Investigador da Nova de Lisboa desvenda mistério sobre dois répteis que viveram em Leiria há 150 milhões de anos

A mina da Guimarota, em Leiria, é considerada um dos locais do mundo mais ricos em fósseis de pequenos vertebrados do Jurássico Superior, um período da história da Terra que se estendeu entre 160 milhões e 145 milhões de anos atrás. Do conjunto de animais fossilizados encontrados nesse local, os répteis assumem especial destaque por serem muito abundantes.
Até 1961, antes da mina encerrar, a rocha foi explorada pelo seu carvão, uma característica que também lhe confere uma singularidade paleontológica, uma vez que permitiu a preservação dos restos de animais de tempos longínquos. Esse caráter único tem atraído, ao longo dos últimos 60 anos, vários cientistas de diversos países, que ali procuram desvendar os segredos do passado.
As expedições paleontológicas começaram logo no início dos anos de 1960, lideradas pelo Instituto de Paleontologia da Universidade Livre de Berlim (Alemanha), com uma segunda fase na década seguinte. Os esforços de exploração resultaram na descoberta de milhares de fósseis, mas, dada a quantidade de espécimes, que foram entregues ao cuidado do Museu Geológico de Lisboa, muito continua ainda por descobrir sobre essas criaturas.
Uma investigação liderada por Alexandre Guillaume, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCT), trouxe à luz detalhes até agora escondidos, em particular sobre dois tipos de répteis. Em conversa com a Green Savers, o investigador Alexandre Guillaume, de regresso a França depois de terminada a sua investigação e o seu doutoramento, conta-nos o que descobriu e como isso alterou o nosso conhecimento sobre a vida no Jurássico Superior em Portugal. As descobertas foram publicadas este mês na revista ‘Acta Palaeontologica Polonica’.
Esquadrinhar mais de 100 fósseis para descobrir “a agulha no palheiro”
O trabalho conduzido por Guillaume envolveu a reanálise de 150 dos muitos fósseis da Guimarota, desenterrados nas décadas de 1960 e 1970, que estão no Museu Geológico de Lisboa. Ele queria compará-los com os fósseis encontrados na região da Lourinhã, pois acreditava que teriam aproximadamente a mesma idade, e o estudo das semelhanças e diferenças entre os vestígios dos dois locais fazia parte da sua investigação de doutoramento.
O foco de Guillaume era os anfíbios, mas, tal como é apanágio do trabalho científico, o que viu trocou-lhe as voltas. “Ao analisar esses fósseis, eu procurava os anfíbios, mas encontrei uns fósseis estranhos que não me pareciam anfíbios de todo”, recorda.
E aí começou uma demanda científica inesperada, porque alguns ossos tinham sido categorizados como anfíbios pelos investigadores que os descobriram décadas atrás. Além disso, suspeitava que as classificações de alguns vestígios de répteis feitas nos anos 1970 não estavam de acordo com o conhecimento mais recente.
Mais especificamente, um conjunto de fósseis atribuídos ao mesmo tipo de réptil pareciam a Guillaume, na verdade, pertencerem a animais diferentes.
“Quando confrontei com a literatura e vi os fósseis com os meus olhos, decidi explorar mais aprofundadamente e foi assim que percebi que, de facto, temos dois tipos de répteis”, diz-nos Guillaume.
Datar os fósseis também não foi tarefa fácil, uma vez que os trabalhos de extração de carvão e metodologias menos cuidadosas de décadas passadas possivelmente misturaram camadas estratigráficas com idades diferentes. Ainda assim, o paleontólogo acredita que há indícios que permitem afirmar, com algum grau de certeza, que os fósseis desses dois tipos de répteis têm a mesma idade, ou seja, do Período Jurássico Superior, mais especificamente da Idade Kimmeridgiana, há 151-157 milhões de anos.
Afinal, são dois tipos diferentes de répteis
Sabendo que havia algo de estranho com a classificação anterior dos fósseis de répteis, categorizados como pertencendo ao mesmo género, o Cteniogenys, Guillaume comparou-os com registos de fósseis aparentemente semelhantes encontrados nos Estados Unidos da América e no Reino Unido.
A análise mostrou que os fósseis encontrados na mina da Guimarota nos anos 1970, e aos quais foi atribuído o mesmo género, são, de facto, dois tipos distintos de répteis, de dois géneros diferentes.

Foto: NOVA FCT
Na verdade, um dos animais pertence ao género Cteniogenys, mas o outro pertence ao género Marmoretta, fósseis do qual foram também encontrados no Reino Unido. Contudo, a espécie encontrada na mina portuguesa é diferente da que foi identificada nos locais britânicos, tendo sido batizada com o nome de Marmoretta drescherae.
Saber como eram estes dois animais é um problema, porque os vestígios recolhidos estão muito fragmentados e não é possível fazer uma reconstrução que permita perceber o seu aspeto e, a partir daí, tentar perceber os modos de vida que tinham.
Ainda assim, Guillaume conta-nos que estes dois seres, apesar de serem ambos répteis, “não tinham o meu aspeto”.
O fóssil atribuído ao género Cteniogenys faz parte de um grupo conhecido como Choristodera, “um grupo de répteis que parecem crocodilos”, explica, mas não o são porque há diferenças na estrutura dos crânios. No entanto, tinham “focinhos compridos”, como os crocodilos de hoje, eram semiaquáticos, vivendo em ambientes de água doce, e “provavelmente alimentavam-se de pequenos animais”, como artrópodes e pequenos vertebrados.
Guillaume diz que é interessante perceber que é possível que estes Cteniogenys e os antepassados dos crocodilos modernos tenham ocupado o mesmo nicho ecológico na região que é hoje Leiria. Ou seja, estes dois animais, que eram mais ou menos do mesmo tamanho, muito provavelmente competiam pelos mesmos recursos, incluindo presas e território.
Contudo, dada a quantidade de fósseis encontrados, o investigador acredita que os Cteniogenys eram em muito menor número do que os crocodilos nesses ambientes nos quais coexistiram.
Sendo os fósseis de Cteniogenys encontrados não só na Guimarota, mas também no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, “isso mostra que provavelmente houve algum tipo de ligação entre a Europa e a América do Norte”, diz Guillaume. Além disso, é possível que animais desse género tenham também existido no Norte de África.
Quanto ao Marmoretta drescherae, Guillaume admite que “não temos muita informação sobre o seu aspeto, porque, até agora, só temos o crânio do animal”, mas acredita que, o mais provável, é que se parecesse com um lagarto, “com um crânio e mandíbula muito estreitos”.
“Não temos a certeza se era um animal aquático ou semiaquático, ou se apenas vivia em redor dos lagos e charcos”, diz o investigador, acrescentando que há equipas noutros locais que estão a tentar descortinar esse pormenor da vida desse réptil ancestral.
Para saber o estilo de vida de um animal fossilizado, os paleontólogos, por norma, têm de analisar os sedimentos nos locais onde os fósseis foram encontrados, mas a primeira equipa que escavou esses vestígios na mina da Guimarota não prestou muita atenção a esse aspeto. Guillaume diz-nos que a mina está agora alagada, pelo que “não podem lá voltar para fazer esse estudo”.
Ainda assim, acredita-se que a zona da mina era, há cerca de 150 milhões de anos, “uma espécie de zona húmida, com muita água doce”, avança o paleontólogo, algo como um paul ou pantanal.

Foto: NOVA FCT
Não se sabe ao certo o que terá levado ao desaparecimento destes animais, mas o investigador não afasta totalmente a possibilidade de os Mamoretta terem sido muito pressionados pela competição causada pelos lagartos modernos.
“No fim do Jurássico, os lagartos modernos já tinham aparecido e tinham começado a diversificar-se, enquanto os mais primitivos, como os Marmoretta, estavam já a desaparecer”, explica Guillaume.
Mais interessante ainda é o facto de, antes da descoberta dos fósseis de Marmoretta na mina da Guimarota, pensar-se que essa linha de répteis tinha desaparecido muito antes, o que significa que “esse grupo provavelmente sobreviveu lá durante muito mais tempo do que esperado, antes de se extinguir completamente”. Dessa forma, é possível que o local que é hoje Leiria possa ter sido um dos últimos redutos dos Marmoretta a nível mundial.
Paleontologia: uma janela para o passado para compreender o presente
Alexandre Guillaume, como muitos paleontólogos das gerações mais recentes, foi inspirado por documentários e por filmes como o célebre “Parque Jurássico”, de Steven Spielberg.
“Através da Paleontologia, observamos o mundo, e a vida que nele viveu, como ele era em tempos distantes”, conta-nos o investigador. “Obviamente, quando estamos a estudar apenas um local específico e um tipo específico de fósseis, só olhamos para essa porção, mas quando começamos a ver o quadro geral e a evolução através dos anos, começamos realmente a compreender como o mundo no qual hoje vivemos se tornou o que é agora”.
Para ele, “com a tectónica de placas, percebemos como os continentes se moveram e porque estão onde hoje estão, e, a partir daí, podemos perceber porque é que encontramos alguns grupos específicos apenas em alguns lugares e não noutros, como todos se relacionam entre si, e como tentaram encontrar um local para sobreviverem e se diversificarem através dos anos”.
“Ao estudarmos Paleontologia e os fósseis, percebemos, mais ou menos, como tudo isso aconteceu”, salienta.
Guillaume confessa-nos que quando ingressou nessa área científica, os fósseis de pequenos animais não eram o que o mais atraía, “mas agora consigo perceber que há muito trabalho a fazer nessa área”.
“Não precisamos de encontrar um esqueleto completo de Tyrannosaurus para perceber como era a vida antes”, graceja Guillaume.