Uma única proteína pode ter contribuído para o aparecimento da linguagem falada

Parentes próximos nossos, como os Neandertais, tinham provavelmente caraterísticas anatómicas na garganta e nos ouvidos que poderiam ter permitido a fala e a audição da linguagem falada, e partilham connosco uma variante de um gene ligado à capacidade de falar. No entanto, é apenas nos humanos modernos que encontramos regiões cerebrais alargadas que são críticas para a produção e compreensão da linguagem.
Agora, investigadores da Universidade Rockefeller descobriram uma prova genética intrigante: uma variante de uma proteína encontrada apenas nos humanos que pode ter ajudado a moldar o aparecimento da linguagem falada.
Num estudo publicado na revista Nature Communications, os investigadores do laboratório de Robert B. Darnell, investigador da Rockefeller, descobriram que, quando colocaram esta variante exclusivamente humana da NOVA1 – uma proteína de ligação ao ARN no cérebro conhecida por ser crucial para o desenvolvimento neural – em ratinhos, esta alterou as suas vocalizações quando se chamavam uns aos outros.
O estudo também confirmou que a variante não se encontra nem nos Neandertais nem nos Denisovanos, seres humanos arcaicos com os quais os nossos antepassados se cruzaram, como é evidenciado pelos seus vestígios genéticos que permanecem atualmente em muitos genomas humanos.
“Este gene faz parte de uma mudança evolutiva radical nos primeiros humanos modernos e sugere potenciais origens antigas da linguagem falada”, afirma Darnell, diretor do Laboratório de Neuro-Oncologia Molecular. “O NOVA1 pode ser um verdadeiro ‘gene da linguagem’ humano, embora seja certamente apenas uma das muitas alterações genéticas específicas do ser humano”, acrescenta.
Três décadas de evolução
As adaptações anatómicas do trato vocal e as intrincadas redes neuronais possibilitam as nossas capacidades linguísticas. Mas a genética que lhes está subjacente não é bem compreendida.
Um dos fatores genéticos teorizados para a linguagem é o FOXP2, que codifica um fator de transcrição envolvido no desenvolvimento inicial do cérebro. As pessoas com mutações neste gene apresentam graves defeitos na fala, incluindo a incapacidade de coordenar os movimentos dos lábios e da boca com o som.
Os humanos têm duas substituições de aminoácidos no FOXP2 que não se encontram noutros primatas ou mamíferos – mas os Neandertais também as tinham, o que sugere que a variante surgiu num antepassado de ambas as linhagens humanas. Mas algumas descobertas sobre o FOXP2 têm sido contestadas e o seu papel no desenvolvimento da linguagem humana permanece pouco claro.
Agora, o NOVA1 surgiu como um candidato. O gene produz uma proteína de ligação ao ARN específica dos neurónios, fundamental para o desenvolvimento do cérebro e para o controlo neuromuscular, que foi clonada e caracterizada pela primeira vez por Darnell em 1993.
Encontra-se numa forma virtualmente idêntica numa vasta faixa da biosfera, desde os mamíferos às aves – mas não nos seres humanos. Em vez disso, temos a nossa própria forma única caracterizada por uma única alteração de um aminoácido, de isoleucina para valina, na posição 197 (I197V) na cadeia proteica.
A I197V não é a única substituição de aminoácidos que distingue os humanos modernos de outros organismos, salienta a primeira autora Yoko Tajima, pós-doutorada no laboratório de Darnell. Vários deles podem ser essenciais para o desenvolvimento do cérebro. “Tais mudanças podem ter desempenhado um papel importante na aquisição de caraterísticas que contribuíram para o surgimento, expansão e sobrevivência do Homo sapiens”, diz.
Especialista na forma como as proteínas de ligação ao ARN modulam a expressão genética, Darnell tem investigado a NOVA1 desde o início dos anos 90, quando ele e os seus colegas a identificaram pela primeira vez como o fator desencadeante de uma doença neurológica autoimune chamada POMA, que pode causar disfunção motora extrema.
Recentemente, começaram a identificar casos em que as variantes genéticas da NOVA1 estão associadas a dificuldades de desenvolvimento da linguagem e motoras.
“Compreender a NOVA1 tem sido um esforço de toda a minha carreira”, acrescenta.
O estudo atual, liderado por Tajima, utilizou a edição genética CRISPR para substituir a proteína NOVA1 comum encontrada em ratos pela variante humana I197V. Em seguida, utilizaram técnicas avançadas, como a análise de imunoprecipitação por ligação cruzada (CLIP), um método desenvolvido por Darnell, para identificar os locais de ligação do ARN da NOVA1 no mesencéfalo do ratinho.
A grande revelação
A primeira descoberta notável foi que a variante humana não teve qualquer impacto na ligação do ARN relacionado com o desenvolvimento neural ou o controlo motor. Funcionava exatamente como a que tinha substituído.
Então, o que estava a fazer? A segunda descoberta significativa deu-lhes uma pista: os locais de ligação que foram substancialmente afetados pela variante humana estavam localizados em genes que codificavam RNAs relacionados com a vocalização.
“Além disso, muitos destes genes relacionados com a vocalização também foram considerados alvos de ligação do NOVA1, sugerindo ainda mais o envolvimento do NOVA1 na vocalização”, diz Tajima.
Pensámos: “Uau! Não estávamos à espera disto”, afirma Darnell. “Foi um daqueles momentos realmente surpreendentes na ciência”.
O laboratório de Darnell juntou então forças com o Laboratório de Neurogenética da Linguagem da Rockefeller, dirigido por Erich D. Jarvis, que estuda os mecanismos moleculares e genéticos subjacentes à aprendizagem vocal.
Comunicações alteradas
Nos anos seguintes, os colaboradores investigaram o impacto nas vocalizações de ratinhos de várias idades em diferentes contextos. Encontraram padrões vocais alterados tanto nas crias de ambos os sexos como nos machos adultos.
Todos os ratinhos bebés fazem guinchos ultra-sónicos para as suas mães e os investigadores da linguagem classificam os diferentes guinchos como quatro “letras” – S, D, U e M”, observa Darnell. “Descobrimos que quando ‘transliterámos’ os guinchos feitos por ratinhos com a variante I197V específica dos humanos, eles eram diferentes dos dos ratinhos de tipo selvagem. Algumas das ‘letras’ tinham mudado”, adianta.
Encontraram padrões semelhantes quando estudaram os chamamentos de esperança de acasalamento de ratos adultos machos expostos a ratos adultos fêmeas em cio. “Eles ‘falavam’ de forma diferente com as fêmeas”, afirma. “É possível imaginar como estas alterações na vocalização podem ter um impacto profundo na evolução”.
O elemento humano
A potencial influência do I197V na evolução humana tornou-se o seu próximo objetivo. Para confirmar que não se encontrava nos nossos parentes humanos mais próximos – os Neandertais, que viveram em grande parte na Europa, e os Denisovanos, cujo nome deriva da caverna da Ásia Central onde foram descobertos – os investigadores compararam oito genomas humanos com três genomas Neandertais de elevada cobertura e um genoma Denisovano de elevada cobertura.
Como esperado, os nossos parentes arcaicos – dos quais se pensa que nos separámos há cerca de 250 000-300 000 anos – tinham a mesma proteína NOVA1 que todos os animais não humanos.
Em seguida, passaram a pente fino 650.058 genomas humanos modernos na base de dados dbSNP, um catálogo de variações de sequências curtas provenientes de pessoas de todo o mundo. Se existisse uma alternativa à I197V, ela seria encontrada aqui.
Dessas 650.058 pessoas, todas, exceto seis, tinham a variante humana. Essas seis pessoas tinham a variante arcaica; como as amostras não foram identificadas, não se conhecem pormenores sobre elas.
“Os nossos dados mostram que uma população ancestral de humanos modernos em África desenvolveu a variante humana I197V, que depois se tornou dominante, talvez por conferir vantagens relacionadas com a comunicação vocal”, sugere. “Esta população saiu então de África e espalhou-se pelo mundo”.
Doenças e perturbações
No futuro, o laboratório de Darnell irá investigar a forma como o NOVA1 regula a função da linguagem, tendo em vista as perturbações da linguagem ou do desenvolvimento.
“Acreditamos que a compreensão destas questões fornecerá informações importantes sobre a forma como o cérebro funciona durante as comunicações vocais e como a sua desregulação conduz a determinadas perturbações”, afirma Tajima.
As suas vias neurais podem entrar em ação, por exemplo, quando várias perturbações tornam alguém incapaz de falar. Talvez influencie o desenvolvimento do autismo não-verbal; NOVA1 é um dos muitos genes ligados à perturbação do espetro do autismo. E em 2023, o laboratório relatou um paciente com uma haploinsuficiência NOVA1 cujos sintomas neurológicos incluíam um atraso na fala.
“Nossa descoberta pode ter relevância clínica de várias maneiras, desde distúrbios do desenvolvimento até doenças neurodegenerativas”, conclui Darnell.