Entrevista a Paula Sobral: “Não há sinais de abrandamento nesta crise ambiental”



No âmbito das comemorações do Dia Internacional de Limpeza Costeira, que decorrem entre os dias 21 e 29 de setembro, a Green Savers falou com Paula Sobral, uma das maiores especialistas em microplásticos e lixo marítimo do país e membro ativo da Associação Portuguesa de Lixo Marinho (APLM).

Em relação aos plásticos no oceano, o que mais preocupa a Professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa | NOVA FCT “é a quantidade crescente de resíduos que não diminui, e o impacto que isso tem”, especialmente “porque não há sinais de abrandamento nesta crise ambiental”.

Segundo a também investigadora do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, o impacto dos microplásticos e nanoplásticos nos ecossistemas marinhos e na saúde humana “é preocupante por várias razões” e considera “fundamental uma gestão de resíduos eficiente, especialmente nos países onde ela ainda é inexistente”.

Este sábado, dia 21 de setembro, às 9h40, haverá uma ação de limpeza e monitorização numa das praias mais sujas da região de Lisboa, a praia da Cruz Quebrada (Oeiras), organizada pela APLM em parceria com o MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente e a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa | NOVA FCT. Não têm resultados preliminares, mas Paula Sobral destaca que a Praia da Cruz Quebrada aponta alguns desafios específicos. “Um aspeto notável é a presença contínua de resíduos provenientes de uma antiga fábrica de fibrocimento, a Lusalite, que fechou há mais de 20 anos”, revela.

O que é que a preocupa mais relativamente aos plásticos no oceano?

O que mais me preocupa em relação aos plásticos no oceano é a quantidade crescente de resíduos que não diminui, e o impacto que isso tem. Os plásticos, ao degradarem-se, formam microplásticos, e potencialmente nanoplásticos, cujos efeitos podem ser devastadores tanto para os ecossistemas marinhos como para a saúde humana. Além disso, muitos desses plásticos estão contaminados com substâncias tóxicas, que se acumulam na cadeia alimentar. Estas são as minhas principais preocupações, especialmente porque não há sinais de abrandamento nesta crise ambiental.

Que tipo de lixo se encontra mais nas praias portuguesas?

Neste momento, não fazemos monitorização regular de microplásticos no lixo encontrado nas praias portuguesas. No entanto, posso referir que os itens mais comuns que encontramos são beatas de cigarro, tampas de plástico de garrafas e embalagens de bebidas. Além disso, os fragmentos de plástico são muito abundantes.

Outro item que costumava aparecer com frequência eram os cotonetes, mas desde que deixaram de ser feitos de plástico, a sua presença diminuiu. O tipo de lixo varia conforme o local: nas praias urbanas, predominam os itens mencionados, enquanto nas praias mais remotas, longe dos centros urbanos, são comuns objetos relacionados com a pesca, trazidos pelo mar e acumulados ao longo do tempo.

O impacto dos microplásticos e nanoplásticos nos ecossistemas marinhos e na saúde humana é preocupante por várias razões

Qual o impacto dos microplásticos e dos nanoplásticos nos ecossistemas marinhos e na saúde humana?

O impacto dos microplásticos e nanoplásticos nos ecossistemas marinhos e na saúde humana é preocupante por várias razões. Em primeiro lugar, os microplásticos contêm aditivos químicos, como retardadores de chama e compostos que conferem flexibilidade ao plástico, muitos dos quais são tóxicos, incluindo disruptores endócrinos que podem afetar a reprodução. Além disso, os plásticos presentes no oceano atuam como esponjas, atraindo poluentes da água, formando uma camada de contaminantes na sua superfície.

Essas partículas acabam por ser ingeridas por uma ampla gama de organismos marinhos, desde os níveis mais baixos da cadeia alimentar até os predadores. A ingestão ocorre porque muitos animais confundem os microplásticos com alimento, devido à sua dimensão e à acumulação de matéria orgânica, que os torna ainda mais atraentes. A consequência imediata é a ingestão de partículas não digeríveis, mas o problema agrava-se com a transferência de contaminantes para os tecidos e órgãos dos animais, causando potenciais danos tóxicos.

Quanto à saúde humana, os impactos ainda estão a ser explorados. Estudos laboratoriais têm mostrado que os nanoplásticos podem induzir processos inflamatórios em células humanas, como as do pulmão e do intestino, o que pode levar ao desenvolvimento de doenças mais graves. No entanto, a ligação direta entre a exposição aos micro e nanoplásticos no ambiente e os efeitos na saúde humana ainda não está completamente compreendida. Embora haja indicações preliminares de que os microplásticos possam atuar como vetores de toxicidade, muito mais investigação é necessária para determinar o seu impacto concreto e fazer uma avaliação de risco.

Um dos maiores problemas é que em muitos países, sobretudo os menos desenvolvidos, não há infraestruturas para tratar os resíduos, levando as populações a queimar o lixo a céu aberto ou a descartá-lo em canais e rios, que acabam por levá-lo ao oceano

A introdução do lixo marinho no mar tem diversas origens. Como é que estas podem ser melhoradas do ponto de visto tecnológico?

A origem do lixo marinho é diversa, e para melhorar a situação do ponto de vista tecnológico, é fundamental uma gestão de resíduos eficiente, especialmente nos países onde ela ainda é inexistente. Um dos maiores problemas é que em muitos países, sobretudo os menos desenvolvidos, não há infraestruturas para tratar os resíduos, levando as populações a queimar o lixo a céu aberto ou a descartá-lo em canais e rios, que acabam por levá-lo ao oceano. Portanto, a criação de sistemas adequados de gestão de resíduos nesses locais é essencial para capturar o lixo que, de outra forma, acaba no mar.

Nos países mais desenvolvidos, o desafio é diferente: consumimos muito mais do que devíamos, o que gera grandes quantidades de resíduos. Reduzir o consumo e, consequentemente, a produção é crucial para diminuir a quantidade de lixo que acaba dispersa no meio ambiente. A reciclagem, embora parte da solução, está longe de ser suficiente – apenas cerca de 9% do plástico é reciclado globalmente. Colocar a responsabilidade no consumidor também não é a resposta. A indústria deve ser responsável por oferecer alternativas sustentáveis, reduzindo a produção de plásticos descartáveis e apostando em soluções sustentáveis.

Do ponto de vista tecnológico, existem avanços que podem ajudar, como dispositivos que capturam o lixo nos rios antes de este chegar ao mar. No entanto, estas soluções são paliativas e não atacam o problema na sua origem. Precisamos de uma abordagem mais preventiva, centrada na redução do consumo, melhor gestão de resíduos e uma maior responsabilização da indústria. Só assim conseguiremos fazer uma diferença real.

As consequências do aterro em vez da reciclagem são significativas e duradouras. O aterro é uma solução que basicamente aprisiona os resíduos em um determinado local. No caso dos plásticos, a degradação é extremamente lenta, podendo levar dezenas ou até centenas de anos, e ainda não temos uma visão completa sobre o tempo exato necessário para que esses materiais se decomponham completamente

Quais as consequências do aterro em vez da reciclagem?

As consequências do aterro em vez da reciclagem são significativas e duradouras. O aterro é uma solução que basicamente aprisiona os resíduos em um determinado local. No caso dos plásticos, a degradação é extremamente lenta, podendo levar dezenas ou até centenas de anos, e ainda não temos uma visão completa sobre o tempo exato necessário para que esses materiais se decomponham completamente. Na prática, isso significa que os plásticos podem permanecer no ambiente por períodos muito longos, acumulando-se e potencialmente contaminando o solo e os lençóis freáticos.

Por outro lado, a reciclagem oferece uma alternativa mais sustentável ao permitir que os materiais sejam reprocessados e reintegrados no ciclo económico. No entanto, a reciclagem ainda enfrenta desafios significativos. A indústria, muitas vezes, foca-se em materiais que são mais rentáveis para reciclar, como o PET (usado em garrafas de água) e o polietileno. Muitos outros tipos de plásticos, que representam uma menor parte do fluxo de resíduos, são menos propensos a serem reciclados devido à sua diversidade e baixo volume.

Globalmente, apenas cerca de 9% dos plásticos são reciclados, o que é bastante preocupante. Na Europa, a taxa de reciclagem de embalagens é mais alta, com uma média acima de 40%, e Portugal está dentro da média europeia nesse aspeto. No entanto, o panorama geral é menos positivo quando consideramos todos os tipos de plásticos, e nem todas as embalagens são recolhidas adequadamente. Portanto, embora a reciclagem de embalagens seja um ponto positivo, ainda há muito a fazer para melhorar a gestão e reciclagem de todos os tipos de resíduos plásticos, para que se possa pensar que a reciclagem é uma solução para o problema.

Qual a importância de ações como o Dia Internacional de Limpeza Costeira para consciencializar/sensibilizar a sociedade?

As ações como o Dia Internacional de Limpeza Costeira são extremamente importantes para a conscientização e sensibilização da sociedade. A Associação Portuguesa do Lixo Marinho, a que presido, tem vindo a organizar várias ações semelhantes com foco na monitorização e na recolha de lixo em praias. Participar desses eventos permite que as pessoas se sintam conectadas a um movimento global, sabendo que, naquele dia ou semana, indivíduos em diversos locais em todo o mundo estão a realizar atividades semelhantes. Esse sentimento de estar unido a um esforço coletivo pode ser um forte motivador para a ação, além do impulso altruísta de contribuir para a preservação do planeta.

No entanto, a sensibilização e a participação em eventos de limpeza, embora valiosas, podem ter um impacto limitado se não forem acompanhadas por mudanças estruturais e contínuas. Após a limpeza, o lixo recolhido é removido, mas a situação nas praias pode permanecer inalterada sem uma abordagem de longo prazo que inclua educação ambiental contínua, políticas eficazes de gestão de resíduos e mudanças nos hábitos de consumo.

A educação ambiental, apesar de ser promovida há décadas, ainda enfrenta desafios, evidenciado pelo fato de que problemas ambientais persistem. Portanto, embora ações como o Dia Internacional de Limpeza Costeira desempenhem um papel crucial na sensibilização, é essencial complementá-las com esforços sistemáticos e integrados para promover uma mudança de comportamentos duradoura.

A combinação de ciência e educação é essencial para enfrentar o desafio do lixo marinho e criar soluções duradouras para um ambiente mais limpo e saudável

E qual o papel da ciência e da educação na mitigação do problema do lixo marinho?

A ciência e a educação desempenham papéis fundamentais na mitigação do problema do lixo marinho.

A ciência é crucial para entender e quantificar os impactos negativos do lixo marinho. Através da investigação, podemos comprovar os efeitos adversos dos plásticos e outros resíduos no ambiente marinho e na saúde humana. A ciência também é vital para desenvolver novas soluções, como plásticos biodegradáveis e menos tóxicos, e para melhorar tecnologias de gestão e reciclagem de resíduos. Sem avanços científicos e tecnológicos, seria impossível encontrar soluções eficazes e sustentáveis para o problema.

Por outro lado, a educação é igualmente importante, pois é um pilar essencial para promover a consciencialização e mudança de comportamentos. Através da educação ambiental, podemos informar a sociedade sobre os impactos do lixo marinho e ensinar práticas que ajudam a reduzir a produção de resíduos e a melhorar a gestão dos mesmos. A educação não só aumenta a consciência pública, mas também capacita indivíduos e comunidades a tomar ações mais informadas e eficazes para proteger o meio ambiente.

Portanto, a combinação de ciência e educação é essencial para enfrentar o desafio do lixo marinho e criar soluções duradouras para um ambiente mais limpo e saudável.

Quais os resultados preliminares das atividades de monitorização e recolha de lixo marinho que vão ser realizadas durante a ação de limpeza e monitorização na praia da Cruz Quebrada (Oeiras)?

Não temos resultados preliminares, mas posso referir que a Praia da Cruz Quebrada revela alguns desafios específicos. Um aspeto notável é a presença contínua de resíduos provenientes de uma antiga fábrica de fibrocimento, a Lusalite, que fechou há mais de 20 anos. Apesar do fecho da fábrica, fragmentos desse material ainda aparecem na praia, o que é preocupante, considerando que o cimento de fibrocimento possui amianto na sua composição e tem uma degradação muito lenta.

Além disso, a área também tem histórico de despejo de entulho e outros resíduos ao longo dos anos, o que reflete a negligência ambiental passada. Este cenário é um exemplo de como a falta de gestão adequada e limpeza regular pode levar à persistência de resíduos no ambiente por longos períodos, mesmo após a cessação das atividades que os geraram.

É alarmante ver que, mesmo após tanto tempo, esses vestígios ainda estão presentes, sublinhando a importância de realizar ações de limpeza regulares e uma gestão eficaz de resíduos para prevenir e mitigar a poluição marinha.

Para combater as alterações climáticas e a crise dos plásticos, é necessária uma verdadeira revolução política e económica à escala global

Para combater as alterações climáticas e os plásticos é preciso uma revolução política à escala mundial?

Sim, para combater as alterações climáticas e a crise dos plásticos, é necessária uma verdadeira revolução política e económica à escala global. As soluções passam por ações coordenadas entre governos, empresas e cidadãos, com políticas públicas que promovam a transição para energias limpas, a economia circular e a redução da produção e uso de plásticos. Apenas uma transformação profunda e concertada pode enfrentar a dimensão deste desafio ambiental e assegurar um futuro sustentável para as próximas gerações.

 

 





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