Paul do Taipal: Um pequeno oásis de aves que organizações dizem estar sob ameaça



O Paul do Taipal é uma zona húmida com perto de 233 hectares, no concelho de Montemor-o-Velho, que alberga uma grande diversidade de espécies de aves, especialmente aquáticas, e também de espécies de flora. Além disso, sendo uma zona húmida, desempenha um papel fundamental da regulação no ciclo da água e é uma importante proteção contra cheias, uma vez que serve como zona de retenção das águas das chuvas.

“É uma pequena zona húmida com uma importância ornitológica, nacional e internacional, muito grande”, disse à ‘Green Savers’ Domingos Leitão, Diretor-executivo da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), servindo como refúgio para “uma série de espécies de aves aquáticas, quer como local de reprodução quer como local de invernada”.

Algumas das espécies que se reproduzem no Paul do Taipal estão mesmo classificadas com estatuto de conservação preocupante ou as suas populações estão em declínio, como a garça-boieira (Bubulcus ibis), a garça-branca-pequena (Egretta garzetta), a íbis-preta (Plegadis falcinellus), o colhereiro (Platalea leucorodia), a garça-noturna (Nycticorax nycticorax) e a garça-vermelha (Ardea purpurea), entre outras.

Mas fora do período de reprodução, o paul tem também “uma importância muito grande para as espécies migradoras”, especialmente para pequenos pássaros. Os rouxinóis-dos-caniços, do género Acrocephalus, as fuinhas, do género Cisticola, e as andorinhas são algumas das espécies, invernantes, que durante as suas migrações do norte da Europa para regiões menos frias param no Paul do Taipal para recuperarem forças, descansarem e alimentarem-se, antes de seguirem voo para outras paragens.

Garça-branca-pequena (Egretta garzetta).
Foto: Wiki Commons

Os patos fazem também parte do grupo de espécies protegidas que fazem uso do Paul do Taipal como uma ‘estação de serviço’ durante as suas migrações de inverno. Nesse local, “temos populações importantes de, pelo menos, três espécies de patos”, contou-nos Domingos Leitão: a marrequinha (Anas crecca), o pato-colhereiro (Anas clypeata) e arrabio (Anas acuta).

“Nos últimos anos, têm invernado no [Paul do Taipal] milhares de arrabios”, adiantou, destacando que a importância das zonas húmidas e dos pauis em Portugal tem vindo a aumentar, uma vez que, comparando com outras áreas mais no interior da Península Ibérica, tendem a sofrer menos os impactos de períodos de seca, fazendo deles pequenos ‘oásis’ fundamentais para essas espécies, e para muitas outras.

“As zonas húmidas portuguesas assumiram uma importância ainda maior para estas aves, porque foram os seus últimos refúgios em situações de seca”, assinalou o especialista. Além disso, como algumas são espécies visadas pela caça, estas zonas são autênticos refúgios, sem os quais a estabilidade e até sobrevivência das suas populações podem ficar em risco.

Íbis-preta (Plegadis falcinellus).
Foto: Wiki Commons

Devido ao seu valor, foi designada como Zona de Proteção Especial (ZPE) em 1999, pelo Decreto-lei 384-B/99, de 23 de setembro. O objetivo era conservar todas as espécies de aves “de interesse comunitário”, “bem como os seus ovos, ninhos e habitats”, que constam da diretiva europeia 79/409/CEE, vulgarmente conhecida como ‘Diretiva Aves”.

Além disso, o diploma contempla também como missão das ZPE a conservação “das espécies de aves migratórias não referidas naquele anexo e cuja ocorrência no território nacional seja regular” e “a protecção, a gestão e o controlo” dessas mesmas espécies das espécies, identificadas no Anexo A-I ao Decreto-lei 140/99, de 24 de abril, que transpõe para a ordem jurídica interna diretiva europeia, “por forma a garantir a sua sobrevivência e a sua reprodução”.

O Paul do Taipal, parte da bacia hidrográfica do Rio Mondego, faz também parte, desde 2001, da Lista de Ramsar, da ‘Convenção de Zonas Húmidas de Importância Internacional especialmente como Habitats de Aves Aquáticas’, de 1971. Os locais incluídos nessa lista, tal como esse paul, são reconhecidos pela sua “importância internacional em termos de ecologia, botânica, zoologia, limnologia ou hidrologia”.

Ao proporem a integração de zonas húmidas na Lista de Ramsar, os Estados-parte da Convenção, entre eles Portugal, assumem “responsabilidades internacionais pela conservação, gestão e uso sensato dos grupos migratórios de aves aquáticas” que habitam nessas regiões.

Organizações dizem que Paul do Taipal está agora sob ameaça e que o ICNF não cumpriu a lei

No entanto, o Paul do Taipal, apesar de estar abrangido por todas estas proteções legais, quer a nível interno quer a nível internacional, e toda a diversidade de vida que acolhe podem estar em risco. Ou assim alegam a SPEA e a Milvoz, duas organizações não-governamentais, a primeira de âmbito nacional e a segunda de atuação local, que acusam o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), através da sua Delegação Regional do Centro, de ter falhado nas suas competências ao ter autorizado um projeto da Câmara Municipal (CM) de Montemor-o-Velho para a construção de passadiços e miradouros dentro da ZPE sem avaliar devidamente os impactos ambientais.

Trata-se do projeto ‘Birdwatching no Paul do Taipal’, que representa um investimento da autarquia superior a 180 mil euros, “sendo cofinanciado pelo Programa Operacional Regional do Centro, Portugal 2020 e União Europeia, através do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional”, como se pode ler no seu portal online.

A mesma fonte diz que a intervenção contempla “a reabilitação dos observatórios já existentes”, a construção de um novo e ainda a “definição de um percurso, composto uma parte em passadiço e outra por caminhos em terra batida”, que, segundo a autarquia, permitirá visitar todo o paul com “a menor intrusão naquele espaço”. Está previsto que a intervenção esteja concluída até ao final deste trimestre.

Marrequinha (Anas crecca).
Foto: Wiki Commons

No entanto, apesar dessas garantias a SPEA e a Milvoz consideram que o projeto foi permitido avançar “sem suficiente consideração pelo impacto dessa estrutura nas espécies de aves que esta área protegida deve salvaguardar”.

Domingos Leitão fez questão de deixar claro que a SPEA “não é contra a construção de passadiços, circuitos ou infraestruturas para as pessoas poderem conhecer, observar e aprender sobre a Natureza”.

“Antes pelo contrário!”, assegurou, explicando que “se as pessoas não conhecerem, também não conseguem valorizar nem proteger”.

No entanto, disse que o importante é que estes projetos “sejam bem feitos”, “não ponham em causa os valores naturais que queremos proteger” e que as infraestruturas criadas, de facto, “cumpram o seu propósito”.

Em 2021, a SPEA reuniu-se com técnicos da CM de Montemor-o-Velho, altura em que tomou conhecimento do projeto de observação de aves, o ‘Birdwatching no Paul do Taipal’, e que a organização nunca foi chamada a dar a sua opinião sobre o mesmo. “Não são obrigados a fazê-lo”, apontou, mas disse que “não chegámos a ter conhecimento do projeto numa altura em que pudéssemos comentá-lo ou sugerir alterações e melhorias”.

Nessa altura, já a construção estava em curso, tendo arrancado em finais desse mesmo ano, “precisamente durante o período de inverno” em que o Paul do Taipal está repleto de espécies invernantes. E os trabalhos, produzindo grandes ruídos, coincidiam com dias de caça, fazendo com que os animais afugentados do paul pudessem encontrar um fim menos positivo fora dele.

Na margem do sul do paul já existiam dois observatórios e um trilho em madeira que a eles dá acesso. O que agora está a ser feito é uma extensão desse caminho para norte, parte em madeira, parte em terra batida, e que contemplará um novo observatório e uma ligação a um outro “miradouro”, como disse Domingos Leitão, que já existia mas que não tinha ligação ao circuito.

“Nós ficámos um bocado chocados quando vimos isto”, disse-nos o responsável, referindo-se aos planos que lhes haviam sido enviados pela CM. Desde logo, o novo trilho em terra batida será um fator acrescido de perturbação sobre a vida selvagem, pois estende-se para norte “numa zona a que ninguém antes tinha acesso”, e que será bastante importante para a invernada do camão (Porphyrio porphyrio), que, de acordo com o ICNF, é uma espécie vulnerável a nível nacional.

Um passadiço que não era necessário e “uma ilegalidade grosseira”

Para Domingos Leitão, a extensão do passadiço quase até ao limite norte do Paul do Taipal, é uma instrução desnecessária numa área “tão sensível” e “muito sossegada” utilizada como refúgio pelas aves.

Ao aumentar a exposição da zona húmida e das espécies que aí residem, nidificam ou passam o inverno, ao ruído produzido pelos visitantes, corre-se o risco de afugentar as aves e de, no final de contas, inviabilizar o propósito de observação de aves que é o objetivo da intervenção.

“Além de prejudicar as aves, também não serve o propósito a que se destina”, avisou.

Garça-boieira (Bubulcus ibis).
Foto: Wiki Commons

Perante essa situação, a SPEA pediu à autarquia e ao ICNF todas as informações sobre o projeto e também os estudos que teriam sido feitos para avaliar os impactos ambientais do projeto. “E foi aí que a coisa começou a ficar complicada”, apontou o especialista.

Isto, porque “quando pedimos os estudos de viabilidade do projeto e os pareceres, os estudos não apareceram, só apareceram os pareceres”, afirmou. Embora reconheça que o ICNF autorizou o projeto da CM “com condições”, Domingos Leitão considera que não foram as suficientes.

“O ICNF preocupou-se, única e exclusivamente, com as espécies nidificantes”, apontou, e terá “omitido ou ignorado completamente” os impactos que a construção e o posterior funcionamento das novas estruturas terão sobre as espécies de aves invernantes, especialmente na região mais a norte, onde se espera “um impacto inaceitável numa área que é essencialmente de proteção da avifauna”.

Tratando-se de uma ZPE, o projeto, segundo o Artigo 10.º do DL 49/2005, de 24 de Fevereiro, deveria ter sido sujeito a uma análise de incidências ambientais, que tem como propósito avaliar as potenciais repercussões ambientais de “ações, planos ou projectos não directamente relacionados com a gestão” de uma ZPE e que sejam “susceptíveis de afectar essa zona de forma significativa” em termos dos objetivos de conservação definidos para essa área. Dentro dessa definição cabe o projeto da CM de Montemor-o-Velho.

No entanto, de acordo com declarações prestadas à ‘Green Savers’, o ICNF considerou que a intervenção da CM de Montemor-o-Velho não afetará “de forma significativa” a ZPE do Paul do Taipal, pelo que terá dispensado a análise das incidências ambientais.

ICNF diz que projeto “não é suscetível de afetar a ZPE Paul do Taipal de forma significativa”

O ICNF “considerou que, com as medidas de minimização dos efeitos negativos identificados previstas no projeto de execução do Projeto ‘Birdwatching no Paul do Taipal’, conjuntamente com as condicionantes estabelecidas no parecer emitido, o projeto não é suscetível de afetar a Zona de Proteção Especial (ZPE) Paul do Taipal de forma significativa”, informou-nos, salientando que do parecer que emitiu consta um conjunto de constrangimentos que visam minimizar os impactos do projeto sobre a biodiversidade existente no paul, sobretudo as aves.

Pato-colhereiro (Anas clypeata).
Foto: Wiki Commons

Entre elas, está a suspensão das obras durante o período de nidificação das aves residem no Paul do Taipal, e que ocorre, por norma, entre fevereiro e junho. Ademais, parte do percurso planeado pela CM que será constituído por um passadiço com altura de até 50 centímetros acima do solo, “é, na maior parte da sua extensão, ladeado, a poente, por áreas de caniçal com altura superior a 2,5m, constituindo uma ‘barreira visual’ para o interior do pau”, conta o ICNF, que adianta também que, nos troços onde essa barreira “não é suficiente”, será instalada uma “paliçada com caniço com altura de 1,80 metros”.

Essas medidas têm como objetivo evitar que a presença dos visitantes possa perturbar a vida salvagem que faz do paul a sua casa. Será também colocada sinalética a informar os visitantes sobre as regras de acesso e conduta ao longo de todo o trilho pedestre e as entradas serão monitorizadas “através da instalação de um sistema para contagem de acessos em tempo real, em ambas as entradas”, para permitir “a rápida intervenção no local para regularização de situações de incumprimento das regras de utilização do percurso pedestre”.

Apesar das garantias, Domingos Leitão declarou que “o ICNF não fez um bom trabalho ao permitir que o projeto avançasse com aquelas infraestruturas” e frisou que a lei obriga a que a decisão do ICNF tivesse sido antecedida por um estudo de incidências ambientais, que deveria, por sua vez, ter sido sujeito a consulta pública. “Aí talvez a SPEA e outras entidades tivessem tido oportunidade para darem os seus pareceres”, assinala.

Domingos Leitão disse que só depois de o ICNF receber esse estudo é que poderia ter emitido o seu parecer, denunciando que “o estudo não existe, não foi feito”, pelo que acredita estarmos perante “uma ilegalidade grosseira, que permitiu avançar com uma situação com graves prejuízos para a avifauna”, e que “o ICNF não tinha que fazer nenhum parecer, nem autorizar nenhuma obra sem este estudo”.

Organizações consideram queixa em Bruxelas e “Portugal terá de compensar e repor a situação inicial”

A SPEA e a Milvoz reuniram-se então com a CM de Montemor-o-Velho e com o ICNF para discutir a situação, mas não foi demonstrada disponibilidade para alterar o projeto e a autoridade de conservação “desvalorizou” os impactos sobre as populações de aves invernantes. Apesar de várias tentativas de contacto, não foi possível, até ao momento da publicação deste artigo, obter um comentário da CM sobre o assunto.

“O ICNF não quis reconhecer os erros e saímos de lá de mãos vazias”, recordou Domingos Leitão, acrescentando que “não tivemos outro recurso, a não ser recorrer aos tribunais”.

As organizações começaram por interpor uma providência cautelar para travar o avanço da obra até que estejam reunidas todas as informações que permitam realmente avaliar todos os seus impactos. Ao mesmo tempo, interpuseram também uma ação administrativa.

Contudo, a providência cautelar “ficou pelo caminho”, mas a ação administrativa continua o curso. “Se o tribunal nos vier a dar razão, como nós achamos que vai acontecer, toda a gente perde”, disse o especialista, porque entretanto o mal já terá sido feito.

“Gastou-se o dinheiro, fez-se o impacto e não era preciso”, destacou, apontando que, esgotadas as vias judiciais em Portugal, as organizações apresentarão queixa junto da União Europeia e “Portugal terá de compensar e repor a situação inicial”.

Resta agora esperar que a Justiça faça o seu trabalho, mas considerando a morosidade característica dos processos judiciais, é muito provável que a decisão, seja ela qual for, chegue demasiado tarde para evitar a degradação de uma zona húmida de grande importância ecológica e ambiental. Ainda mais numa altura em que se sabe que, nos últimos 300 anos, a Europa terá perdido 20% das suas húmidas devido às atividades humanas e que esses são ecossistemas indispensáveis para fazer face aos impactos cada vez mais intensos das alterações climáticas.





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