Entrevista: “As pessoas deixaram de saber conviver com o lobo”



A Comissão Europeia (CE) está a considerar rever o estatuto de proteção do lobo (Canis lupus) na Europa, alegando que a recuperação da espécie, sobretudo em regiões das quais esteve ausente durante vários anos, está a aumentar os conflitos com as comunidades humanas locais, sobretudo agricultores e caçadores.

A presidente do executivo comunitário, Ursula von der Leyen, afirmou, na semana passada, que “a concentração de alcateias em algumas regiões europeias tornou-se um perigo real para o gado e potencialmente também para os humanos”. Com base nessa perceção, pede às autoridades nacionais e locais para “agirem onde necessário”, recordando que a legislação europeia em vigor “já permite que o façam”.

Para perceber o que se passa na Europa, é pedido aos Estados-membros, às comunidades locais, aos cientistas e “a todas as partes interessadas” que, até dia 22 de setembro, façam chegar à CE dados sobre as populações de lobos, bem como sobre os impactos causados pela espécie.

Com essa informação, o executivo decidirá se o estatuto de proteção do lobo na região será, ou não, modificado, adaptando a legislação existente “à evolução desta espécie”, com o objetivo de “responder aos desafios relacionados com o regresso dos lobos”.

Quando o lobo regressa, as pessoas “não sabem como reagir”

Para Francisco Petrucci-Fonseca, presidente do Grupo Lobo e biólogo que há décadas acompanha a espécie, o lobo “está em expansão” na Europa, explicando que a redução das populações humanas nas áreas rurais, um fenómeno transnacional, tem permitido a melhoria das espécies-presa do lobo e, consequentemente, desta espécie.

Em conversa com a ‘Green Savers’, o especialista diz que “o lobo está a aproveitar o facto de haver menos perseguição, menos pessoas nas zonas rurais, mais presas naturais” e, por isso, “tem vindo paulatinamente a recuperar e a recolonizar áreas onde tinha sido exterminado”.

Lobo cinzento (Canis lupus).
Foto: Katerina Hlavata / Wikimedia Commons (licença CC BY 2.0)

Mas alerta que existem diferenças entre o norte e o sul da Europa. Na Escandinávia, por exemplo, onde o lobo desapareceu quase totalmente, “as pessoas perderam hábitos de convivência com o animal” enquanto no sul do continente “isso não acontece”.

“As pessoas deixaram de saber conviver com o lobo”, salienta, “e quando o lobo aparece novamente, não sabem como reagir”. Se há algumas décadas, os pastores e criadores de gado tinham por hábito, na maioria da área de distribuição do lobo, guardar os seus animais durante a noite, depois de um dia de pastagem, hoje essa prática diminuiu, aumentando a exposição a ataques por predadores, como o lobo ou cães assilvestrados, mas não só.

A ausência prolongada do canídeo selvagem em algumas regiões fez com que as populações locais tivessem perdido práticas que antes implementavam para reduzir as perdas de gado. Agora que o lobo está a regressar, essas práticas ancestrais de pastoreio são, uma vez mais, necessárias, mas a sua recuperação não está a acontecer.

Essa conjuntura faz crescer o medo das populações que estão mais próximas do lobo, que se sentem desprotegidas, e pode degenerar no aumento dos conflitos entre as duas espécies, no recrudescimento da intolerância face à presença do lobo e no fortalecimento do apoio a medidas de controlo das populações desta espécie através, por exemplo, do abate.

O caso do pónei de Von der Leyen e as questões políticas

Em setembro de 2022, foi relatado que o pónei de estimação de Ursula von der Leyen, de nome Dolly, tinha sido morto por um lobo na quinta da sua família, no norte da Alemanha. Algumas vozes argumentam que esse incidente terá motivado a presidente da Comissão Europeia a pôr em cima da mesa a possibilidade de reduzir a proteção do lobo na Europa, tomando a sucedido como uma confirmação de que o aumento das populações lupinas representa hoje um risco que há anos não existia, ou que era pouco significativo.

Referindo-se à presidente da CE, o especialista diz que “é um político que estará entre aquelas pessoas que não sabem conviver” com o lobo, criticando-a por não ter tomado as medidas necessárias para proteger o equídeo.

“Falta prevenção, é isso que as pessoas não fazem”, afirma Petrucci-Fonseca, apontando que a instalação de vedações elétricas, o uso de cães de gado e a recuperação de práticas de proteção do gado são fundamentais para que possa existir uma coexistência minimamente pacífica entre humanos e lobos, e outros predadores.

Alguns pastores e criadores de gado estão a recuperar a prática do uso de cães de gado para protegerem os animais domésticos de predadores, como lobos e cães assilvestrados, como medida para evitar conflitos e prejuízos.
Foto: Programa ‘Cão de Gado’ / Grupo Lobo

Para o presidente do Grupo Lobo, o contacto com as populações que vivem na proximidade com os lobos, como pastores e agricultores, e a transmissão de informação cientificamente precisa é essencial para que haja a necessária “mudança de mentalidades”.

E salienta que os grupos europeus de caçadores e de criadores de gado têm uma forte influência política junto dos legisladores europeus, procurando uma maior margem de atuação no que toca ao controlo das populações de lobos.

Petrucci-Fonseca sugere também que o lobo pode estar a ser usado como ‘bode expiatório’ por partidos políticos, como forma de conquistarem votos do eleitorado rural. Recordando as eleições espanholas, diz que “o lobo foi usado como bandeira, neste caso pelo PP [Partido Popular] para cativar as pessoas”.

“Isto é também uma questão política”, declara, sugerindo que “se o pónei da presidente da Comissão [Europeia] não tivesse sido morto por lobos, não estaríamos a falar sobre este assunto”.

“Não faz sentido numa União Europeia que tem uma Diretiva Habitats estarmos agora a fazer derrogações que não se justificam”, sentencia o biólogo.

Ataques a pessoas não são o comportamento “normal” do lobo

O sentimento de insegurança das comunidades locais, a par dos prejuízos económicos, tem sido um dos fatores que tem impulsionado o debate sobre a redução da proteção do lobo na Europa. No entanto, Francisco Petrucci-Fonseca conta-nos que os ataques de lobos a pessoas não são habituais – em Portugal, o último ataque a um humano foi registado na década de 1950, mas o animal estava doente com raiva.

O biólogo explica que existem duas situações em que um lobo pode atacar pessoas: se estiver infetado com o vírus da raiva, doença que em Portugal “já não existe” ou se os lobos se sentirem ameaçados. “São casos muito pontuais, não é a generalidade”, afiança, “até por que o lobo tem medo do Homem”.

“O grande problema é esta ‘tradição oral’ que vai mantendo no nosso coletivo esta ideia de que os lobos atacam toda a gente”, afirma Petrucci-Fonseca. “É um mito, um preconceito cultural”, acrescenta, recordando, por exemplo, que os ursos causam mais mortes humanas do que os lobos.

Abandono do mundo rural e perda de habitats naturais

A redução da densidade populacional nas regiões rurais, sobretudo interiores, leva os lobos a expandirem cada vez mais o seu raio de ação para áreas povoadas por humanos, podendo causar prejuízos ao setor agropastoril e agudizando sentimentos de intolerância e de insegurança.

Mas Francisco Petrucci-Fonseca diz-nos que é preciso recordar que os habitats naturais do lobo estão em declínio por toda a Europa, destruídos para acomodar a expansão urbana e agrícola.

Por isso, os animais procuram alimento em zonas com presença humana, aproximando as duas espécies uma da outra, interações potencialmente prejudiciais para ambos os lados da equação ecológica.

O biólogo afirma que em regiões onde exista uma densidade considerável de presas naturais do lobo, há também uma redução dos prejuízos sofridos pelos criadores de gado, perdas que são um dos principais motores do movimento a favor da redução da proteção da espécie na Europa.

Falta de conhecimento fez lobo passar de predador a presa

Francisco Petrucci-Fonseca considera que o lobo, um predador de topo, é hoje mais presa que predador, acossado por populações humanas – não todas – que o veem como uma ameaça à sua segurança e à sua subsistência e que procuram reduzir a sua presença.

Para o biólogo, a falta de conhecimento sobre o que é “o verdadeiro lobo”, sobre o seu papel ecológico e o seu lugar na constelação de biodiversidade, da qual nós, humanos, também somos parte, tem pressionado cada vez mais as populações lupinas na Europa.

Além disso, considera contraditória a posição agora assumida pela Comissão Europeia sobre uma eventual redução da proteção do lobo no continente, quando esse órgão tem devotado financiamento considerável a projetos de conservação dessa espécie no continente.

“Nós sempre convivemos com o lobo, apesar de ter sido uma convivência conflituosa. Mas queremos uma convivência pacífica, e isso passa pelo conhecimento, por ouvir as pessoas que têm andado a estudar o lobo em Portugal, em Espanha, na Europa”, afirma Petrucci-Fonseca.

“No caso dos criadores de gado, essa convivência pacífica passa pela prevenção”, sublinha, referindo que, no que toca aos caçadores, “há que aceitar que existem outros predadores”.

O biólogo acredita que é possível uma coexistência pacífica com os lobos “desde que aprendamos que não estamos sozinhos no mundo”. E lembra as palavras de um manifesto de 2000, do grupo de especialistas em lobo da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), que diz que “os lobos, tal como os outros animais selvagens, têm o direito a existir em estado selvagem em populações viáveis”.

E esse direito “de forma alguma” está dependente do valor que lhe é atribuído pelos humanos, diz o manifesto, e “deriva do direito de todas as criaturas vivas de coexistirem com os humanos como parte dos ecossistemas naturais”.

Uma Europa dividida

A espécie é protegida há décadas pela chamada Diretiva Habitats, que lista o lobo no seu Anexo II, como “espécie de interesse comunitário cuja conservação requer a designação de áreas especiais de conservação”, e proíbe a sua captura e morte intencional. No entanto, fruto de projetos de conservação, as populações lupinas têm conseguido recuperar na Europa, depois de nos séculos XIX e XX terem sido quase extintas, por causa da perseguição humana, da destruição do seu habitat natural e da escassez de presas.

Agora, estima-se que existam perto de 12 mil lobos por toda a Europa, e os agricultores e caçadores queixam-se de prejuízos económicos causados pela espécie, pela morte de animais de criação, sobretudo cabras e ovelhas, e de o lobo estar a fazer uma pressão perigosa sobre as populações de espécies cinegéticas.

No ano passado, o Parlamento Europeu debateu a redução da proteção do lobo no continente, com o Partido Popular Europeu (PPE) a pedir uma gestão mais flexível das populações de lobos em prol da defesa dos interesses dos agricultores. Em novembro, os eurodeputados adotaram uma resolução na qual dizem que “a população de lobos tem o potencial para crescer exponencialmente em aproximadamente 30% anualmente” e alertam para o aumento dos “impactos negativos de ataques a gado pela população crescente de lobos” e para uma maior frequência das interações entre humanos e essa espécie de canídeo selvagem.

O debate em torno do lobo é fraturante, evidenciam claras divergências mesmo no seio da União Europeia. Em fevereiro último, Portugal e outros 11 Estados-membros enviaram uma carta à CE na qual apelavam à manutenção da proteção do lobo, apontando que “seria um erro enfraquecer a proteção legal do lobo”, uma espécie que, por exemplo, atua como “barreira natural” contra várias doenças e como controlo natural de populações de animais selvagens.

O lobo em Portugal

Em Portugal, a subespécie endémica lobo-ibérico (Canis lupus signatus) é protegida por lei desde 1988. Mas a possibilidade de a proteção do lobo vir a ser reduzida a nível europeu não deverá afetar a sua proteção ao abrigo da lei portuguesa.

Embora não seja ainda conhecido o número de lobos que hoje existem em Portugal – o último censo, de 2002-2003, apontava para 51 alcateias confirmadas, a maior parte a norte do rio Douro –, estima-se que em algumas regiões do país o lobo está em decrescimento, ainda que noutras esteja estável.

“Noutras áreas, o lobo começa ligeiramente a tentar recuperar, mas quando aparece muitas vezes é logo morto”, explica-nos o especialista, destacando que a conservação não pode apenas ficar “no papel” e deve envolver todas as partes interessadas, sobretudo as pessoas e comunidades que estão na ‘linha da frente’, como os pastores no caso dos lobos.

A recuperação das populações de lobos em Portugal, bem como noutros países, é importante também para os humanos, na medida em que, sendo predadores, ajudam a controlar as populações de espécies como o javali ou o veado, vistas já por muitos como ‘pragas’.

Como tal, mesmo que a nível europeu o atual estatuto de proteção do lobo venha a ser enfraquecido, “isso não se deve refletir em Portugal, porque a situação é diferente do que se passa no resto da Europa”, afiança Francisco Petrucci-Fonseca.

“Além disso, nós temos uma lei de proteção do lobo, e não faz sentido a União Europeia estar a dar-nos dinheiro para salvarmos uma espécie e agora vir dizer que podemos começar a matá-lo”, salienta.

O biólogo, fruto de auscultações dos pastores e outros criadores em Portugal, diz que o sistema de compensação por prejuízos sofridos pela predação do lobo, com a perda de animais domésticos, deveria ser melhorado, tornado mais simples e mais ágil. E deveria haver um maior esforço para informar e esclarecer essas pessoas sobre os programas que existem para fazer face a esses prejuízos.

Petrucci-Fonseca acredita que uma otimização do sistema de compensação ajudaria a atenuar a conflitualidade e as atitudes negativas sobre o lobo, e a impulsionar uma maior tolerância da espécie.

Questionado sobre se alguma vez será possível alcançar uma coexistência minimamente pacífica com o lobo, confessa-nos que “tenho esperança que sim”, mas, atendendo a que as relações humano-lobo contêm uma forte componente cultural, diz que “não é algo que aconteça de uma geração para a outra”.

“É um trabalho que tem de ser feito ao longo do tempo. Temos de dizer a verdade sobre as coisas, que o lobo causa prejuízos, mas que também tem benefícios”, aponta, acrescentando que “temos é de ver como aumentar os benefícios e diminuir os prejuízos”.

“Não vela a pena estarmos a apagar histórias como o ‘Capuchinho Vermelho’. Temos é de criar outras histórias mais positivas sobre os lobos”, sublinha, apontando que “os animais são como são, não como gostaríamos que fossem, e é preciso compreender isso, e tal só pode acontecer através do conhecimento”.





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