Turismo intenso ameaça populações de golfinhos na costa do Algarve
O aumento do turismo de observação de cetáceos em embarcações motorizadas está a afetar negativamente a comunicação e o comportamento dos golfinhos que visitam ou residem nas águas ao largo da costa algarvia.
O alerta é feito por um grupo de investigadores portugueses num artigo publicado na revista científica ‘Oceans’.
Joana Castro, diretora-executiva da Associação para a Investigação do Meio Marinho (AIMM) e uma das autoras, conta à Green Savers, em chamada telefónica, que a observação de cetáceos promovida por operadores turísticos no Algarve é “uma atividade económica importante na região” e “tem vindo a crescer nas últimas décadas”, um aumento que descreve como “exponencial” e “até um bocadinho descontrolado”.
O aumento do número de embarcações, nas mesmas zonas frequentadas pelos golfinhos, está também a aumentar o ruído marinho. Dado que estes cetáceos são “animais acústicos”, explica a bióloga, cujas vidas, organização e coesão sociais, cooperação e capacidade de caça dependem muito da comunicação intra-grupo através de vocalizações, como assobios e cliques, águas mais “barulhentas” podem abafar as suas vozes. E as consequências podem ser desastrosas.
“Uma vez que estas observações turísticas estão tão presentes na costa algarvia e na vida destes animais, é preciso perceber que impactos têm estas atividades”, salienta Joana Castro.
E foi precisamente isso que levou esta equipa às águas ao largo da costa do Algarve. Através de hidrofones (microfones subaquáticos que captam e registam os sons que viajam na água), os cientistas documentaram, entre julho e setembro de 2022, as vocalizações das duas espécies de golfinhos que mais ocorrem nessa região, o golfinho-comum (Delphinus delphis) e o golfinho-roaz (Tursiops truncatus), bem como alterações provocadas pelo ruído de barcos de observação de cetáceos. Conseguiram fazer 103 gravações de golfinhos-comuns e 46 de golfinhos-roazes.
A investigação revelou que os ruídos produzidos pelas embarcações alteram as vocalizações dos golfinhos. Quanto mais embarcações numa dada área, maior a frequência dos assobios emitidos pelos animais, ou seja, quanto mais ruído antropogénico “mais alto” os golfinhos tinham de comunicar uns com os outros, com todos os gastos adicionais de energia e perda de informação associados a esse esforço acrescido.
Além disso, percebeu-se que o barulho produzido pelos barcos de observação fazia com que os golfinhos produzissem assobios mais longos para poderem transmitir as suas mensagens a outros membros do grupo.
Ruído antropogénico pode ameaçar sobrevivência dos golfinhos
Os cientistas sugerem que o barulho dos barcos de observação de cetáceos pode afetar a coesão dos grupos de golfinhos, animais altamente sociais e cooperativos cuja sobrevivência depende fortemente da sua capacidade de colaboração e entreajuda através da comunicação vocal.
Sendo que os golfinhos recorrem à ecolocalização para detetarem as suas presas e para se coordenarem com outros membros do grupo durante as caçadas, quanto maior for o ruído antropogénico, menor será a eficácia dessas comunicações e cooperação, colocando em risco a própria capacidade que têm para encontrarem alimento.
“O facto de termos mais ruído antropogénico vai afetar a capacidade destes animais para encontrarem o seu alimento e também a coordenação do próprio processo de caça entre eles”, sublinha Joana Castro.
“Estes são animais que vivem habitualmente em grupo e têm uma caça cooperativa, e essa coordenação é feita muitas vezes de uma forma vocal”, explica, pelo que “havendo muito ruído, essa coordenação será muito mais difícil”.
Os golfinhos podem até sofrer perdas de audição se o ruído marinho for muito elevado. E a sua reprodução será também afetada, uma vez que dependem das suas vozes para encontrarem parceiros, bem como o futuro do grupo pode ser posto em causa, pois o ruído cria uma barreira na comunicação entre progenitoras e crias.
O excesso de barcos fará com que os golfinhos se afastem da costa, procurando zonas mais tranquilas e silenciosas, naquilo que pode ser considerado como uma real perda de habitat para essas espécies. Ao mesmo tempo, quanto mais longe estiverem os golfinhos, maiores distâncias os barcos terão de percorrer para observá-los, com todos os gastos (de combustível, de tempo, de desgaste das embarcações) que isso implica.
Como tal, é uma situação em que ninguém sai a ganhar: nem os golfinhos, nem os humanos que os querem ver, nem as entidades que deles dependem para gerar lucro.
Apesar das regras, número de embarcações de observação excedem limites
Embora existam regras que definem um número máximo para a presença simultânea de embarcações de observação de cetáceos junto a um grupo de golfinhos, precisamente para minimizar ou evitar os impactos negativos sobre a vida marinha, os investigadores, durante o trabalho de campo, constataram que esse limite era frequentemente ultrapassado.
Joana Castro recorda que, ao longo do trabalho de campo, era frequente verem no mar mais embarcações do que as que seriam permitidas, e explica que isso acontece porque não só existem muitas empresas a operar na costa algarvia, mas também porque, apesar das regras, não existe uma fiscalização eficaz que zele pelo seu cumprimento.
“As regras e as leis existem por alguma razão”, aponta a investigadora, acrescentando que não é apenas o número de empresas que importa, mas sobretudo o número de embarcações que enviam para o mar.
“Esse é que é o principal problema”, afirma, adiantando que “o número de embarcações é realmente muito elevado neste momento”.
Sendo a costa algarvia uma área de reprodução “extremamente importante” para os golfinhos-comuns, é fundamental assegurar que as regras são cumpridas e que se olhe com a devida atenção para o crescimento de atividades turísticas de observação de cetáceos, procurando ao máximo garantir a minimização dos seus impactos negativos na vida marinha.
“Se acabamos por ter uma atividade que cresce de forma descontrolada, sem conhecermos bem as populações de animais que temos na costa algarvia e os limites de barcos que podem estar presentes, podemos estar a sobrecarregar em demasia a nossa costa”, avisa Joana Castro, “e deixamos de ter uma atividade sustentável”.
Aliar o turismo à conservação: É possível, mas é preciso regras mais apertadas
A observação de animais selvagens é, no campo da conservação, tida como uma atividade que permite valorizar espécies, ecossistemas e habitats e, assim, promover a sua proteção. Em Portugal, isso é visível no caso de espécies terrestres ameaçadas, como o lince-ibérico e o lobo-ibérico, relativamente às quais os conservacionistas acreditam que, se for possível gerar rendimentos através da sua observação, serão mais bem aceites pela população geral, mas sobretudo por quem com elas convive.
Joana Castro acredita que é possível aliar o turismo de Natureza à conservação da biodiversidade. Contudo, para isso acontecer, “é preciso que as empresas sejam muito responsabilizadas por essa missão”, observa a investigadora, acrescentando que também as entidades públicas que autorizam essas operações de observação têm “uma grande responsabilidade”.
“Isto, para que não seja qualquer empresa que possa ser uma empresa de ecoturismo”, sublinha, “mas, no fundo, é o que vemos hoje”. Especificamente sobre a região do Algarve, a interlocutora lamenta que, atualmente, “qualquer empresa pode fazer este tipo de atividade de observação de cetáceos desde que submeta os devidos papéis”.
Por isso, defende que “tem de haver uma exigência muito maior por parte dos órgãos governamentais”, pois “não pode ser tão fácil fazermos uma atividade de ecoturismo”. Só assim, será possível que as atividades de observação de cetáceos se possam alinhar com os esforços que visam a conservação dessas espécies.