“Companheiros na vida e na morte”: Escavações arqueológicas revelam laços fortes entre humanos e dingos na Austrália pré-colonial
Diz a sabedoria popular que “o cão é o melhor amigo do Homem”. Apesar de isso poder encontrar correspondência em algumas sociedades humanas que cada vez mais procuram proteger os seus animais de companhia, outras espécies de canídeos não gozam de um estatuto tão positivo.
Os lobos, agora um ‘tema quente’ na Europa, são vistos como ameaças à subsistência de comunidades rurais de alguma forma dependentes da criação de gado, e as raposas são percecionadas como ‘incómodos’ para agricultores e não só, apontadas como causadoras de prejuízos a quem tem galinhas ou outros animais de menor porte.
Isso é por cá. Na Austrália, um outro canídeo é considerado por alguns como uma praga que ataca ovelhas e cabras e provoca a ira e a retaliação de agricultores e criadores de gado.
O dingo (Canis dingo) é uma espécie de cão selvagem característico da paisagem australiana, estimando-se que tenha chegado a esse território há mais de 10 mil anos, estabelecendo-se como um predador de topo que ajuda a manter a estabilidade dos ecossistemas, a controlar as populações de presas e de mesopredadores.
Embora esse canídeo seja hoje visto como um alvo a abater por alguns setores na Austrália, tal como acontece com o lobo na Europa, uma recente investigação arqueológica revela que os dingos terão sido “companheiros na vida e na morte” dos humanos, um animal que viveu em grande proximidade com os povos nativos australianos, conhecidos como Primeiras Nações, antes de o país ter sido colonizado pelos europeus.
A descoberta, divulgada num artigo publicado na ‘PLOS One’, teve por base a análise de vestígios osteológicos encontrados no sítio arqueológico de Curracurrang, a sul da capital Sidney, onde os investigadores encontraram estruturas funerárias, com cerca de dois mil anos, contendo esqueletos humanos e ossos de dingos, juntos.
Os cientistas argumentam que os animais terão sido colocados nessas estruturas “com cuidado”, dado o nível de articulação e a disposição dos esqueletos dos canídeos, algo que Loukas Koungoulos, um dos autores, interpreta como sendo revelador de “uma relação mais próxima do que se pensava entre humanos e dingos”.
O zooarqueólogo avança, em comunicado, que os dingos encontrados terão sido sujeitos aos mesmos ritos funerários que os humanos encontrados nesse local, sugerindo o que ele considera ser “o laço próximo entre pessoas e dingos” e o “estatuto quase humano” investido sobre esse animal pela comunidade nativa.
Além disso, o estudo dos ossos dessa espécie de canídeo revelou ainda que alguns animais podem mesmo ter sido domesticados pelos humanos, ou, pelo menos, a prática foi tentada, uma vez que foram identificados dentes de dingos bastante gastos, “o que sugere uma dieta forte em grandes ossos, provavelmente de restos de refeições humanas”, indicam os investigadores.
O facto de terem escavado restos de dingos de várias idades, desde cachorros a adultos, leva esta equipa a crer que os humanos não se limitavam a cuidar das crias antes de serem devolvidas ao meio selvagem, mas que “criaram relações muito mais substanciais” com esses animais.
Contudo, com a chegada dos europeus, e da colonização do território australiano, o elo entre comunidades aborígenes e dingos terá sido enfraquecido ou mesmo quebrado. “O nosso trabalho mostra que [os povos indígenas e os dingos] tinham relações duradouras antes da colonização europeia, não apenas as associações transitórias e temporárias registadas durante a era colonial”, detalha Susan O’Connor, outra das autoras do artigo.
Os investigadores escrevem que, embora os enterros de dingos seja algo ainda pouco estudado, “a sua caracterização e interpretação situam a Austrália no âmbito de um fenómeno global que demonstra as ligações próximas entre pessoas e os seis canídeos ao longo de toda a Antiguidade”.