“A gente transmite a voz da floresta”: A luta do povo Borari pela proteção da Amazónia



A Terra Indígena Maró localiza-se no município de Santarém, no estado brasileiro do Pará, estendendo-se por quase 42 mil hectares em plena Amazónia e caracterizada por floresta primária repleta de uma grande diversidade de vida.

Há 132 anos que o povo Borari vive nesse território, juntamente com o povo Arapium, outra comunidade indígena brasileira. E a população distribui-se por três aglomerados: as aldeias Cachoeira do Maró e São José III, ocupadas pelos Arapium, e a Aldeia Novo Lugar, pelos Borari.

Em entrevista à ‘Green Savers’, à margem da cimeira Digital With Purpose que aconteceu em Lisboa no final de setembro, o cacique Odair Borari, líder do povo Borari e também conhecido como Dadá, contou que “até 2000, a gente vivemos uma vida muito tranquila”, preocupando-se somente “a cuidar da floresta”, um lugar não separado das vivências humanas, mas sim parte indissociável delas.

Para esses povos nativos, a floresta não é apenas um lugar estático onde crescem plantas comestíveis e medicinais, onde brotam frutos e rumam animais. É um lugar que vibra com vida, onde humanos e não-humanos partilham espaços e existências, reconhecendo as interdependências que os unem e que constroem uma rede intricada multiespécies.

A floresta como lugar de pessoas, animais, plantas e seres invisíveis

“Nós, os povos indígenas, a gente transmite a voz, o clamor da floresta”, declarou o cacique, explicando que a floresta é um local de inspiração e onde os humanos podem adquirir conhecimento sobre o mundo que os rodeia e interagir com todas as formas de vida que nela habitam, comunicando diretamente com todos os seres, os que os olhos veem e os que existem em planos sobrenaturais, apelidados de seres invisíveis.

Embora reconheça que existe uma diferença entre a pessoa e a floresta, ambos dependem um do outro, pelo que “quando fazemos tolices sobre a floresta, ela nos chama à atenção

“A floresta existe como espaço sagrado, como espaço cultural e como espaço social”, afirmou o líder Borari, que é também professor, apontando que, nos lugares sagrados, os seres invisíveis são “os grandes espíritos” da floresta e que “nós inspiramos a eles e eles inspiram a nós”. São, posto de outra forma, os porta-vozes da floresta.

Em volta dos espaços sagrados, surge uma outra ‘camada’, onde crescem as plantas medicinais, usadas para tratar e curar uma multiplicidade de dores corporais. “Aí, nós podemos pegar uma erva, uma casca ou um pedacinho da folha e você faz aqueles chás e rapidamente você vai ficar bom”, observou. Depois, encontramos os locais de cultivo e os espaços de habitação.

Para Dadá Borari, essa forma de viver do povo indígena alicerça-se num respeito mútuo entre os humanos e a floresta, que engloba um conjunto de conhecimentos e práticas a que chama de ‘grande tecnologia ancestral’, que vai sendo transmitido de geração em geração, para manter a harmonia e o equilíbrio. Algo de grande importância, pois a floresta é tida como “uma casa” para estas comunidades nativas, que cuidam dela como dos seus próprios lares.

Embora reconheça que existe uma diferença entre a pessoa e a floresta, ambos dependem um do outro, pelo que “quando fazemos tolices sobre a floresta, ela nos chama à atenção”. E exemplificou: “o homem que está ali na floresta, ele fez uma tolice e os seres invisíveis fazem com que ele dê um apagão e ele perde o rumo”.

Assim, quando o equilíbrio com a floresta é perturbado, “ela nos dá um aperto”, alertando que estão a ser ultrapassados limites que não devem ser excedidos, e são os tais seres invisíveis que intercedem em nome da floresta para voltar a colocar os humanos ‘na ordem’.

A proteção da biodiversidade e a defesa dos direitos dos povos indígenas

Muito se tem falado nos últimos tempos sobre a ligação entre a proteção da biodiversidade e a defesa dos direitos dos povos indígenas, em que uma não pode acontecer sem a outra, dado que nas terras ocupadas por essas comunidades se registam dos níveis mais elevados de diversidade de espécies de animais e plantas. Estimativas apontam para que perto de 80% de toda a biodiversidade da Terra esteja concentrada em terras ocupadas por povos indígenas.

E essa é uma noção com a qual o cacique Dadá Borari concorda. Para ele, “a gente preserva muito, a gente cuida muito”, salientando que existe uma preocupação em passar às gerações futuras que a floresta não existe apenas como objeto de observação e investigação científica, destacada das vivências humanas diárias, mas antes que é um lugar de ligação à Natureza e à própria comunidade, e um acervo de conhecimentos, práticas e culturas que deve, por isso, ser conservado.

“A luta cultural, a luta ancestral junto com a Grande Biodiversidade é uma só”, afirmou o líder indígena. Contudo, “a sociedade que não está lá, vê isso como se fossem lutas separadas, mas não são. Para nós, é a mesma coisa”, acrescentou, frisando que falar de biodiversidade é, necessariamente, falar dos povos indígenas. E, citando o Papa Francisco, que descreveu como “o nosso grande líder”, afirmou que “tudo está interligado”.

Povos indígenas da Amazónia “enfrentam perseguições muito grandes”

Os povos indígenas da floresta tropical brasileira têm sido alvo de fortes pressões, intensificadas nos últimos anos, especialmente durante a presidência de Jair Bolsonaro. Os direitos sobre as suas terras ancestrais têm sido enfraquecidos e até mesmo descredibilizados para permitir o avanço das indústrias agroalimentar, madeireira e mineira, que, em terras que consideram ser de ninguém, avançam impiedosamente sobre as florestas, derrubando árvores, poluindo rios e lagos, dizimando comunidades humanas e de animais e plantas.

A luta cultural, a luta ancestral junto com a Grande Biodiversidade é uma só. A sociedade que não está lá, vê isso como se fossem lutas separadas, mas não são. Para nós, é a mesma coisa, acrescentou, frisando que falar de biodiversidade é, necessariamente, falar dos povos indígenas

Dadá Borari contou-nos que “os povos indígenas que vivem na Amazónia enfrentam três perseguições muito grandes”. Uma delas é, então, a exploração madeireira. O cacique disse que essas intervenções são executadas sob a guisa de projetos de gestão florestal, mas “para nós, tudo o que se tira mas não se põe não é gestão”.

Outra grande pressão advém do setor agrícola, que derruba vastas extensões de floresta para substituir a vegetação nativa por culturas de soja ou milho. “Isso para nós é uma doença”, lamentou, apontando que na mesma categoria cabe a mineração, outra das grandes ameaças enfrentadas pelos povos indígenas amazónicos.

Sobre a exploração de minerais, como o ouro, cujas práticas de uso de mercúrio envenenam rios, lagos, solos, plantas , animais e humanos, o líder dos Borari disse que “consideramos que é um cancro”. Isto, “porque vai matando os indígenas aos poucos”.

A procura pelo lucro leva “os grandes empresários” desses setores a tentarem subornar as lideranças indígenas, para que possam avançar sem terem de lidar com a resistência das comunidades locais. No entanto, aqueles líderes que não se deixam ‘comprar’, “recebem ameaças de morte”, algo que afeta não apenas essa pessoa, mas todas as que estão à sua volta, com o cacique a dizer que “ficam doentes psicologicamente”.

A perseguição chega à Amazónia muito bem articulada e quando a liderança não está preparada para isso, acaba se vendendo e aí não tem mais saída

Há também os líderes que procuram resistir até às últimas consequências, sem se deixarem intimidar ou corromper, em prol do povo pelo qual são responsáveis. Frequentemente, acabam por ser mortos.

“Na Amazónia, tem muito assassinato de lideranças indígenas, de lideranças quilombolas, por causa desse confronto”, revelou Dadá Borari, apontando que a resistência deve ser feita com estratégia, para se poderem evitar mais fatalidades.

Ele próprio, segundo nos contou, foi torturado duas vezes em 2006 e recebeu várias ameaças de morte. Foi também alvo de processos judiciais, “mas não conseguiram me prender, porque nada favorável a eles foi provado”, recordou, referindo, contudo, “que a perseguição sempre continuou”.

“A perseguição chega à Amazónia muito bem articulada e quando a liderança não está preparada para isso, acaba se vendendo e aí não tem mais saída”, argumentou, defendendo que é preciso dotar os líderes dos povos indígenas de ferramentas que lhes permitam fazer face às pressões que sobre eles e sobre os seus territórios ancestrais se abatem incessantemente e com grande força.

Por isso, acredita que é fundamental a formação das lideranças sobre como atuam aqueles que procuram conquistar as suas terras e como podem lidar com eles sem colocarem em risco a segurança e sobrevivência das suas comunidades.

A demarcação das terras indígenas

Em setembro, o Supremo Tribunal Federal brasileiro rejeitou o que é conhecido como ‘a tese do marco temporal’, um conjunto de argumentos propalados por um segmento do setor empresarial que tenta impedir o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas sobre as terras que consideram ser suas por ancestralidade.

A decisão foi recebida como uma vitória pelos povos indígenas, como um fortalecimento das suas lutas e reivindicações contra os avanços de projetos destrutivos movidos pela máquina capitalista e pela sede de lucro.

Para o cacique Dadá Borari, se não fossem a migração para a Amazónia e o apetite das grandes empresas “não havia necessidade de demarcar terras indígenas”. Como tal, para evitarem que esses territórios sejam comprados pelo “mundo financeiro que quer explorar a Amazónia”, os povos locais lançaram-se numa demanda, há já vários anos, para reclamarem os seus direitos sobre as terras dos seus antepassados, uma vez que as terras compradas muitas vezes se sobrepõem a lugares indígenas ou quilombolas.

“As terras indígenas que não são demarcadas ficam abertas aos grandes projetos que chegam à Amazónia. Elas ficam vulneráveis”, afirmou. Mas lamentou que a demarcação “é todo um processo”, arrastando-se por muito tempo. “Não se demarca uma terra indígena em menos de 10 anos e isso é um grande problema”, pois, entretanto, dificilmente se deterá o avanço das máquinas e, quando finalmente for oficialmente demarcada, poderão já ter sido causados danos irreversíveis.

Assim, quando do Supremo chegou a notícia de que a tese do marco temporal tinha sido derrubada, “para nós foi um momento de alegria, de comemoração”, confessou o líder Borari, afirmando, no entanto, “que não dá para se cruzar os braços”, pois a guerra não foi ainda vencida.

“Quem investiu muito nessa tese, que perdeu, nunca se vão calar, porque existe uma grande influência financeira e política por trás de tudo isso”, avisou, salientando que “é hora de a população indígena estar mais articulada, mais organizada, mais unida para enfrentar”, porque mais pressões certamente virão.

A eleição de Lula da Silva como Presidente do Brasil foi vista como um sinal positivo por parte dos povos indígenas, bem como a criação de um ministério cuja principal função é apoiar e zelar pelos direitos dessas comunidades. No entanto, o cacique Dadá Borari considera que é preciso mais financiamento para que esse ministério possa realmente “andar pelas suas próprias pernas” e responder a todas as necessidades das populações indígenas.

A Amazónia será mesmo ainda ‘o pulmão do mundo’?

“A mudança climática está se dando por conta da teimosice da humanidade”. Para o cacique Dadá Borari, o estado em que o planeta Terra se encontra atualmente é culpa, em grande medida, “do grande capital”.

Embora a Amazónia tenha, ao longo dos tempos, sido reconhecida como ‘o pulmão do mundo’, o líder indígena disse que “é um pulmão que está todo manchado”. E apontou que a sua recuperação “não é só uma responsabilidade de quem está na Amazónia”, mas também “de quem financia a Amazónia” e de quem dela beneficia.

Por isso, apela a “mais respeito, mais carinho” para com essa floresta tropical, uma das mais biologicamente diversas do planeta, e, sobretudo, “mais responsabilidade na hora de aprovar qualquer projeto, qualquer empreendimento para a Amazónia”. Essa floresta “precisa de apoio, sim, mas que tipo de apoio?”, questionou.

Poderão passar, sugeriu, pelo investimento em energias renováveis para permitir o abandono do uso dos combustíveis fósseis e pela recuperação dos ecossistemas e da biodiversidade, com a replantação de espécies nativas que permitam reforçar a produção de oxigénio e restabelecer habitats e ecossistemas perdidos ou degradados.

A mudança climática está se dando por conta da teimosice da humanidade. Para o cacique Dadá Borari, o estado em que o planeta Terra se encontra atualmente é culpa, em grande medida, “do grande capital

Dadá Borari considera que a Amazónia “deve ser olhada com carinho” e deve ser valorizada, não pelos recursos monetizáveis que tem e que apenas enchem os bolsos de uns poucos e deixam um rasto de destruição no seu encalço, mas sim pela sua “biodiversidade riquíssima” e pela sua “sabedoria imensa”.

“Sabemos que não é fácil. Mas se cada um der um pouco de si e contribuir para a conservação dela, a gente consegue alcançar isso”, afiançou, referindo que “não é fácil, mas é possível”.

“A minha grande preocupação é justamente com aqueles seres que falam e que a sociedade não entende. São os animais, são as árvores, são os rios, são os lagos e são os seres invisíveis, que só nós sabemos onde eles estão. Esses estão muito vulneráveis, não têm defesas”, realçou o líder indígena.

“Uma árvore não sabe se defender diante de uma motosserra, os peixes não têm defesa contra um grande arrastão ou um agrotóxico que desce naquele rio”, e essa, segundo Dadá Borari, “é a grande injustiça que é feita na Amazónia”.

Para ele, quando as sociedades por todo o mundo perceberem, por fim, que “o que entendem como progresso é destruição”, então “a gente vai ter um futuro melhor”. Até esse dia, a luta pela proteção da Amazónia e dos povos humanos e não-humanos que a tornam um dos principais centros nevrálgicos da diversidade, biológica e cultural, da Terra, continuará, firme e determinada.

*Artigo originalmente publicado na revista de dezembro de 2023

 





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