Entrevista: Pradarias marinhas podem beneficiar dos nutrientes de efluentes humanos. Mas em excesso podem ser fatais

As pradarias marinhas são dos habitats aquáticos costeiros mais amplamente difundidos em todo o planeta, encontrados dos trópicos aos círculos polares.
Embora cubram apenas 0,1% do leito marinho, são dos locais mais produtivos e biologicamente diversos, servindo de refúgios a uma grande variedade de animais, desde peixes a invertebrados, e fornecem uma panóplia de serviços ecossistémicos, como o sequestro de carbono e a purificação da água.
Apesar das diferenças no que toca à composição das comunidades de animais que nelas habitam, consoante a região da Terra, as pradarias marinhas têm um elemento central em comum: as ervas marinhas.
Contrariamente ao que se poderia pensar, as ervas marinhas não são algas, mas plantas, semelhantes às que encontramos em terra, e brotam de substratos marinhos arenosos ou lodosos. Um pouco em contraciclo com a história evolutiva de muitas outras espécies, as ervas marinhas são plantas originárias de ambientes terrestres que, ao longo de milhares de anos, se foram adaptando e colonizando zonas de água doce, primeiro, e depois zonas marinhas pouco profundas, capazes de tolerar a salinidade e de singrar debaixo de água.
À semelhança da relva e do escalracho em terra firme, as ervas marinhas enterram as suas raízes na areia ou no lodo, das quais surgem rizomas, uns caules subterrâneos que crescem horizontalmente. Ao longo dos rizomas, vão surgindo pequenos nódulos dos quais, para baixo, crescem raízes e, para cima, brotam caules verticais que saem da areia e dão origem às folhas.
Apesar da importância que lhes é reconhecida, as pradarias marinhas estão em risco, estimando-se que o seu declínio tenha começado algures na década de 1930 e que todos os anos cerca de 7% desses habitats estejam a desaparecer em todo o mundo, algo como um campo de futebol de ervas marinhas a ser perdido a cada 30 minutos.
De acordo com o Programa Ambiental das Nações Unidas, as pradarias marinhas são dos ecossistemas costeiros menos protegidos do mundo, e têm entre as suas principais ameaças os efluentes agrícolas e industriais, o desenvolvimento em zonas costeiras e, claro, as alterações climáticas. A perturbação do leito marinho, que pode, por exemplo, levar à quebra dos rizomas, é também um dos grandes fatores de pressão.
Nem todas as atividades humanas são necessariamente prejudiciais
Tal como outras plantas, o crescimento e disseminação das ervas marinhas dependem da qualidade e quantidade de nutrientes na água e da disponibilidade de luz solar que recebem.
Contudo, se os nutrientes forem em excesso, como resultante de efluentes de atividades humanas, mesmo que sejam aqueles dos quais as ervas marinhas dependem, podem tornar-se tóxicos e ser fatais. O excesso de nutrientes pode também provocar um fenómeno conhecido como eutrofização, ou seja, uma proliferação excessiva de algas e de fitoplâncton que acabam por impedir que a planta receba luz solar e possa fazer a fotossíntese, levando à sua morte.
Se, por outro lado, a adição de nutrientes for moderada, as pradarias marinhas podem mesmo beneficiar e prosperar muito mais do que na ausência dessas adições.
Essa é uma das principais conclusões de um estudo liderado por Vasco Vieira, investigador do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE), publicado em outubro na revista ‘Communications Earth & Environment’, e resulta da colaboração com outros especialistas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil), da Universiade de Swansea (Reino Unido) e da Universidade de Costa Rica.
A investigação debruçou-se sobre pradarias marinhas no Brasil, Costa Rica, Reino Unido e também em Portugal, nos estuários do Rio Tejo e do Rio Sado. Comparando as pradarias marinhas das restantes regiões do mundo com as que existem nesses dois estuários portugueses, Vasco Vieira percebeu que “em condições prístinas”, ou seja, sem os efluentes humanos, “o crescimento das ervas marinhas está limitado pela escassez de nutrientes”.
Durante várias décadas, os efluentes das atividades humanas têm levado à degradação das pradarias marinhas, com substâncias tóxicas e nutrientes em excesso a ser lançados nesses ecossistemas aquáticos. Contudo, com o avanço das tecnologias e regulamentos de tratamento das águas residuais e com as alterações nas práticas agrícolas, os impactos dos efluentes começaram a ser menos negativos.
“Em concentrações moderadas, as ervas marinhas podem beneficiar dessas adições de nutrientes”, conta Vasco Vieira à Green Savers. Mas, diz-nos o investigador em entrevista telefónica, só se essas concentrações não ultrapassarem o limite para lá do qual se tornam tóxicas ou se não promoverem a proliferação de algas que acabam por impedir as ervas marinhas de fazer a fotossíntese.
Este estudo salienta-se também pelo facto de afirmar que os resultados obtidos desafiam uma conceção firmemente enraizada que diz que as fontes humanas de nutrientes são inevitavelmente prejudiciais para as pradarias marinhas. Essas adições de nutrientes, desde que moderadas, podem beneficiar as ervas marinhas, sem pôr em causa outras eventuais espécies que com elas possam competir. Além disso, na ausência dessas plantas, por exemplo, o carbono, ao invés de ser captado, é libertado para a atmosfera pelos sedimentos desprovidos de ervas marinhas.
As pradarias marinhas e as ETAR
Muitos dos nutrientes de fontes humanas que acabam nas pradarias marinhas provêm das estações de tratamento de águas residuais (ETAR), cuja eficiência no tratamento dos efluentes tem permitido reduzir os efeitos negativos sobre esses ecossistemas e até, à exceção de situações de excessos, promover o seu bom funcionamento e desenvolvimento.
Mas a relação entre as pradarias marinhas e as ETAR vai muito para lá disso, sendo possível “conciliar as pradarias de ervas marinhas com o tratamento da água”, assegura Vasco Vieira.
“Isto significa que não precisamos de estar a impor às ETAR que mandem a água 100% limpa de nutrientes, porque as próprias pradarias de ervas marinhas podem fazer a remoção desse excesso de nutrientes, e de uma maneira natural”, explica-nos o investigador, “com benefício para o próprio ecossistema, com mais ervas marinhas, mais habitat, mais biodiversidade, mais esconderijo para as espécies de peixes que são recursos da pesca”.
E há também os benefícios para as próprias ETAR, uma vez que, por causa da ação das ervas marinhas, “levam menos tempo a tratar a água e são, por isso, mais eficientes”.
“E não é um benefício apenas para a empresa, mas para toda a sociedade”, garante, ainda para mais porque, levando menos tempo a tratar a mesma quantidade de água, consomem menos energia e, assim, reduzem a sua pegada carbónica.
No Tejo e no Sado
Recordando o trabalho de campo feito nos dois estuários portugueses entre 2021 e 2022, Vasco Vieira avança que no Tejo as pradarias marinhas, por terem mais nutrientes do que no Sado, têm mais biomassa e densidade por unidade de área, e, por isso, uma maior eficiência de ocupação do espaço.
Além disso, nas pradarias marinhas do Tejo os investigadores observaram uma maior abundância de invertebrados, relativamente ao estuário do Sado. Mas os níveis de biodiversidade eram praticamente semelhantes, num e no outro.
“Por isso, concluímos que as ervas marinhas no Tejo estão a beneficiar das descargas de nutrientes, seja por o rio vir com mais água doce no seu caudal que traz nutrientes ao longo do seu curso, seja dos que vêm dos efluentes agrícolas”, seja das descargas das ETAR ou da indústria alimentar, explica, acrescentando que algumas das áreas de ervas marinhas com as maiores eficiências de ocupação de espaço no Tejo “foi à saída da ETAR do Seixalinho e à saída da fábrica da Ribeiralves”.
Em contraste, “no Sado há tudo menos”, aponta Vasco Vieira, detalhando que a bacia hidrográfica é dez vezes menor do que a do Tejo, que o rio tem menos caudal e transporta menos água doce, e que são feitas menos descargas nesse corpo de água, tendo “muito menos ETAR”.
Essas condições explicam a diferença entre as pradarias marinhas do estuário de um dos rios e as do outro.
O problema dos mariscadores
Para Vasco Vieira, um dos grandes problemas da conservação das pradarias marinhas está relacionado com a atividade não regulada dos mariscadores, apontando que, no decorrer das suas buscas por bivalves que se escondem na areia, acabam por quebrar os rizomas das ervas marinhas.O resultado, explica-nos, é uma pradaria marinha fragmentada, com áreas com ervas marinhas e outras áreas sem.
Esse problema observa-se “principalmente no Tejo”, diz o investigador, mas não afasta que o mesmo se possa passar no Sado, embora nesse último rio as pradarias marinhas sejam de mais difícil acesso.
Embora no século XX o declínio das pradarias marinhas tenha sido associado aos efluentes humanos, Vasco Vieira diz-nos que esses ecossistemas têm vindo a recuperar nas últimas duas décadas.
“Neste momento, há vários lugares em que as pradarias de ervas marinhas estão em recuperação, em particular na Europa e em sítios onde há mais cuidado com o tratamento das águas residuais”, salienta o investigador.
“A partir do momento em que a sociedade passou a tomar consciência deste problema e a tomar medidas de controlo da qualidade da água dos efluentes, as ervas marinhas, nos locais onde isso é feito, começaram a recuperar e estão em recuperação”, afirma.
Nos locais onde as pradarias marinhas ainda estão em declínio, como no caso do estuário do Tejo, pode não ser por causa da disponibilidade de nutrientes. “No Tejo estão em declínio, mas não é por causa dos nutrientes. É por causa do mariscador clandestino”, declara Vasco Vieira.
Para o cientista, a resolução do problema poderia passar pela proibição da atividade não regulada de recolha de marisco, promovendo a transição para outras práticas, como a aquacultura ou a produção em caixas e estruturas próprias, tal como se faz com as ostras. Contudo, admite que isso poderá ser “irrealista” e diz que se trata de “um problema de coexistência” entre mariscadores não regulados e a conservação das pradarias marinhas.
“Honestamente não sei qual poderá ser a solução”, confessa. No entanto, salienta que é importante, pelo menos, perceber-se para já quais as causas concretas do declínio das pradarias marinhas. O resto, como se resolverá este problema, caberá aos decisores e líderes políticos.