Um antigo bacalhoeiro e o estudo das pequenas grandes coisas do mar
A bordo do Santa Maria Manuela, um antigo bacalhoeiro adaptado e modernizado, centena e meia de pessoas trabalharam nos últimos 12 dias, até debaixo de água, para conhecer um mundo do qual pode depender a humanidade.
Ao largo das costas dos concelhos de Cascais, Sintra e Mafra, dezenas de investigadores, biólogos quase todos, mergulharam, mediram, fotografaram, tomaram notas. Viram peixes, procuraram tubarões, contaram aves, colheram amostras de algas, de esponjas, de briozoários e de outras “pequenas coisas”, que têm uma importância muito maior que o seu tamanho.
“Ó Mário, está aqui uma lesma!”. Mário corre a fotografar de todos os ângulos a lesma do mar, cerca de um centímetro, que Carlos Moura tinha recolhido num mergulho horas antes ao largo de Cascais. É importante? Tudo é importante, assegura Carlos Moura.
Foi por essa importância que se reuniram no Santa Maria Manuela tantas dezenas de cientistas e outros especialistas, equipas de apoio a preparar câmaras de filmar, câmaras à superfície do mar, câmaras colocadas no fundo do mar, câmaras em drones, e a visualizar muitas horas de filmagem.
A história de 12 dias de trabalho, que todos consideraram um sucesso, começou há mais tempo, com a vontade da Câmara Municipal de Sintra, a que se juntaram as de Mafra e Cascais, de conhecer melhor o mar e eventualmente criar uma Área Marinha Protegida de Interesse Comunitário (AMPIC). A Fundação Oceano Azul, que já esteve envolvida na criação de uma área protegida nos mesmos moldes no Algarve (com três autarquias também), apoiou o projeto e organizou, com o apoio de seis instituições científicas, a expedição, que terminou na quarta-feira.
No Santa Maria Manuela ao longo dos 12 dias da expedição houve sempre alguém a trabalhar. Maria Manuela era a mulher do dono do navio, construído em 1937 e hoje pertença do grupo Jerónimo Martins.
Bem cedo, saíam em barcos de pescadores os que iam deixar em locais previamente decididos câmaras com isco para filmar peixes na coluna de água (designação do espaço que vai da superfície ao fundo do mar) e no fundo do mar. Depois eram os biólogos mergulhadores, em grupos de quatro, e pessoal de apoio nas embarcações pneumáticas do navio e à noite, no regresso, começava a visualização das imagens, o tratamento do material recolhido, guardado em álcool ou em sílica e a preparação para o dia seguinte.
David Jacinto, do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE) coordenou as equipas de mergulhadores que fizeram censos visuais, identificando fauna e flora, e caracterizaram ‘habitats’.
Cada mergulha dura entre 40 minutos e uma hora. Contas feitas nos 12 dias estes censos visuais resultaram de mais de 270 mergulhos, com mais de 120 horas de observação.
David Jacinto, também mergulhador, diz que não foi visto nada que não se esperasse, que os biólogos sabem o que é expectável a determinadas profundidades, mas acrescenta que “em cada mergulho há sempre coisas giras, jardins de corais, de esponjas, florestas subaquáticas…”.
Também se viu um tubarão, mas também muito lixo, muitos aparelhos de pesca, gorgónias (organismos da família dos corais) partidas, resultado da pressão humana que se faz notar muito.
“É preciso investir forte e feio na preservação. Quase não era preciso ir para debaixo de água para saber isso”, frisa.
Marisa Batista, bióloga também do MARE, leva para o mergulho uma fita métrica, estende-a 25 metros e é neles que trabalha (dois metros para cada lado da fita), vendo os peixes, as fendas nas rochas, registando todas as espécies que encontra, os tamanhos. Outro mergulhador irá registando as características dos ‘habitats’, tudo num caderno impermeável.
Não é cansativo? Marisa sorri. “Vi locais com gorgónias e esponjas muito giros. Vi uma raia de grandes dimensões. Olhar uma parede cheia de esponjas… são coisas que entusiasmam”.
E depois é o trabalho de equipa, a entreajuda, o apoio da tripulação, o sentimento de missão cumprida. Marisa Batista está contente, mas deixa um aviso: “ver muitas espécies não significa que esteja tudo bem”.
Daniel Nunes, também biólogo do MARE, mergulhou quase duas dezenas de vezes. Admirou-se de ver por ali as gorgónias mas o resto era o que esperava. Faz um trabalho de minucia. Leva um quadrado de 50 por 50 centímetros que coloca no fundo do mar e é só dentro dele que estuda. “Apontamos tudo o que se vê, fotografamos, e recolhemos quando não identificamos a espécie”.
Mariana Anjos, bióloga do mesmo Centro, faz parte das equipas de apoio. Caracteriza os ‘habitats’ e o solo, conta os tipos de algas, num dos 10 mergulhos que fez foi quem avistou o tubarão, mas também viu polvos, também se maravilhou com as gorgónias e com a diversidade de esponjas.
Nem sempre correm bem os mergulhos. Pode haver correntes, pode haver pouca visibilidade, mas mesmo assim nos 12 dias só num não se desceu ao fundo do mar. Compensado pelo dia a seguir, na zona da Pedra do Ramalhete, junto a Cascais, com cardumes de peixe.
Todos os dados recolhidos vão agora ser analisados até final do ano, assim como os filmes, descarregados e pré-visualizados ainda a bordo do navio, um trabalho feito de noite e de manhã, quando a calma regressa ao Santa Maria Manuela depois da partida das equipas de “investigação”.
É nessa altura que José Tourais fuma um cachimbo ao sol da proa. Com Mário Rolim, madrugara para preparar as garrafas de mergulho. Ambos pertencem a um centro de mergulho e são eles que gerem os mergulhos diários.
“O balanço é positivo, a equipa é experiente e os objetivos são muito específicos”, diz à Lusa, numa alusão ao planeamento minucioso de cada dia de trabalho.
Mário Rolim faz os enchimentos, as misturas que cada mergulhador vai respirar, em função da profundidade. Nenhuma garrafa de mergulho é igual à do dia anterior.
Para João Teles Ferreira, o Jojo, pescador “é um balanço muito positivo porque tem sido uma aprendizagem. Esta troca de conhecimentos torna-se vantajosa para a pesca em si, para os pescadores, para os investigadores”.
À Lusa explica que os pescadores envolvidos têm agora mais conhecimento do estado da pesca, sabem que é esse conhecimento que pode levar a que se tomem medidas, que se preservem espécies, que não se capture mais do que a conta para não se correr o risco de um dia não haver o que pescar.
Uma reserva natural é importante, diz João Teles Ferreira, mas avisa que é preciso envolver a comunidade piscatória. “Acho que vai aceitar se for bem informada, mas não se pode chegar aqui e dizer que se vai fechar e que os pescadores vão para casa”.
João Teles Ferreira é um dos que transporta os biólogos que operam as câmaras de filmar mas também os ornitólogos da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA).
Carlos Silva, engenheiro florestal, e Jorge Silva, sem formação académica, profissionalmente polícia, mas com um conhecimento de aves tão grande quanto o entusiasmo por elas. Os dois dizem que o que viram correspondeu às expectativas, a chegada das aves invernantes, a passagem das aves migradoras. E estão felizes a falar à Lusa da pardela balear, uma das aves mais ameaçadas do mundo mas que ao largo de Mafra, Sintra e Cascais existe em “grande número”.
Em resumo, diz Jorge Silva, é bom sinal que sejam identificadas tantas espécies de aves. E conta como os golfinhos interagem com os gansos patola, juntando os cardumes até à superfície, como as gaivotas se aproveitam da confusão, como os moleiros atacam as gaivotas, como os painhos vão depois comer os restos.
Carlos Moura, do Centro de Ciências do Mar (CCMAR), da Universidade do Algarve, tem outros interesses. Especialista em corais, medusas e hidrozoários, faz mergulho e colhe fauna e flora que analisa no navio, guarda e irá depois usar técnicas de genética para fazer a identificação correta.
Preocupa-o a quantidade de artes de pesca que encontrou, mas também está satisfeito com a variedade identificada, com os construtores de habitats, com os recifes tão desenvolvidos, as algas, as esponjas, as anémonas.
Reconhece que o trabalho ainda agora começou mas não esconde a satisfação pela biodiversidade que viu. Ainda que sejam coisas pequeninas, que são afinal, diz a base da cadeia alimentar dos oceanos, porque sem ela não existiriam espécie maiores, e sem elas também não haveria vida na Terra.