Entrevista a José Mendes: “Maior desafio é o do desenvolvimento do transporte público descarbonizado”
Passou mais de ano após o arranque do PMEB – Pacto de Mobilidade Empresarial de Braga e, no âmbito da Semana Europeia da Mobilidade, o BCSD e o Município de Braga organizaram o evento “Empresas mais sustentáveis – soluções de mobilidade”. A Green Savers falou com José Mendes, ex-Secretário de Estado da Mobilidade e Ambiente e atual presidente da Fundação Mestre Casais, sobre os desafios e oportunidades da implementação da mobilidade sustentável em Portugal.
José Mendes considera que, “genericamente, as cidades devem ser planeadas e geridas de forma a reduzir as necessidades de viagens e de consumo de energia, privilegiando as soluções passivas e as que respondem à procura de forma agregada”. Para o presidente da Fundação Mestre Casais, Portugal “deu passos importantes, que, contudo, são ainda insuficientes” e o “maior desafio é o do desenvolvimento do transporte público descarbonizado”.
– O que é que é preciso para a construção de um centro urbano mais sustentável, eficiente e resiliente?
Uma cidade é um complexo conjunto de sistemas que interagem entre si, destacando-se os do espaço urbano, do espaço construído e dos fluxos. A cola que os articula é o planeamento urbanístico. Para manter ativas todas as vantagens da vivência em cidades, é importante controlar a eficiência dos seus sistemas e reduzir as suas externalidades negativas. Genericamente, as cidades devem ser planeadas e geridas de forma a reduzir as necessidades de viagens e de consumo de energia, privilegiando as soluções passivas e as que respondem à procura de forma agregada. As tecnologias, como a microprodução de energia renovável ou a utilização de veículos de zero emissões, são importantes. Contudo, a cidade sustentável, eficiente e resiliente é aquela em que os seus residentes e utilizadores incorporam na cultura e no quotidiano práticas de cidadania responsáveis e orientadas para o interesse coletivo. Esses são os cidadãos que empoderam políticos visionários e corajosos, que os apoiam nas estratégias e ações que farão a transição das cidades do século XX para cidades do século XXI.
– O PMEB – Pacto de Mobilidade Empresarial de Braga conta com 45 empresas signatárias que se comprometeram a cumprir um conjunto de mais de 250 ações. 53.000 reuniões remotas com entidades externas e 40 tomadas elétricas instaladas no município foram algumas das ações realizadas em 2022. O que mais pode ser feito para reduzir a emissão de CO2 em Braga e no País?
Sem dúvida que o PMEB é uma iniciativa que sinaliza a necessidade de fazer a transição num dos setores que mais contribuem para as emissões de gases de efeito de estufa e que, além disso, regista atualmente um acréscimo de emissões. Desde logo, é importante continuar a atrair as empresas para esta causa, pois se não o fizerem serão os primeiros prejudicados num cenário de insustentabilidade. Numa segunda fase do PMEB, importava que as empresas começassem a trabalhar em alternativas de mobilidade para os seus funcionários e para a sua operação, privilegiando o transporte público e tomando medidas mais penalizadoras do transporte individual, por exemplo taxando o estacionamento nas suas instalações e utilizando essa receita para iniciativas de descarbonização.
– Que iniciativas devem ser implementadas para contribuir para a adesão à ‘mobilidade sustentável’, não apenas de outras empresas do município de Braga, mas também de outros concelhos/empresas do nosso país?
A estratégia internacionalmente consolidada assenta em três vetores: reduzir, transferir e melhorar. Reduzir significa menos viagens, o que passa por novos conceitos de arranjo urbano e também por tendências como o trabalho híbrido ou o comércio eletrónico. Transferir significa deslocar viagens de modos menos sustentáveis para modos mais sustentáveis. Em concreto, fazer migrar viagens de modos individuais para modos coletivos e de modos motorizados para modos ativos, como a caminhada ou a bicicleta. Por fim, melhorar significa aumentar a eficiência da energia e dos veículos. Aqui, a eletrificação, quer de veículos ligeiros quer do transporte público (autocarro, BRT, LRT), é central. Assim, é necessário investir nestes três vetores, comunicar bem e esperar que, com naturalidade, mais pessoas percebam as vantagens e adiram à mobilidade sustentável.
– Um indicador chave da evolução da mobilidade sustentável num país é a evolução das emissões de gases de efeito de estufa (GEE) no setor dos transportes. Segundo a Zero, as emissões de gases geradas pelo transporte rodoviário em Portugal aumentaram 6,2% em relação ao período pré-pandemia. O que é que justifica este crescimento e de que forma se pode invertê-lo?
A redução das emissões de GEE no início da década passada deveu-se a um forte arrefecimento da atividade económica relacionado com a crise da dívida pública. No período da pandemia, aconteceu algo semelhante. Mas a verdade é que quando a economia cresce (2016 a 2020 e 2022 em diante) as emissões da mobilidade aumentam e esse é um sinal de que o ritmo de descarbonização do transporte não está a acompanhar a curva de redução que se reclama. Assim, as estratégias e investimentos que atrás referi têm de acelerar em paralelo com uma forte descarbonização do nosso mix energético.
– Qual a sua perspetiva sobre a evolução da legislação e das medidas governamentais na área da mobilidade sustentável?
Penso que nos últimos anos Portugal deu passos importantes, que, contudo, são ainda insuficientes. Ao nível da eletrificação da mobilidade, começam a aparecer os resultados. Hoje, um em cada três automóveis novos tem já motorização elétrica. Mas o maior desafio é o do desenvolvimento do transporte público descarbonizado. Num estudo da Fundação Mestre Casais, quantificámos o custo de descarbonizar toda a frota de autocarros de transporte urbano das cidades portuguesas, chegando a um resultado de cerca de 100 milhões de euros por ano durante 14 anos. É um valor possível e deve haver coragem política para colocar no terreno estes investimentos. Por outro lado, as cidades médias devem dispor de linhas de BRT com veículos elétricos a hidrogénio. Penso que em vez do transporte gratuito, por que muitos clamam – incorretamente, a meu ver – é necessário usar o dinheiro para aumentar a oferta sustentável, incluindo a opção ciclável, que tem de ganhar tração nas nossas cidades. Por fim, é absolutamente necessário abrir o corredor ferroviário de alta velocidade entre Lisboa e Vigo, passando por Porto e Braga. Esta é a espinha dorsal da nossa economia, como o demonstra o valor absurdo de 70 mil veículos diários a circular na autoestrada A1, um autêntico cordão de carbono que é urgente travar.
– Defendeu recentemente que a mudança terá de passar pelos quatro setores “que fazem mexer o ponteiro”, nomeadamente o setor da alimentação, os processos de manufatura, o ambiente da construção e a mobilidade e transportes. Como é que se promove a circularidade no setor da construção?
O setor da construção enfrenta um bloqueio que se pode transformar numa oportunidade. A produtividade está estagnada porque cada edifício é um protótipo irrepetível, o que faz com que não se consiga construir em escala, minimizando tempos, resíduos e emissões. A transformação necessária passa por: pré-fabricação e industrialização; menor carbono incorporado, recorrendo a materiais mais sustentáveis e de menor intensidade energética (mais madeira e menos aço, por exemplo); edifícios energeticamente mais eficientes, de forma a reduzir o carbono operacional dos mesmos, equilibrando os consumos com as soluções de energia renovável.