Reportagem: Terramay, um destino autossustentável e regenerativo situado nas margens do Alqueva



Construir uma empresa ecológica e socialmente sustentável. Foi esta a missão que conduziu a alemã, Anna, e o português, David, até ao Alandroal. Cruzaram-se em Portugal enquanto ela atuava como atriz, seguiram juntos para a Suíça e, já em Berlim, David percebeu que queria outra vida para os filhos. Várias viagens depois, de norte a sul de Portugal, encontraram, em 2018, a água “tão necessária” à volta de uma herdade com 562 hectares depauperados.

“Decidi dedicar toda a energia e força a um projeto de futuro, a uma coisa boa, que fizesse bem à humanidade. Durante 4 anos fizemos cerca de 100 viagens a Portugal, visitámos centenas de propriedades e não foi fácil encontrar aquilo que queríamos, principalmente a desertificação, porque estávamos à procura de um sítio deserto na sua localidade, na sua expressão social, mas também a nível de qualidade de terra. Estávamos à procura de um projeto que pudéssemos alavancar na sua totalidade. Quando chegámos à Terramay quase todos os solos, tudo o que vocês veem, estava depauperado”, conta David, à medida que mostra a evolução desde então.

“Descobrimos por acaso e apaixonámo-nos pela vista”, continua Anna, explicando que procuraram muito no Algarve, mas chegaram à conclusão de que o Alentejo é um sítio que “ainda está pouco explorado ao contrário do Algarve” e que acreditam “muito” no seu potencial “para se posicionar no turismo sustentável diferente”. A ideia é trabalhar sempre perto da água, “porque temos a vantagem de a tirar e temos a possibilidade de ter atividades desportivas com ela”, acrescenta, revelando que já têm um pequeno barco e canoas.

Decidi dedicar toda a energia e força a um projeto de futuro, a uma coisa boa, que fizesse bem à humanidade

David de Brito

Transformar um projeto de agricultura regenerativa e turismo sustentável numa experiência única e lutar contra a desertificação foi, no fundo, o que moveu este casal. “O nosso sonho sempre foi não ter só o conceito da regeneração dos solos e da agricultura regenerativa em todas as suas vertentes, mas também sermos autossustentáveis. Poder mostrar que podemos funcionar como o mundo funcionava antigamente, como era o Barrocal, por exemplo, ali em Monsaraz, há coisa de 60, 70 anos. E isso é possível voltar a fazer-se, integrar as comunidades e temos essa intenção. E por isso mesmo é que começámos primeiro a ter esta disponibilidade, ou seja, todos os legumes, carnes e produtos que produzimos”, sublinha David.

Alojamento turístico sustentável daqui a 3 anos

Mas nos planos está já um alojamento turístico que, avisa Anna, “não estará pronto antes de três anos”, mas que será um turismo sustentável, com materiais sustentáveis, através, por exemplo, de betão de cânhamo e com energia renovável (painéis solares, sistemas de reutilização da água), porque, explica, “aqui o mais importante é a água e os recursos humanos”. Vão ser cerca de 20 unidades integradas na natureza para “garantir sempre a privacidade e autenticidade do espaço, mantendo um núcleo central com os edifícios já existentes”, afirma a alemã.

No cume do monte, onde plantaram 102 espécies de hortícolas e aromáticas, David diz que “o nosso conceito de turismo será aqui, mas queremos ter a horta sempre perto do projeto que é o coração”. “Afinal”, acrescenta, “é a cozinha que junta a agricultura com o hotel e queremos ter essa proximidade”. O empreendedor confessa que fazer hortas em cumes “não é propriamente a melhor ideia” e que “não haveria nenhum hortelão a escolher este sítio”, mas que o escolheram por causa da proximidade.

Dárcio Rocha é o hortelão da quinta

Nascido no Alentejo e criado no Algarve, Dárcio Rocha é o hortelão da quinta. Enquanto dá a provar várias espécies de hortícolas e aromáticas diretamente da horta, com sabores únicos e frescos, fala precisamente das maiores dificuldades do trabalho. Têm 75 caixas e 82 linhas. “Preparar a terra tem um custo físico e psicológico elevado porque andamos sempre a apanhar a pedra e, por isso, tudo tem sido trabalhado aos poucos”, explica. Já David revela que vão mudando de acordo com o que o mercado lhes pede, mas “sempre de acordo com a micro-sazonalidade”, até porque têm apenas duas estufas onde fica “aquilo que não conseguimos produzir no nosso clima, como celtuce, curcuma, gengibre, as coisas mais exóticas”.

Este ano inauguraram o primeiro hotel de insetos porque há abelhas que são “extremamente importantes” em toda a horta. “Os nossos sabores são muito mais intensos, muito mais perfumados”, defende Dárcio, satisfeito, enquanto David conta que têm restaurantes que reduziram a quantidade para poderem adquirir estes vegetais e já trabalham com chefes como Carlos Teixeira, do Esporão, e André Cruz, do Feitoria.

Orgulhoso, o hortelão dá a experimentar as primeiras favas do ano, enquanto David conta que vão tentar fazer farinha com os seus cereais porque tencionam abrir uma padaria, ainda este ano, na aldeia do Rosário. “Temos os nossos cereais, temos aveia, temos trigo, dos convencionais temos todos e dos especiais vamos tentar fazer farinha de tremoço e, no verão, com as culturas mais tardias, vamos tentar fazer farinha de quinoa”, revela.

Aqui não entram pesticidas

Terramay significa Terra Mãe e é a casa e o sustento dos seus cavalos, vacas, porcos, cabras, ovelhas, galinhas e abelhas. Ali não usam pesticidas e a intervenção das máquinas é mínima. “É tudo através dos animais”, assegura Anna, sublinhando que “é um trabalho duro”, mas que “vale sempre a pena”. De resto, só no período do verão é que compram feno a um produtor biológico seu vizinho ,“porque há um mês em que não conseguimos, é impossível”, explica David. “Temos ovelhas merino. A pata da ovelha compacta mais o solo do que a da vaca e temos fases do ano em que conseguimos ter vacas mertolengas pequeninas e, depois do desmame, ao sexto mês, conseguimos integrar no pomar. Somos as únicas pessoas no mundo que fazem maneio holístico que põem vacas em pomares”, garante o empreendedor.

As ovelhas têm, segundo David, “pouca expressão”. “Temos só o borrego regenerativo, de leite. Só bebem leite materno. Depois temos a cabra serpentina. A função delas é ir comendo o mato excessivo que temos, nos ribeiros, nos cumes, nos montes. Tentamos ter os animais confinados num espaço e, passados dois três dias, desapareceu tudo. A cabra é um bicho incrível, são ninjas!”, afirma. “As cabras são mesmo assim”, reforça Anna, contando que tinham duas árvores de cerejas que estavam perfeitas e que, no dia seguinte, “já não estavam lá”. Uma espécie autóctone, caracterizada pela sua astúcia e robustez, que produz o cabrito no Natal e na Páscoa e o leite, que vendem diretamente aos restaurantes e às pessoas que queiram fazer gelados, iogurtes “porque a nível digestivo é muito mais interessante e saudável”, indica David. Também fazem queijo fresco ricota. “É o único processo mecanizado que temos com animais, é a extração do leite”, afiança.

Cabras, Terramay

Quando falamos na nossa missão de combater a desertificação do solo, também estamos a incluir a desertificação social. Queremos criar outra vez uma comunidade. Perceber como é que conseguimos trazer pessoas para aqui e fixá-las aqui, Anna de Brito.

As vacas mertolengas passeiam livremente o ano inteiro, sendo alimentadas apenas a erva das pastagens da Terramay. A vaca mertolenga “é a vaca que ninguém quer”, afirma David, sublinhando que “cada vez se vê mais. É uma vaca muito pequenina, estamos a falar de uma carcaça com 120 quilos, o normal são 200 e muitos!”. O empreendedor explica que é uma vaca que “não tem gordura intramuscular. Tem só uma gordura superficial, muito amarelo-escura, rica em ómega-3, LCA e com imensos nutrientes benéficos para a saúde. Só que, claro, a constituição ou a carne por si só não é manteiga que se pode pôr numa frigideira e passados 3 segundos toda a gente diz: uau, tu és um masterchef! Não. Portanto, o corte, a maneira como nós fazemos, todo o processo até chegar ao restaurante ou à cozinha é especial por si só. Depois carece também de algum conhecimento para a cozinhar. Tem de ser selada, seguida de um período de descanso. É preciso saber o que se faz, mas o sabor é uma viagem no tempo! Porque carne que sabe a carne é interessante. E o que nós fazemos com as ‘miúdas’, nós fazemos maneio holístico”.

Maneio holístico do gado

Mas o que é isto do maneio holístico? David explica: “Aquilo que acontecia antigamente é que não havia propriedade privada. Todos os campos estavam abertos e os animais viviam em plena liberdade, mas tinham predadores (o leão da savana, o lobo da Serra da Estrela). Portanto, o que é que eles faziam? Juntavam-se em grandes grupos, viviam de forma compacta, mexiam-se muito rapidamente e comiam de forma não seletiva. Adubavam o sítio onde tinham de estar, pisoteavam cobrindo o solo e depois partiam, mas levavam a biodiversidade do sítio onde tinham estado. Quando chegavam ao próximo sítio faziam o mesmo, levavam todas as sementinhas e coisas que tinham comido no outro lugar e já só voltavam ao sítio onde começaram quase um ano depois. Portanto, o que tentamos fazer com as vacas é, em vez de usarmos tratores e outras máquinas para fazermos esses processos, mexemos as vacas sempre quase numa base diária e tentamos fazer a mímica deste contexto que acontecia antigamente. É um trabalho muito difícil, mas é aquilo que nos ajuda a regenerar os solos.”

Vacas, Terramay

Têm ainda as galinhas que usam num contexto comercial. Aqui não entra o sonho de terem as galinhas de um lado para o outro por causa da estrutura legislativa. “Temos um pequeno trator que vai atrás (principalmente no Verão) das vacas e aquilo que nós fazemos é: quando a vaca sai do sítio onde esteve no verão, soltamos as galinhas nesse sítio para elas picarem todos os excrementinhos das moscas e outros insetos e voltarem a defecar, mas em incursões muito mais pequeninas e distribuídas, que ajudam a infiltrar os minerais no solo e tudo aquilo que a vida do solo precisa”, refere David.

Têm ainda o porco preto alentejano, que é um animal “muito importante” nesta zona. “É muito importante também para nós, porque acaba por nos dar a gordura de que precisamos para fazer alguns produtos como com o Talho das Manas, a salsicha, o hambúrguer e tudo o que elas fazem”, aponta.

O casal está também a plantar 20 hectares de vinha para fazer vinhos naturais com 32 castas locais.

Reconexação com a natureza

Nesta quinta onde a vista varre as colinas ondulantes do Alentejo e da Estremadura espanhola, Anna e David oferecem a todos os que os visitam a oportunidade de se reconectarem com a natureza e fazer parte de uma comunidade que cuida da paisagem, da fauna e da flora de forma sustentável.

Têm um farm tour em que, durante hora e meia, mostram a quinta, o processo com os animais, a estruturação de linhas de água e uma criação de cavalos lusitanos para equitação com 13 animais (três poldros, duas éguas de reprodução lusitanas, um pónei para os pequeninos e cinco cavalos para passeios e aulas). Além disso querem trabalhar com agrupamentos de escolas para as crianças se conseguirem “reconectar com a natureza”. “Porque, quando falamos na nossa missão de combater a desertificação do solo, também estamos a incluir a desertificação social. Portanto, queremos criar outra vez uma comunidade. Perceber como é que conseguimos trazer pessoas para aqui e fixá-las aqui”, sublinha Anna, reforçando que “aqui o mais importante é a água e recursos humanos”.

Reconexação com a Natureza

Neste momento, contam com quase 25 trabalhadores, alguns locais, mas também de Lisboa, Porto e Índia. “Ainda estamos a perceber como trazer pessoas para cá e a ideia é gerar uma comunidade para que as pessoas se sintam confortáveis e com perspetivas, em termos de carreira, para depois conseguirmos dar o próximo passo daqui a três anos com o hotel”, confessa a alemã.

Ligados há mais de 15 anos pela amizade e parceria profissional, a família de Brito tem em Thomas Sterchi, o sócio suíço, o investidor principal e, juntos, estão também a recuperar algumas casinhas no Rosário para poderem vir a ter mais funcionários, colegas e todos os voluntários que os visitem.

Da quinta para o prato

Findo o passeio pela quinta, descida até ao barco fundeado no Alqueva, rumo ao restaurante tão biológico quanto o conceito do projeto. O Raya, que abriu a 14 de junho do ano passado na praia fluvial das Azenhas d’El Rei, no Alandroal, distrito de Évora, funciona num formato único no País, farm to beach (“da quinta para a praia”), em que 80% dos produtos apresentados na ementa são produzidos nesta quinta biológica. Colhem pela manhã, servem à hora do almoço como foi o caso da carne mertolenga colocada na mesa.

Já o peixe vem do rio, como o ceviche de lúcio-perca ou os tacos de peixe curado que serviram com cítricos e rabanete, e bebidas só naturais, como o gin alentejano com funcho e limão ou a limonada com pouco açúcar – infusão de perpétua roxa – ou o vinho biológico que acompanhou os pratos degustados.

Restaurante Raya

Um restaurante inspirado no movimento Soil to Soul que – criado em Zurique por Thomas Sterchi, o investidor e cofundador do projeto Terramay, em conjunto com Anna e David de Brito – chegou a Portugal (ao Alandroal) em 2022 e, a Lisboa, em maio deste ano. “Despertar consciências para a importância do solo” é a base de um movimento que quer sensibilizar a comunidade para a importância da agricultura regenerativa e de uma alimentação saudável para um futuro sustentável.

O evento reuniu chefs, produtores, imprensa e profissionais da área que, no decorrer de várias degustações, provas, conversas e música, discutiram e refletiram sobre o que tem vindo a ser feito em Portugal, nesta matéria, e quais os próximos desafios.“É urgente despertar consciências para a importância do solo. Queremos que as pessoas tenham a noção do que comemos e da forma como produzimos os alimentos. É importante que exista uma conexão entre agricultura regenerativa e nutrição natural”, defende Thomas Sterchi, que pretende com o projeto deixar um marco como empreendedor ecologicamente responsável, motivado pelo desejo de fundar, inspirar e realizar um conceito único de hotelaria sustentável e o seu retiro pessoal.

Na Terramay, os criadores prometem tudo fazer sempre de olhos postos num futuro sustentável.

*Artigo publicado originalmente em junho de 2023, na revista física da Green Savers

 





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