Portugal e UE devem fazer mais para combater tráfico de espécies selvagens
O comércio de espécies selvagens de animais, de plantas e de fungos, e de partes deles, é altamente lucrativo e, desde que os registos começaram na década de 1970, tem crescido exponencialmente, salvo ligeiras quebras, como por exemplo durante a pandemia da COVID-19.
A exploração da vida selvagem é uma importante fonte de sustento para muitas comunidades humanas, especialmente em países em desenvolvimento onde os níveis de biodiversidade tendem a ser maiores do que nos países industrializados. As espécies selvagens de animais, plantas e fungos são fontes de alimento e de rendimento, têm importância sociocultural e espiritual e até recreativa.
O comércio, local, nacional e internacional, dessas espécies assume uma importância significativa para vários grupos, tanto para aqueles cuja subsistência delas depende como para os que nelas veem fontes de lucro fácil, se bem que ilícitas.
A Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Selvagens (CITES) é o instrumento internacional que estabelece as regras do jogo, que os países signatários têm de adotar, respeitar e verter nas suas respetivas legislações nacionais. A intenção é controlar e tornar mais transparente o comércio de espécies selvagens incluídas nos seus apêndices, umas estimadas 40 mil. Contudo, dada a biodiversidade que caracteriza o nosso planeta, isso é uma gota no oceano, visto que alguns estudos sugerem que existam perto de nove milhões de espécies de animais, plantas e fungos na Terra.
Algumas estimativas apontam para mais de 50 mil espécies envolvidas no comércio (legal ou ilegal) de vida selvagem, pelo que a monitorização atualmente feita poderá estar aquém do que seria preciso fazer. E a sobre-exploração por via do comércio continua a ser uma das principais ameaças à biodiversidade.
Ainda assim, apesar de a CITES ter um espectro limitado, especialmente ao nível de alguns grupos, como os invertebrados e fungos, é melhor do que nada. Contudo, o quadro fica muito incompleto, e sem uma imagem clara do que se está a passar dificilmente se conseguirá alcançar o derradeiro objetivo: impedir que o comércio de animais e plantas selvagens empurre para a extinção essas espécies.
E, tal como outros formatos comerciais, o comércio de espécies selvagens pode acontecer dentro dos limites da lei ou pode operar fora deles: o tráfico. O comércio ilegal de vida selvagem gera 69 e 199 mil milhões de dólares todos os anos, sendo por isso a terceira maior classe de comércio ilegal a nível global.
O mais recente relatório mundial sobre crimes contra a vida selvagem, de 2024, produzido pelo Departamento de Drogas e Crime das Nações Unidas (UNODC), revela que “o tráfico de espécies selvagens persiste em todo o mundo apesar de duas décadas de ações concertadas aos níveis internacional e nacional”. O trabalho analisou as apreensões feitas em 162 países, incluindo Portugal, entre 2015 e 2021, concluindo que foram afetadas perto de quatro mil espécies de animais e plantas, das quais cerca de 3.250 listadas na CITES.
Nesse período, os animais mais afetados pelo tráfico global de vida selvagem foram os rinocerontes, os pangolins, os elefantes, as enguias, os crocodilianos, os papagaios e catatuas, alguns carnívoros, tartarugas e cágados, cobras e cavalos-marinhos. No que toca às plantas, os grupos mais visados foram os cedros, as árvores de pau-rosa, as sapindáceas, as agaras e as orquídeas.
Embora reconheçam que existem “lacunas no conhecimento sobre a total dimensão do tráfico de vida selvagem e crimes associados”, os autores do relatório escrevem que “há evidências suficientes para concluir que esse continua a ser um problema significativo a nível global que está longe de ser resolvido”.
O papel da CITES
Em 1973, a comunidade internacional reconhecia “o crescente valor” das espécies selvagens de animais e de plantas em termos da sua beleza estética, da sua relevância cultural e científica e da sua importância económica.
Já nessa altura os países signatários da CITES declaravam que era urgente agir para impedir a sobre-exploração da vida selvagem por via do seu comércio internacional.
Todos os anos, vários milhares de milhões de dólares são gerados por esse tipo de comércio, centenas de milhões de animais e de plantas, ou de partes deles, cruzam fronteiras nacionais, e entre os países de origem e de destino podem passar por muitos outros.
Por ocasião do 50.º aniversário da CITES, Ivonne Higuero, Secretária-geral dessa convenção, em entrevista à Green Savers, apontou o comércio ilegal de espécies selvagens como uma “ameaça tremenda” à conservação da biodiversidade. Apesar do combate travado contra essas práticas ilícitas, incluindo a cooperação transacional entre forças de segurança de vários países, a responsável admitiu que é uma batalha “muito difícil”.
Sobretudo, porque, ao contrário das espécies listadas nos apêndices da CITES, cuja comercialização é regulada e, por isso, é possível controlá-la e assegurar, pelo menos em teoria, que não coloca em xeque a sobrevivência das espécies selvagens visadas, no caso do comércio ilegal saber, mesmo que por alto, o seu impacto na biodiversidade é praticamente impossível.
UE: um ponto nevrálgico do comércio internacional de vida selvagem
A União Europeia (UE) é um dos principais destinos do tráfico de espécies selvagens, estimando-se que seja o terceiro maior consumidor desse tipo de mercadoria, bem como um importante ponto de passagem para outros destinos.
De acordo com um relatório produzido pela organização não-governamental Traffic, que atua na área do combate ao tráfico de vida selvagem, em 2022 os Estados-membros da UE reportaram 3.642 apreensões de vida selvagem comercializada ilegalmente na região, uma redução face às 4.404 apreensões de 2021 e 4.238 de 2020. De salientar que este relatório tem base por apenas as espécies listadas na CITES.
O grosso das confiscações envolveu produtos medicinais, suplementos alimentares e cosmética derivados de animais e plantas regulados pela convenção. Foram ainda encontradas aves e répteis vivos, bem como partes de animais desses grupos e de mamíferos. Os corais foram também um dos grupos mais afetados.
A Alemanha surgiu como o principal destino na UE do tráfico de vida selvagem, com origem, sobretudo, na Tailândia, Indonésia, Vietname, Turquia e também Estados Unidos da América.
Segundo o mesmo relatório, Portugal registou, em 2022, 152 apreensões, figurando em 8.º lugar na lista dos países da UE que mais apreensões reportaram nesse ano.
Contudo, uma vez mais, deparamo-nos com um problema recorrente: não se sabe ao certo o que entra nem o que sai para lá das espécies listadas na CITES.
Em 2024, Pedro Cardoso, biólogo da conservação e investigador do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (CE3C), publicou, juntamente com outros colegas, um artigo na revista científica ‘Science’, alertando que “a União Europeia é um grande centro de comércio de vida selvagem”, mas que as regras comunitárias nesse campo limitam-se, quase exclusivamente, à transposição das normas da CITES.
De recordar que, em 2022, a UE apresentou um novo plano para reforçar o combate ao tráfico de vida selvagem, mas os autores do artigo consideram que precisava de ser mais ambicioso para assegurar que “a vida selvagem comercializada dentro da UE está detalhadamente documentada e foi obtida legalmente e de forma sustentável”.
Existem algumas plataformas e bases de dados, como o TRACES e o EU-TWIX, com as quais se pretende registar e controlar as entradas e saídas de espécies não-humanas do bloco europeu, mas mesmo assim não chega para compreender realmente o que se está a passar, nem quando ou onde, nem para pôr fim ao comércio ilegal.
As incoerências
Um dos grandes problemas do atual quadro regulatório do comércio internacional de espécies selvagens é a falta de correspondência entre o que é legal num país e o que é ilegal noutro. Embora a CITES tenha vindo, de alguma forma, tentar resolver essa desarticulação, quando se trata de espécies não listadas, a trama adensa-se.
Considere-se o seguinte cenário hipotético: num dado país, capturar e comercializar certa espécie animal é ilegal, ainda que ela não faça parte da CITES.
Um grupo de indivíduos fê-lo e, através de rede de contactos, conseguiu, à margem da lei, tirar o animal do país e fazê-lo chegar à UE. Não havendo nenhuma lei ou regulamento europeu ou internacional que vise essa espécie, o animal, obtido ilegalmente na origem, entra na UE sem quaisquer obstáculos, através de um vácuo legal. Chegado à UE, torna-se, para todos os efeitos, “não ilegal”, razão pela qual Pedro Cardoso considera que a UE poderá estar a servir de local de “lavagem de crimes contra a vida selvagem”. Assim, a partir da UE torna-se possível exportar para outros países com regras mais apertadas, como é o caso dos Estados Unidos da América (EUA).
Nesse país do outro lado o Atlântico, a Lei Lacey estabelece que todas as espécies capturadas ilegalmente na origem são automaticamente consideradas ilegais nos EUA. Dessa forma, usando a UE como centro de operações, os grupos de tráfico de vida selvagem conseguem contornar os obstáculos, serpenteando por entre as lacunas na lei.
Estas falhas na legislação europeia não são novidade, mas facto é que se mantêm. Então, por que razão não se fez ainda nada? O biólogo reconhece que a UE é um colosso burocrático no qual qualquer alteração legislativa pode demorar muito tempo até ter força de lei, se chegar alguma vez a ser acordada pelos seus Estados-membros.
“Por exemplo, sabe-se que a Diretiva Habitats está completamente desatualizada, que já não serve para muito do que precisamos, mas para alterá-la estaríamos a falar de um trabalho de décadas”, afirma, apontando que “é muito difícil alterar seja o que for a nível europeu, é tudo muito burocrático”.
Ainda assim, Pedro Cardoso e os colegas defendem que deve haver uma base de dados na UE que registe e monitorize efetivamente todas as espécies selvagens que entram e saem do território, quer estejam ou não listadas na CITES. “Nós temos de saber exatamente o que entra e o que sai da União Europeia”, frisa.
Outras recomendações feitas por este grupo de especialistas é ter na UE algo semelhante à Lei Lacey e, ainda, zelar mais fortemente pela sustentabilidade do comércio de espécies selvagens, mesmo que seja legal.
Para Pedro Cardoso, “deveria haver uma demonstração, a nível europeu, de que estas importações têm uma origem sustentável, mesmo sendo legais”. Isto, porque a captura e comercialização de determinada espécie pode ser legal, mas estar a pôr em risco a sua sobrevivência na Natureza, sendo, por isso, insustentável.
Cooperação internacional é fundamental
Tal como é feito ao nível do combate a outros tipos de crimes de escala internacional, como o tráfico de armas, de drogas e de humanos, a cooperação entre países é essencial para travar o comércio ilegal de espécies selvagens.
Reflexo disso é, por exemplo, o Consórcio Internacional para o Combate aos Crimes contra a Vida Selvagem (ICCWC), uma organização que inclui o secretariado da CITES, a Interpol, o Departamento de Drogas e Crime das Nações Unidas, o Banco Mundial e a Organização Mundial das Alfândegas.
As operações Thunder têm sido uma das principais iniciativas deste consórcio contra o tráfico global de espécies selvagens. A mais recente, em 2023, resultou em mais de duas mil apreensões de animais e plantas (incluindo partes e derivados) entre 2 e 27 de outubro, e em 500 detenções, num esforço que envolveu 133 países.
Do total de espécimes apreendidos, contaram-se mais de 300 quilogramas de marfim, milhares de ovos de tartarugas, 30 toneladas de plantas, 556 toneladas de madeira e dezenas de partes de grandes felídeos e chifres de rinocerontes. Entre os animais vivos apreendidos registaram-se quatro grandes felídeos, 15 pangolins, 53 primatas e 1.370 aves. E isto é somente a ponta do icebergue.
Apesar destas vitórias pontuais, é preciso fazer muito mais. Dizendo que no combate aos outros tipos de tráfico “neste momento há mecanismos bastante bem estabelecidos de cooperação entre autoridades e trocas de informações”, Pedro Cardoso lamenta que tal é algo que ainda não acontece no combate ao tráfico de vida selvagem “e deveria ser estabelecido”.
Aproveitando as falhas na lei
O tráfico de vida selvagem é muitas vezes descrito como uma importante fonte de receitas para financiar outras operações de organizações criminosas mais vastas e diversificadas. No entanto, pode também ser um fim em si mesmo.
“Como é tudo muito menos regulado, há quem se especialize neste tipo de tráfico, porque sabe que vai ficar impune, enquanto sabe que, por exemplo, se estiver a traficar drogas juntamente com animais ou plantas a probabilidade de não só ser capturado como de ter uma pena mais dura será muito maior”, explica Pedro Cardoso.
O tráfico de vida selvagem pode ser feito apenas por uma ou duas pessoas em associação que “vão daqui da Europa capturar espécies ao Brasil e trazem-nas sem nenhum problema”. Ainda assim, o tráfico de vida selvagem pode ser feito também por organizações criminosas mais amplas, que aproveitam os canais e contactos que já têm para expandir os seus negócios ilícitos e aumentar as fontes de lucro.
A responsabilidade dos países mais ricos
O comércio de espécies selvagens, como acontece com todos os outros mercados, é regido pela lei da oferta e da procura. Embora muitas vezes se possa cair na tentação de achar que o problema está nos países de origem, que devem ser mais fortemente regulados e que as pessoas que praticam crimes contra a vida selvagem com vista à sua comercialização devem ser severamente punidas, não podemos esquecer que a procura é a outra face deste negócio sujo.
A maior parte dos fluxos comerciais de espécies selvagens movem-se do Sul Global, onde estão os países mais biologicamente diversos do mundo e também os mais pobres, para o Norte Global, onde estão os países mais ricos e os mais vocais, pelo menos retoricamente, no que toca à defesa da biodiversidade.
“Grande parte do comércio é dos trópicos para o Norte, para a Europa e Estados Unidos. Aqui é que está a procura, o grande poder económico, e é lá que está a grande biodiversidade”, refere Pedro Cardoso.
De salientar que nem todos os que acabam por comprar animais selvagens ilegalmente obtidos na origem fazem-nos cientes de que estão a cometer um ato ilícito ou a contribuir ativamente para a manutenção de um mercado negro. Pedro Cardoso explica que “muitas vezes são pessoas realmente muito interessadas naqueles animais e que não se apercebem que podem estar a contribuir para este tráfico e para o declínio das populações nos países de origem”.
Além da procura por animais de estimação peculiares, há ainda os mercados das madeiras exóticas “que podem ser vendidas a preço exorbitantes” e da medicina tradicional, “que também move muito dinheiro”.
Por isso, os países mais ricos são, “sem dúvida”, declara o biólogo, um dos grandes motores das ilegalidades cometidas contra as espécies selvagens.
A internet e as redes sociais
A internet e as redes sociais online vieram permitir que o tráfico de espécies selvagens possa ser feito de forma mais rápida, ampliar o mercado a uma escala global e evadir o combate lançado pelas forças de segurança. Veja-se, por exemplo, o quão fácil é criar um site ou uma página numa rede social. É quase um “efeito Hidra”: corta-se uma cabeça, mas logo duas surgem no seu lugar.
Para Pedro Cardoso, o mundo digital veio realmente criar um sem número de oportunidades para o comércio ilegal de espécies selvagens, mas o investigador acredita que, ao mesmo tempo, o tráfico de espécies feito online pode também facilitar, de alguma forma, o combate a essas práticas ilegais. Isto, porque havendo as ferramentas e os recursos, financeiros e humanos, poderá ser mais fácil apanhar quem opera essas páginas.
“Muitas vezes é mesmo uma questão de falta de fundos por parte das autoridades, ou falta de interesse ou conhecimento”, observa o investigador, porque “muitas vezes este comércio é feito às claras”. Mas nem sempre é fácil perceber que ele está a acontecer.
Para escaparem à deteção, muito traficantes de espécies selvagens usam sistemas de códigos, conhecidos por aqueles que se movem nesse mercado negro, para publicitar ilegalmente animais e plantas à vista de todos. É preciso alguém que saiba destrinçar essa gíria obscura para identificar práticas criminosas.
“Alguém que tenha conhecimento desses códigos facilmente consegue ver este comércio às claras”, refere Pedro Cardoso, que salienta que, se confrontado com um combate mais apertado, “muito deste comércio poderá passar a ser feito de forma mais dissimulada”, incluindo, por exemplo, na chamada “dark web”.
Contudo, passando para esse “lado negro da internet”, é possível que venha a perder clientela, especialmente aquelas pessoas que compravam espécies selvagens sem saber que estavam a cometer uma ilegalidade. Se alguém for à “dark web” em busca seja do que for, é provável que saiba que está a esticar, senão mesmo a ultrapassar, os limites da legalidade.
Portugal não está devidamente preparado para combater tráfico de vida selvagem
Alguns trabalhos apontam Portugal como um importante ponto de passagem de comércio ilegal de vida selvagem, estimando-se que tenha reportado 3% do total das apreensões a nível europeu entre 2001 e 2010.
Em Portugal, as apreensões inserem-se em duas grandes tipologias: pessoas que têm ou transportam ilegalmente espécies selvagens sem saber que estão a infringir a lei e pessoas e grupos que estão cientes da ilegalidade cometida e que se movem por interesses comerciais.
No entanto, mais uma vez, também para Portugal não existem dados estruturados e claros sobre o que entra e o que sai, mas sabe-se que o país é tanto importador como exportador de espécies selvagens, tanto legal como ilegalmente.
Ainda assim, o biólogo Rui Arêde, na sua tese de mestrado, analisou a tendência de apreensões de vida selvagem em Portugal entre 2000 e 2019, e concluiu que existe “uma tendência crescente do número de apreensões”. Embora isso esteja em linha com o aumento das apreensões a nível mundial, o biólogo diz que não é possível afirmar que, de facto, esteja a haver um aumento do comércio ilegal de espécies selvagens no país.
O aumento das apreensões pode ter duas explicações: realmente houve uma maior procura por produtos de vida selvagem ou é fruto do “aumento da importância dada a este problema na agenda política de várias nações nos últimos anos e, consequentemente, o aperto do controlo e da fiscalização dos mercados e das fronteiras nacionais”.
“No entanto, devido à ausência de dados que demonstrassem a variação do esforço de fiscalização em território português, não se pode afirmar, com precisão, qual o principal motivo do aumento do número de apreensões a nível nacional”, aponta Rui Arêde.
No que toca aos grupos de espécies selvagens e derivados mais frequentemente apreendidos em Portugal entre 2000 e 2019, destacam-se os elefantes, as enguias e os pitões, sendo que os objetos de marfim são os produtos de vida selvagem mais apreendidos no país. Aves exóticas protegidas, répteis e alguns grupos de mamíferos, incluindo primatas, são também muito procurados em Portugal para manter como animais de estimação.
Quanto aos países de origem, Rui Arêde constatou que Angola, Moçambique e Brasil foram os principais exportadores da vida selvagem apreendida nesse mesmo período em Portugal.
Por seu lado, Pedro Cardoso, investigador do CE3C, considera que, pelo menos relativamente ao grupo dos invertebrados que acompanha mais proximamente, o comércio de espécies selvagens não parece ser “demasiado crítico”, sendo “menos importante do que na Europa Central”, em países como a Alemanha, República Checa e Polónia, onde é muito mais expressivo, move muito mais dinheiro e abrange um conjunto muito mais vasto de espécies não-humanas.
Apesar disso, entende que o tráfico de espécies selvagens não é visto de forma séria em Portugal, pois, caso contrário, “já teríamos um sistema de informações, já teríamos leis mais adaptadas à realidade”.
Aliás, dados indicam que em todo o país existam apenas três inspetores exclusivamente dedicados aos crimes cometidos contra a vida selvagem, e todos eles sediados na região de Lisboa, razão pela qual Rui Arêde defende que “parece plausível aumentar os incentivos à contratação de profissionais especializados e preparados na prevenção e no combate do comércio ilegal de vida selvagem”.
E aponta falhas no próprio preenchimento de relatórios de apreensões feitas em Portugal de espécies listas na CITES, sugerindo, por isso, “um maior incentivo ao rigor utilizado no preenchimento destes documentos”, pois “só desta forma se conseguirá ter uma imagem mais clara da dimensão do crime contra a vida selvagem que ocorre ou transite por Portugal”.
Ainda que instrumentos legislativos europeus, como a Diretiva Habitats e a Diretiva Aves, permitam zelar pela conservação das espécies consideradas autóctones em Portugal, outras espécies não nativas continuam fora da equação e a ser canalizadas para os fluxos de comércio, tanto legal como ilegal.
“Para aquelas espécies que não são autóctones, que vêm de fora ou que estão cá e estamos a fazer reprodução aqui na União Europeia e a exportar, penso que o interesse [em combater esse comércio] ainda não existe, propriamente. Há muito pouca preocupação”, admite o Pedro Cardoso.
Pelo menos no meio académico, parece haver já um movimento para tentar reunir e transmitir o conhecimento existente sobre o comércio de espécies selvagens na Europa, de que é exemplo o projeto GLITSS. Agora é tentar perceber como fazê-lo chegar “a quem tem o poder de tomar decisões e de fazer as coisas mexerem”, aponta Pedro Cardoso.
Uma corrida contra o tempo e contra o tráfico
Todos os anos diversas espécies de seres vivos são identificadas e descritas pela primeira vez. São tesouros descobertos num mundo biologicamente cada vez mais pobre.
As descobertas são anunciadas com grande entusiasmo e correm pela imprensa e pela internet. Fazem as delícias de muitos curiosos e amantes da Natureza, mas fazem também brilhar os olhos dos traficantes.
“Temos espécies novas para a Ciência a serem descritas, em diferentes países, que, sendo novas, há uma grande probabilidade de serem raras por nunca antes terem sido detetadas, que só se conhecem de um ou dois locais a nível mundial, e há traficantes que, assim que têm conhecimento de que esta espécie é descrita vão ao local onde foi descrita e exterminam a população completamente”, conta-nos Pedro Cardoso.
“É muito difícil saber o que está a acontecer, porque tudo isto é feito pela calada”, aponta.
Seria possível acabar com todo o comércio de espécies selvagens?
Sabendo de todas as lacunas e incoerências existentes nos atuais instrumentos legislativos e regulatórios para controlar o comércio de espécies selvagens, que mesmo quando as coisas são feitas dentro da lei pode não ser sustentável e acabar por pôr em xeque a sobrevivência das espécies, não seria mais fácil seguir o princípio da precaução – que estipula que quando não se sabe as consequências de determinado ato ou atividade, não se deve permiti-los – e acabar com todo o tipo de comércio de vida selvagem?
Seria, talvez, o mais fácil e mais seguro, mas a questão é mais complexa do que isso.
“Acabar de todo nunca será uma solução”, diz Pedro Cardoso, “porque muito deste comércio ou destas capturas, se bem feitos, até podem contribuir para a conservação”, incluindo as receitas geradas por essa atividade que podem ser canalizadas para iniciativas de proteção da Natureza e da vida selvagem.
Além disso, o comércio de espécies selvagens, quando bem feito e regulado, pode também promover estratégias que visem a conservação desses mesmos recursos, num efeito que, em última análise, deverá beneficiar a própria vida selvagem.
Mudar a forma como se olha para o comércio de vida selvagem
Rui Arêde admite que “as mudanças culturais e as tendências impostas pela demanda dos consumidores são frequentemente difíceis de reduzir e as mudanças em países de origem mais vulneráveis e mais pobres são tipicamente vistas como intervenções ocidentais indesejáveis”.
Por isso, entende que o combate ao tráfico de vida selvagem deve concentrar-se mais fortemente “em portos, aeroportos e outros locais propícios à prática de infrações dos países de destino ou economicamente mais estáveis”, pois “pode revelar-se mais fácil e auxiliar consideravelmente na redução do comércio ilegal de vida selvagem”.
Para o biólogo Pedro Cardoso, deveria existir uma mudança na forma como se olha para o combate ao tráfico. Atualmente, existem listas das espécies cuja captura e comercialização são proibidas ou só podem ser feitas de forma muito controlada. Isso deixa de fora todas as outras inúmeras espécies, incluindo todas as novas que venham a ser descobertas e que podem entrar imediatamente nos circuitos de tráfico, uma vez que não é possível alterar listas que constam de instrumentos internacionais cada vez que a Ciência identifica um novo animal, planta ou fungo.
Por isso, para Pedro Cardoso, o que deveríamos ter era “listas positivas”, ou seja, “listar aquilo que se pode importar ou exportar, e tudo o resto é ilegal”.
O investigador, como outros, acredita que esta seria uma forma mais eficaz de garantir a legalidade e sustentabilidade da comercialização de espécies selvagens e de delapidar os esforços ilegais, a bem da conservação das espécies selvagens e da proteção da incomensurável diversidade de formas de vida que torna o nosso planeta único.