Sustentabilidade na construção: Reduzir impactos, do início ao fim



Descarbonizar as economias e, consequentemente, as sociedades é um dos grandes desígnios dos nossos tempos. Reduzir as emissões de dióxido de carbono (CO2), um dos mais potentes gases com efeito de estufa, geradas pelas atividades humanas é apontado como o caminho a seguir para travar o avanço incessante das alterações climáticas e para aplacar os seus efeitos mais devastadores.

Esses esforços procuram abranger todos os setores de atividade económica, com vista à redução das emissões onde possível ou à neutralidade, ou seja, tentar que as emissões que não sejam possíveis evitar sejam neutralizadas, por exemplo, com tecnologia de remoção e armazenamento ou com ações de reflorestação e restauro de ecossistemas.

Mas quando falamos de descarbonizar o foco tende a incidir quase ofuscantemente sobre setores como a mobilidade ou a energia, mas o setor da construção é também uma peça fundamental do puzzle da sustentabilidade sem a qual dificilmente alcançaremos esse objetivo.

Estima-se que, a nível global, o setor da construção seja responsável por cerca de 37% das emissões de dióxido de carbono associadas ao consumo de energia, à extração de materiais e ao processo de construção propriamente dito. De acordo com o mais recente relatório do Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP) sobre os seus impactos climáticos, em 2021 o setor, a nível mundial, as emissões de CO2 aumentaram 5%, para as 10 gigatoneladas, face ao ano anterior e 2% face ao pico que se tinha atingido em 2019, antes da pandemia de COVID-19.

No contexto europeu, a realidade não é muito diferente. De acordo com dados da Agência Europeia do Ambiente, o setor da construção é um dos maiores emissores de gases com efeito de estufa, representando perto de 35% do total de emissões da União Europeia relacionadas com a energia, e entre 5% e 12% das emissões totais nacionais.

Ainda assim, as emissões da construção na UE caíram 31% entre 2005 e 2021, o que é atribuído aos esforços de descarbonização na região, designadamente ao aumento da contribuição das renováveis e da eficiência energética. Mas ainda há muito a fazer, uma vez que a agência considera que os atuais esforços não serão suficientes para alcançar uma redução de 55% das emissões do setor até 2030, face a níveis de 1990, e a neutralidade carbónica do edificado na UE 20 anos depois.

Acredita-se que uma aposta mais afincada na eficiência dos materiais usados na construção poderá poupar 80% das emissões de gases com efeito de estufa.

Construção sustentável: “pensada, desde a sua génese, em ter o impacte ambiental reduzido”

Sabendo que o setor da construção é uma das grandes fontes de emissões de gases com efeito de estufa e, por isso, um dos grandes contribuidores da crise climática, para ser possível aplacar os seus impactos é preciso adotar uma nova forma de construir.

Essa mudança de visão é especialmente relevante quando se considera que cada vez mais pessoas estarão a viver em cidades, abandonando áreas mais rurais, o que poderá implicar mais edifícios e outras construções para suportar uma população urbana em crescendo.

Hoje em dia, a palavra ‘sustentabilidade’ é usada tantas vezes e num sem-número de contextos que frequentemente pode acabar por perder sentido ou até mesmo ser empregue com outro que não o que a realmente sustenta.

Os principais impactos têm a ver não só com as emissões poluentes durante a utilização do edifício, mas também durante a escolha de materiais, deve optar-se por aqueles com menor carbono incorporado, e também durante a obra, a redução de emissões poluentes deve igualmente ser acautelada

Arquiteta, especialista em construção sustentável e diretora-executiva do Portal de Arquitetura e Construção Sustentável, Aline Guerreiro esclarece que “uma construção sustentável é pensada, desde a sua génese, em ter o impacte ambiental reduzido, desde a escolha do terreno para construir, estudo prévio, desenho de arquitetura, projeto de execução (que implique uma escolha de materiais menos poluentes) e fim de vida da construção”.

E os impactos ambientais da construção não se limitam às emissões de gases com efeito de estufa. Prendem-se também com a poluição do ar causada por poeiras e outros gases, pela poluição sonora, pela produção de resíduos e pelo consumo de água.

É por isso que a Aline Guerreiro argumenta que “os principais impactos têm a ver não só com as emissões poluentes durante a utilização do edifício, mas também durante a escolha de materiais. Deve optar-se por aqueles com menor carbono incorporado, e também durante a obra, a redução de emissões poluentes deve igualmente ser acautelada”.

Mas, ao longo da sua vida, os impactos de um edifício não são os mesmos. A especialista aponta que “a fase mais impactante é, sem dúvida, a utilização”, uma vez que “é a fase que mais tempo demora”.

Se, durante o seu desenho e conceção, não tiverem sido tidos em conta o que chama de “princípios bioclimáticos” para “reduzir drasticamente” o consumo de energia na climatização e na iluminação, “iremos ter um edifício muito poluente”, assegura-nos Aline Guerreiro.

O consumo de água é também uma preocupação e uma área central da sustentabilidade da construção, mas a arquiteta está confiante de que atualmente existem soluções, tecnológicas por exemplo, para reduzir os consumos “de um bem tão escasso”.

Tudo isso conjugado, a arquiteta declara que a sustentabilidade dos edifícios começa mesmo antes da sua construção, logo na fase de projeto. “Poderemos ter uma fase de utilização muito menos poluente se pensarmos na sustentabilidade na fase de anteprojeto e construção”, salienta, e isso refletir-se-á também depois na fase de desativação do edifício.

A sustentabilidade da construção em Portugal

Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam que, em novembro de 2023, o índice de produção da construção aumentou 5,2% em Portugal, comparando com o mesmo mês de 2022, sendo que o segmento da construção de edifícios subiu 4% em termos homólogos.

Mas, por cá, a sustentabilidade na construção ainda está aquém do desejado, e do que é preciso para ser possível minimizar os seus impactos sobre o planeta.

“Eu costumo dizer que todas as construções deveriam ser sustentáveis… Ou seja, já deveria ser um conceito inserido nos cursos ligados ao setor da construção”, diz Aline Guerreiro, mas isso ainda não acontece, pelo menos à escala que deveria acontecer no contexto de profundas transformações ambientais e climáticas.

A especialista conta-nos que é preciso “reduzir ao máximo os materiais com carbono incorporado” que são usados na construção, sobretudo os plásticos, como o PVC, o XPS e o EPS (esferovite).

“Aplicar os conceitos de arquitetura bioclimática a todos os projetos, tanto de nova construção, como de reabilitação” e “incluir projetos de desconstrução na ficha técnica dos edifícios, para se saber previamente como valorizar possíveis resíduos resultantes” são também passos que o setor tem de obrigatoriamente dar se almeja alcançar a sustentabilidade necessária para cortar as suas contribuições para as crises planetárias, não só para as alterações climáticas, mas também para a perda de biodiversidade e para a poluição em geral.

Então o que falta para que isso se concretize? Para Aline Guerreiro, a palavra ‘sustentabilidade’ está a ser usada ao desbarato, sendo aplicada “mesmo ao que é insustentável”, criando, por isso, a ilusão de que se está a progredir quando, na verdade, as mudanças necessárias não estão a acontecer.

Além disso, lamenta que os consumidores tenham ainda pouco conhecimento sobre o que realmente é, ou deve ser, a sustentabilidade no setor da construção, pelo que não estão preparados para exigir mais e melhor. O facto de ‘sustentabilidade’ ser muitas vezes usada como sinónimo de ‘eficiência energética’ não ajuda, pois, afirma a especialista, ser sustentável é muito mais do que reduzir consumos de energia.

E ainda defende que faltam apoios “para tornar os edifícios mais sustentáveis e eficazes”, algo que diz refletir o grau de impreparação dos governos para lidar com temáticas como a sustentabilidade do setor da construção.

A importância dos materiais e um novo olhar sobre a construção

Os materiais usados na construção de edifícios são uma das grandes fontes de impactos ambientais do setor, em todas as fases: na construção, na utilização e na desativação. Por isso, o que se usa e como se usa é determinante.

Embora não seja novidade, apesar de, nos últimos tempos, lhe ter sido dada uma ênfase mais destacada, a circularidade de materiais poderá ajudar o setor da construção a atenuar, pelo menos em parte, as suas consequências negativas sobre o ambiente.

Para Aline Guerreiro, não há quaisquer dúvidas: “a circularidade tem de ser uma imposição”. Logo desde a fase do projeto, é preciso pensar em materiais que, chegado o edifício ao seu fim de vida útil, “possam ser reaproveitados ou que possam ser absorvidos pela natureza, sem impactos ambientais”.

E a especialista deixa um recado: “não vale a pena continuar a utilizar isolamentos e caixilharias, por exemplo, executados em materiais poluentes, derivados de petróleo, com a ‘desculpa’ de que ‘podem ser reciclados’, porque quase tudo é passível de ser reciclado… não existe é mercado que absorva tanto material reciclado… e irão parar, inevitavelmente, a aterro, a aterros ilegais ou, na pior das hipóteses, ao mar”.

Por isso, considera que deve haver algo como uma ‘renaturalização’ no que diz respeito aos materiais usados. Apontando como exemplos a cortiça, a cal e a madeira, “que podem e devem ser tidos cada vez mais em consideração nas construções mais sustentáveis” e que servem também como sumidouros de carbono, Aline Guerreiro refere que “só os materiais naturais ou aqueles que podem ser reciclados para o mesmo fim, serão materiais sustentáveis e circulares”.

Ainda sobre a circularidade, quando questionada sobre qual a opção mais sustentável, se construir novo ou reabilitar, Aline Guerreiro sublinha “reabilitar, sem dúvida”.

Para a arquiteta, com a transição do foco da construção para a reabilitação, “além de se estar a reaproveitar materiais que poderão estar em boas condições, como a pedra, por exemplo, mármores e/ou granitos, que têm uma resistência mecânica enorme, não estamos a impermeabilizar novo solo, tão importante para a conservação da natureza e da biodiversidade”.

Aplicar os conceitos de arquitetura bioclimática a todos os projetos, tanto de nova construção, como de reabilitação” e “incluir projetos de desconstrução na ficha técnica dos edifícios, para se saber previamente como valorizar possíveis resíduos resultantes são centrais para tornar setor da construção sustentável

Por isso, para que os edifícios possam deixar de ser responsáveis pelo agravamento das alterações climáticas e para tornarem as cidades mais sustentáveis, mais resilientes e mais bem-adaptadas, por exemplo, a eventos climáticos extremos, pensa que a solução poderá passar quer por adotar uma nova filosofia de construção, quer por melhorias no edificado existente.

“Todos os edifícios deverão ser pensados com estas premissas. Os edifícios representam quase 40% do consumo de energia na Europa, só isso já diz muito sobre o impacto ambiental destes. Há um potencial enorme de redução deste impacto e consequentemente de redução dos efeitos das alterações climáticas”, argumenta.

O papel da Arquitetura e da Construção na luta climática

“A Arquitetura e a construção podem ser aliadas no combate às alterações climáticas, podem ser contribuintes líquidos para a redução de emissões”, disse, em entrevista à ‘Green Savers’ no ano passado, Gonçalo Byrne, na altura presidente da Ordem dos Arquitetos.

O arquiteto reconhece que o edificado tem, realmente, impacto no ambiente, “mas esse impacto pode e deve ser reduzido” e pode até ter “externalidades positivas ao nível ambiental, energético, de mobilidade, entre outras dimensões”.

Mas avisa que “incorporar a sustentabilidade na prática da arquitectura é um desafio, que requer investigação, inovação e produção de conhecimento” e que “a Arquitetura pode e deve trabalhar com outras indústrias para que se possam gerar novas soluções com menor pegada ambiental e construtiva”.

Para que tal aconteça, no entanto, “é preciso investir na arquitetura e ter políticas públicas coerentes com esse objetivo”, salienta Gonçalo Byrne, para quem, num mundo em plena transformação, “a Arquitectura tem que demonstrar capacidade de adaptação aos novos tempos e às novas exigências” e os arquitetos “têm a obrigação e dever de seguir o que se poderá classificar como uma cartilha deontológica que hoje em dia nunca poderá abdicar de seguir imperativos e princípios que potenciem uma sustentabilidade ambiental e ecológica cada vez maior no setor”.

Pré-fabricação pode ser uma das soluções

Um estudo liderado por investigadores da Universidade de Coimbra, publicado em dezembro de 2022 na revista ‘Building and Environment’, revela que a pré-fabricação pode ser uma das soluções para reduzir os impactos ambientais das fases de construção e de demolição dos edifícios.

Os cientistas Vanessa Tavares e Fausto Freire explicam, em comunicado, que “se optarmos por construir um edifício pré-fabricado e adaptado ao clima, podemos reduzir 40% de impactos incorporados nos edifícios e até menos 90% no final do ciclo de vida, com um consumo de energia semelhante na sua utilização”. Apontam que a construção dita ‘tradicional’ consome cinco vezes mais materiais do que a pré-fabricada e que “no final de vida, os resíduos da construção pré-fabricada são mais facilmente recicláveis e reutilizáveis”.

Mesmo a reabilitação de edifícios convencionais pode ser feita com recurso à pré-fabricação, ajudando a reduzir custos e efeitos ambientais negativos.

Os edifícios representam quase 40% do consumo de energia na Europa, só isso já diz muito sobre o impacto ambiental destes. Há um potencial enorme de redução deste impacto e consequentemente de redução dos efeitos das alterações climáticas

Aline Guerreiro está totalmente de acordo. Para ela, “tudo o que reduz o tempo de obra e recursos humanos a trabalhar, é mais sustentável” e “a pré-fabricação consegue isso”, permitindo também diminuir os resíduos produzidos.

Com mais pessoas a irem para as cidades, é preciso construir mais?

Sendo que as previsões apontam para um aumento do número de pessoas a viverem nas cidades, seria expectável que houvesse necessidade para construir ainda mais edifícios, com todos os impactos daí resultantes, de um setor que ainda tem muito caminho a percorrer para ser considerado realmente sustentável.

Contudo, especificamente no que diz respeito à realidade portuguesa, “a reabilitação de edifício existentes seria suficiente”, diz Aline Guerreiro, aludindo a “um grande ‘lobby’ em volta do setor da construção”, pois construir de novo “dá muito dinheiro a ganhar a muitos”.

Para a arquiteta e especialista em construção sustentável, “o valor dos edifícios para venda é completamente díspar do valor gasto a construí-lo” e “há um aproveitamento enorme”, pois “o consumidor ‘milionário’ não quer saber o valor efetivo do edifício e compra porque pode”.

Diz Aline Guerreiro que “se se continuar a construir indiscriminadamente e a preços de venda insuportáveis, aqueles que vivem em situação de pobreza energética irão continuar na mesma, e os investidores a ganhar com a situação. É preciso travar esta tendência”.

A construção e a biodiversidade: aliança possível?

Com a expansão das cidades, a Natureza acaba por perder espaço numa luta constante com um Golias de cimento e betão. Contudo, as cidades não têm de ser locais desprovidos de vida selvagem. Aliás, nem devem, pois, por exemplo, a ação de polinizadores ajuda a manter a saúde e a diversidade de espécies nos espaços verdes, evitando custos desnecessários de manutenção e gestão, e as plantas e árvores são aliados indispensáveis num mundo cada vez mais quente, ajudando a quebrar os efeitos das ondas de calor.

E os edifícios, elementos centrais das cidades, têm um papel a desempenhar nos esforços para preservar a biodiversidade que aí resiste às pressões humanas.

“Incluir vegetação nos edifícios é quase uma necessidade atualmente. Nos existentes, podemos transformar as coberturas, em coberturas ajardinadas em muitos casos. Os novos edifícios deverão ser pensados incluindo vegetação, como já se faz em países desenvolvidos como a Suécia, Noruega, Japão”, observa Aline Guerreiro.

Construção em Portugal a caminho da sustentabilidade?

Para Aline Guerreiro, “é preciso, acima de tudo, que os nossos governantes levem a sustentabilidade a sério e formem equipas que tenham conhecimento profundo nesta matéria”.

A especialista acredita que o Governo tem, nesse campo, um papel determinante a desempenhar, indicando que os ministérios devem ser munidos de equipas especialmente habilitadas para promover e avaliar uma verdadeira transição sustentável no setor da construção, caso contrário, assegura, “a sustentabilidade é apenas uma palavra e não se tornará, nunca, efetiva”.

*Artigo originalmente publicado na edição em papel de março

 

 

 

 

 





Notícias relacionadas



Comentários
Loading...