Entrevista: “Grau de literacia ESG é ainda insuficiente por parte das empresas e da comunidade jurídica”



Num contexto internacional marcado por instabilidade geopolítica, tensões comerciais e alterações legislativas de grande escala, a sustentabilidade tornou-se um elemento central na gestão empresarial.

Em entrevista à Green Savers, Paulo Câmara, coordenador da pós-graduação em Direito da Sustentabilidade Empresarial, docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e Sócio da Sérvulo & Associados, explica que “o grau de literacia ESG é ainda insuficiente por parte das empresas (salvo as empresas de muito elevada dimensão) e da comunidade jurídica”.

Para o professor, é agora vital para mitigar riscos como a dependência energética ou a fragilidade das cadeias de abastecimento. A boa governação assume aqui um papel estratégico, exigindo dos administradores uma renovação da literacia em sustentabilidade e uma adaptação dos modelos de gestão aos novos deveres fiduciários. A resposta eficaz a este novo quadro passa por uma ação coordenada entre empresas, reguladores e profissionais do Direito.

Ana Filipa Morais Antunes, coordenadora da pós-graduação em Direito da Sustentabilidade Empresarial e docente da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, reforça que a sustentabilidade deve ser encarada como um fator decisivo para a competitividade empresarial. O novo enquadramento europeu, com normas como a CSRD e a Taxonomia, obriga as empresas a adotarem práticas efetivas de prevenção, mitigação e compensação de impactos sociais e ambientais.

A jurista destaca ainda a necessidade urgente de formação especializada para juristas e gestores, capazes de antecipar riscos e apoiar decisões informadas num cenário cada vez mais exigente. A nova pós-graduação da Católica pretende justamente formar os protagonistas deste “novo Direito da Sustentabilidade Empresarial”, combinando rigor técnico, interdisciplinaridade e uma abordagem pedagógica centrada na resolução de problemas reais.

  1. Vivemos tempos de crescente instabilidade geopolítica. Na vossa opinião, de que forma é que estes contextos internacionais mais voláteis tornam ainda mais urgente a integração de práticas de sustentabilidade nas empresas?

(Paulo Câmara)

O tempo atual é de redefinição de parcerias geopolíticas, de conflitos armados e de sucessivas alterações de orientação dos decisores políticos, através de medidas, de contramedidas e de retaliações em diversos pontos do globo. Este quadro afeta inevitavelmente as empresas, sobretudo as empresas exportadoras, criando um espectro sistémico de incerteza e dificultando o cumprimento da sua estratégia de sustentabilidade. O momento é por isso muito propício para a reafirmação dos compromissos internacionais com os ODS e os objetivos do Acordo de Paris.

  1. Como é que os critérios ESG (Ambientais, Sociais e de Governação) ajudam hoje as organizações a antecipar e a mitigar riscos como a dependência energética, a fragilidade das cadeias de abastecimento ou as tensões comerciais globais?

(Paulo Câmara)

 Os riscos ESG para as empresas não diminuíram; antes pelo contrário. Os acidentes climáticos e as desigualdades sociais são cada vez mais graves, como se tem demonstrado nos últimos meses. Além disso, os riscos geopolíticos agravam o mapa de riscos com que as empresas se defrontam, com implicações importantes nas empresas com cadeias de abastecimento ou de fornecimento internacionais. Neste cenário, as empresas devem prevenir a ocorrência de danos (numa lógica outside-in) e também procurar cessar externalidades sobre a envolvente ambiental e social (inside-out).

Paulo Câmara, coordenador da pós-graduação em Direito da Sustentabilidade Empresarial, docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e Sócio da Sérvulo & Associados
  1. A boa governação tem vindo a ganhar destaque no debate sobre sustentabilidade. Que papel pode e deve a governação corporativa desempenhar para equilibrar os objetivos de competitividade com as exigências ambientais e sociais?

(Paulo Câmara)

A atual interseção entre geopolítica e sustentabilidade apenas é gerida adequadamente através de respostas e políticas de governação societária. A envolvente dos riscos de sustentabilidade e geopolíticos implica adaptações na literacia de sustentabilidade e geopolítica do board e nos fluxos de informação para a tomada de decisões empresariais. Além disso, determina uma redefinição dos deveres fiduciários a cargo dos administradores, obriga a uma atualização de políticas e a um alargamento da função de gestão de riscos.

  1. Portugal está a alinhar-se com os regulamentos europeus como a CSRD ou a Taxonomia Europeia. Consideram que o tecido empresarial e os profissionais de Direito estão preparados para este novo enquadramento legislativo? Que lacunas ainda subsistem?

(Paulo Câmara)

Tem havido uma evolução positiva, mas o grau de literacia ESG é ainda insuficiente por parte das empresas (salvo as empresas de muito elevada dimensão) e da comunidade jurídica. Uma causa do atraso deve-se ao atraso do processo legislativo entre nós. Portugal ainda não transpôs a CSRD, mas espera-se que o faça assim que o processo da sua revisão, no quadro do pacote Omnibus, esteja concluído.

  1. A quem se destina esta nova pós-graduação em Direito da Sustentabilidade Empresarial? Quais são, do vosso ponto de vista, os principais perfis profissionais que mais beneficiarão desta formação?

(Paulo Câmara)

Esta Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UCP sobre Direito da Sustentabilidade Empresarial dirige-se a todos os interessados em matérias de sustentabilidade empresarial e a profissionais que atuem em áreas empresariais, ligadas à sustentabilidade, ao sistema de controlo interno, à auditoria externa, à gestão de empresas, à gestão do risco, às cadeias de valor e à contratação. Apresenta um enfoque particular na comunidade jurídica, sendo nesta dimensão vocacionada para advogados, magistrados, juristas de autoridades reguladoras e consultores jurídicos.

  1. Qual é a relevância estratégica de formar juristas e gestores com competências especializadas em ESG e sustentabilidade empresarial? Está o mercado de trabalho a valorizar estas competências de forma concreta?

(Ana Filipa Morais Antunes)

 A intensidade do debate sobre a sustentabilidade empresarial evidencia a importância central de um conhecimento técnico, multi-nível, por quem atua no backstage das empresas e na antecâmara das decisões estratégicas, assim como por quem está no centro da decisão. Por este motivo, a contratação das empresas tem de se orientar num sentido verdadeiramente responsável, identificando a potencialidade de uma atuação prejudicial ou de parcerias comerciais causadoras de danos, bem como assumindo a obrigação de cessar e de compensar integralmente os lesados. Para tal, é fundamental adaptar os modelos de governação e reforçá-los, designadamente, através de estruturas especializadas, capazes de antecipar e de mitigar os riscos de externalidades prejudiciais.

  1. A sustentabilidade deixou de ser uma opção para passar a ser um imperativo regulatório e reputacional. Como é que as empresas portuguesas podem transformar esta obrigação numa verdadeira vantagem competitiva?

(Ana Filipa Morais Antunes)

A aprovação dos diferentes pacotes regulatórios europeus confirma a ideia de imperatividade das regras em matéria de sustentabilidade social e ambiental, que têm de ser respeitadas por todos os seus destinatários, em particular, pelas empresas.

A sustentabilidade não deve ser perspetivada como um objetivo ideal, desalinhado da concreta realidade empresarial, da sua dimensão e setor de atividade. Uma empresa que pretenda posicionar-se estrategicamente no mercado tem de definir e implementar medidas efetivas e desenhadas com base numa análise de risco, de prevenção, mitigação, cessação e compensação dos efeitos prejudiciais causados aos direitos humanos e ao ambiente.

Ana Filipa Morais Antunes, coordenadora da pós-graduação em Direito da Sustentabilidade Empresarial e docente da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

O quadro regulatório europeu favoreceu a emergência de formas de litigância estratégica, em que são visadas as empresas, assim como os seus gestores. A decisão das empresas está submetida a uma sindicância qualificada e é, por isso, fundamental antecipar os concretos riscos de externalidades prejudiciais. A sustentabilidade económico-financeira de uma empresa pressupõe, também, a sua sustentabilidade nos planos social e ambiental, a curto, médio e longo prazo, para o que se impõe privilegiar medidas de mitigação dos potenciais riscos implicados pela atividade empresarial (direta ou indireta). Numa palavra, a empresa que atue com equilíbrio e respeito pelas diferentes dimensões da sustentabilidade posicionar-se-á estrategicamente no mercado.

  1. Quais são os principais desafios que antecipam para os próximos anos no que toca à aplicação prática das normas europeias em matéria de sustentabilidade? E de que forma os profissionais de Direito podem ajudar a superá-los?

(Ana Filipa Morais Antunes)

A principal dificuldade resulta do desconhecimento da nova regulação europeia, em concreto, das implicações para as empresas.

O papel dos juristas é fundamental para clarificar o sentido das diferentes regras, explicitar a relação multi-nível existente e propor medidas e estratégias adequadas para conciliar a atividade lucrativa das empresas com o respeito pelos direitos humanos e o ambiente, em termos equilibrados e com base numa análise de risco.

  1. Esta pós-graduação arranca a 14 de outubro. O que distingue este programa face a outras formações existentes nesta área? Que abordagem pedagógica escolheram e com que objetivos concretos?

(Ana Filipa Morais Antunes)

O objetivo do Curso é assegurar uma formação jurídica transdisciplinar e integral, com sessões dinâmicas, lecionadas por Docentes com diferentes perfis e percursos. A diversidade de background e o modelo de ensino dialogado, assente na dialética problema-solução, são alguns dos traços identitários desta formação. Pretendemos formar juristas, gestores, e os demais protagonistas do “novo Direito da Sustentabilidade Empresarial”, assegurando-lhes um conhecimento técnico-jurídico especializado sobre os desafios colocados no presente, mas também antecipando os principais instrumentos e medidas estratégicas suscetíveis de serem implementadas em cada contexto relacional.

  1. Numa altura em que os desafios ESG se multiplicam, que mensagem gostariam de deixar a quem ainda vê a sustentabilidade como um tema lateral às decisões estratégicas das empresas?

(Ana Filipa Morais Antunes)

A sustentabilidade empresarial deve ser priorizada, a curto, médio e longo prazo, pelos diferentes atores, como as empresas, os reguladores, os auditores, os consultores, o Estado, a Academia.

A decisão empresarial complexificou-se e obriga a exercícios de ponderação e de concordância prática de múltiplos critérios e parâmetros. Adiar a renovação dos modelos de negócio, dos quadros contratuais e dos juízos decisórios pode estar na origem de casos de responsabilidade das empresas. As empresas que não estiverem alinhadas com o novo quadro regulatório podem ser visadas em novos contenciosos, com os consequentes custos empresariais.

 

 

 






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