessíveis, por isso, muito estimados – as melodias nascem a partir do lixo, num ambiente que afinal não é inóspito nem aos mais aclamados compositores da história da música.

No Paraguai nasceu uma orquestra composta por 20 crianças que utilizam instrumentos musicais feitos a partir de desperdícios recolhidos num aterro sanitário onde os seus pais trabalham como catadores de lixo. Trata-se de Cateura, um vasto entulho fora da capital do país, onde 25 mil famílias vivem em condições de pobreza extrema.

O reportório d’A Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura não reconhece limitações geradas pelas características dos seus instrumentos – o gosto musical é requintado, tal como a qualidade do som produzido. Desde Beethoven a Mozart, viajando até Frank Sinatra e aos Beatles, um vasto leque dos grandes clássicos musicais é reproduzido pelos jovens músicos do aterro.

Favio Chavez, assistente social e professor de música, foi quem fez nascer este projecto. Ele abriu uma pequena escola de música no aterro há cinco anos, com o objectivo de manter os jovens longe de problemas e de comportamentos de risco. Na falta de instrumentos musicais, pediu a um catador de lixo que construísse alguns a partir de materiais reciclados. Os jovens aderiram com agrado ao projecto.

A música revelou-se para eles uma forma de contornar as precárias condições de vida a que estão sujeitos e de alterar, assim se espera, o seu futuro. Rocio Riveros, de 15 anos, levou um ano a aprender a tocar a sua flauta, feita a partir de latas. “Agora não posso viver sem a orquestra”, revela o jovem.

A vontade maior é a de “proporcionar a estas crianças e às suas famílias uma maneira de saírem do aterro”, explica Chavez. Assim, o trabalho começa por permitir ao grupo viajar para fora do Paraguai, divulgando o seu trabalho. Este ano, os jovens já actuaram no Brasil, no Panamá e na Colômbia. Espera-se que façam uma exibição na exposição que abre no próximo ano em sua homenagem no Museu de Instrumentos Musicais em Phoenix, Arizona.

A ligação com este museu foi estabelecida por Alejandra Amarilla Nash, uma realizadora de documentários paraguaia. Ela e a produtora Juliana Penaranda-Loftus acompanharam a orquestra durante anos, resultando daí o filme Aterro Harmónico. “É uma história muito bonita e também se encaixa muito bem no tema da ingenuidade dos seres humanos à volta do mundo, usando o que têm à sua disposição para criar música”, disse Daniel Piper, curador do museu de Arizona.

Num ambiente aparentemente hostil e infértil, a magia torna-se de facto real. Estas crianças descobriram que tampas de garrafa funcionam perfeitamente como botões de saxofone e que o My Way do Sinatra, entoado a partir de um latão velho, pode ter qualidade e ser admirado por outros. É com base neste saber e no poder da educação musical que as famílias de Cateura acreditam agora num futuro mais próspero para os seus filhos.

Para já, as conquistas são significativas e acalentam o espírito dos jovens músicos. “Graças à orquestra, estivemos no Rio de Janeiro. Tomámos banho no mar, nas praias de Ipanema e de Copacabana. Nunca pensei que os meus sonhos se tornariam realidade”, diz Tania Vera, de 15 anos, violoncelista que vive numa barraca de madeira perto de um riacho contaminado. A sua mãe tem problemas de saúde, o pai abandonou-as e a irmã teve de deixar a orquestra quando ficou grávida. Mas sonhar tornou-se possível – Tania alimenta o desejo de se tornar veterinária, assim como música.

Ada Rios, violoncelista de 14 anos, também encontrou uma oportunidade de mudança na música: “A orquestra deu um novo sentido à minha vida, porque em Cateura, infelizmente, muitos jovens não têm a oportunidade de estudar já que têm de trabalhar ou são viciados em álcool e drogas”. A sua irmã mais nova, Noelia, com a inocência dos seus 12 anos de idade, garante: “Eu sou famosa na minha escola por causa da orquestra”.

O projecto musical veio transformar a realidade da comunidade. Agora os pais inscrevem os filhos na escola de música, crentes de que no aterro nascem artistas com uma promessa de futuro radioso.

Os instrumentos reciclados do aterro não têm por que invejar aqueles que são, aparentemente, melhores e mais apropriados. O seu som é admirável. Brandon Cobone, de 15 anos, garante que o seu violino contrabaixo feito de um barril amarelo altíssimo “soa maravilhosamente”.

As actuações da orquestra que se seguem ocorrerão em centros comerciais da cidade de Assunção, capital paraguaia, durante as férias. “Vamos angariar algum dinheiro, não muito, mas que vai ajudar as famílias de Cateura”, diz Chavez. “Poderão desfrutar de um bom jantar de Natal.”

É assim que, aos poucos, em tom compassado, a vida muda numa comunidade empobrecida, mas empreendedora. É nos cenários mais adversos que nascem as ideias mais criativas e que, com pouco ou nada, se alcançam grandes feitos – é a música para os nossos ouvidos.

 





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