“Podem perder-se vidas pela ganância de construir perto da água”, avisa Joaquim Poças Martins



“Os últimos tempos têm mostrado, em Portugal e na Europa, que estamos a ser sujeitos a tempestades com uma gravidade e frequências diferentes, muito superiores à que estávamos habituados, por causa das alterações climáticas”, alerta o engenheiro e professor universitário, que realça que esta situação vai “acentuar-se”.

Em entrevista à Lusa, o especialista refere que “durante o inverno ocorrem cheias, tempestades, e há zonas no Norte em que frequentemente há problemas de inundações causadas pelas cheias, e também problemas causados pelo mar, quando há tempestades”.

Poças Martins considera que “os cursos de água em zonas urbanas não devem ser entubados”, porque “a água vem sempre procurar o que era dela”.

“As vertentes continuam lá, e a água escorre para aqueles sítios e vai arrastar tudo o que tiver no caminho. Quando se construiu no sítio errado, isto é, que era da água, a água, mais cedo ou mais tarde, vai retomar o que era dela”.

Mas “com um problema adicional”, destaca: “estando entubada, as pessoas ficam com a noção de que poderão estar seguras, e pequenas cheias não acontecem, mas as grandes, para as quais as pessoas já perdem a memória, acontecem e podem ser devastadoras. Podem perder-se vidas pela ganância de construir demasiado perto das linhas de água”.

Ainda assim, acredita que, “felizmente, vai ser a economia [a estar em risco] antes de as vidas estarem em jogo”.

“Vêm aí duas ou três cheias muito grandes. As seguradoras vão deixar de pagar os danos. As pessoas aí vão ter de tomar uma decisão. Se continuam [a viver em zonas vulneráveis] e correm o risco de ficar sem nada, ou se mudam, e aí tem de haver algum tipo de apoios para que isso aconteça. As casas estão lá, estão mal, mas estão legalizadas”, concretiza.

Quanto ao mar, “as alterações climáticas vão determinar duas coisas, uma delas muito longínqua, que será um aumento do nível do mar”, mas “há uma coisa muito pior e muito mais perigosa do que esta, que é o facto de previsivelmente virem a ocorrer tempestades do género da que aconteceu há pouco mais de um ano na Figueira da Foz”.

“Há fundos comunitários para fazer barreiras de engenharia fortes que resolvem algumas cheias e algumas tempestades, mas vamos ser claros: as forças da Natureza nunca ninguém as venceu. Quando vier aquela força da Natureza, pode ser devastador”, afirmou, lembrando o exemplo do furacão Katrina, que assolou a costa sul dos Estados Unidos em 2005, causando mais de 1.800 mortes.

O especialista reitera que “as pessoas vão assustar-se primeiro, por danos patrimoniais, e, por causa disso, terão de defender depois as suas vidas”.

Nessa altura, “os políticos, com certeza, potenciarão soluções, apoios, subsídios para as pessoas se mudarem, e não apenas para fazer barreiras e paredes, porque infelizmente não resolvem”.

Como acontece com o entubamento de cursos de água, “quando se sobem essas barreiras, cria-se uma falsa sensação de segurança e, de um momento para o outro, aparece uma coisa terrível que mata pessoas”.

Entubar as ribeiras “tem ainda o grave inconveniente de esconder a poluição”, criando a “tentação de fazer o escoamento de líquidos que até podem ser mortais, e que são poluentes, para essas linhas de água entubadas, dificultando a fiscalização”.

O esforço para reabilitar algumas ribeiras começou na década de 1990, nota, e “Gaia e Porto são exemplos a nível nacional de reabilitação de ribeiras”, como a da Granja, no Porto.

“Hoje em dia, os paisagistas, engenheiros, tiram partido das ribeiras em vez de as esconder. No passado, para simplificar, ‘há ali uma ribeira, entuba-se e posso fazer uma rua completamente plana como se a ribeira não estivesse lá’. Pondo a ribeira em jogo, é mais complexo o projeto, o resultado é muito melhor”.

O engenheiro geriu esse processo em Vila Nova de Gaia e no Porto e conta que as pessoas criaram um “sentimento de pertença” em relação às linhas de água “de que depois já não abrem mão”.

A solução para muitos destes problemas é o ordenamento do território, considera.

“Quando sobrevoamos um país, vemos o grau de organização desse país, a maneira como as casas estão ordenadas, até. Sobrevoando Portugal, Holanda ou Inglaterra, temos perspetivas diferentes. Nesses países, há casas no sítio das casas, cultivos no sítio dos cultivos, floresta no lugar de floresta. Nós cá temos uma confusão muito grande. Confusão essa que leva, por exemplo, a casos como Pedrógão Grande. As casas no meio da floresta ardem. Custa muito cara a dispersão, a pessoa constrói no sítio que quer e exige que se leve lá estrada, água, luz. O país fica mais caro por essa dispersão”.

Joaquim Poças Martins é licenciado em Engenharia Civil pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, e doutorado pela Universidade de Newcastle, em Inglaterra.

Desde 1974 é docente da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, onde dirige a Secção de Hidráulica, Recursos Hídricos e Ambiente.

É secretário-geral do Conselho Nacional da Água desde 2013 e foi, entre 1993 e 1995, secretário de Estado do Ambiente e do Consumidor do XII Governo Constitucional de Portugal, no último governo liderado por Aníbal Cavaco Silva.





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