Tradição e ciência no renascer da Agricultura Regenerativa



Por Dayana Andrade e Felipe Pasini, Consultores da Fundação Mendes Gonçalves

No século I, o hispano-romano Columela observava algo intrigante: videiras “casadas” a árvores produziam mais e melhor do que as plantadas sozinhas. Não sabia explicar porquê, mas sabia que funcionava. Séculos depois, na Andaluzia medieval, Ibn al-ʿAwwām desenhava hortas que pareciam pequenas florestas: árvores de fruto, hortícolas e aromáticas cresciam juntas em mosaicos irrigados. Em Portugal, implementava-se o sistema de “vinha de enforcado”, guiando as videiras pelas árvores acima e intercalando, por baixo, culturas de verão e forragens de inverno. Enquanto isso, no Alentejo, o montado integrava, há séculos, sobreiros, pastagens e culturas. Estes agricultores não tinham microscópios nem espectrómetros, mas tinham algo poderoso: a paciência para observar e a sabedoria para criar sistemas que imitassem a natureza.

Nos dois últimos séculos, a promessa da modernização agrícola seduziu-nos para outro caminho: simplificar, especializar, mecanizar. O montado sobreviveu, mas empobrecido. Subcobertos menos diversos, pastoreio mais intenso, dificuldades de regeneração quando os sistemas não são bem geridos. Abandonámos a complexidade pela suposta eficiência. Trocámos a diversidade pela promessa de produtividade. E, durante décadas, parecia que tínhamos feito a escolha certa.

Hoje, a ciência de ponta está a validar aquilo que os nossos antepassados já intuíam. Meta-análises recentes mostram que os sistemas biodiversos, como agroflorestas, aumentam o carbono orgânico do solo, fortalecem a biodiversidade, melhoram a infiltração e reduzem a erosão. A análise “Syntropic farming systems for reconciling productivity, ecosystem functions, and restoration”, publicada no The Lancet Planetary Health, revela que os sistemas agroflorestais sucessionais podem apresentar ganhos consideráveis: aumentos produtivos até 200%, armazenamento de carbono superior em 13 dos 15 casos estudados e maior resiliência climática no geral.

A agricultura sintrópica — um tipo específico de agrofloresta que organiza plantas em estratos, como uma floresta “acelerada” pela mão humana — já não é uma curiosidade alternativa. É engenharia ecológica baseada em princípios científicos sólidos: estratificação para maximizar fotossíntese, sucessão para acelerar o ciclo dos nutrientes, poda para gerir fluxos de luz e água, raízes vivas todo o ano para alimentar a microbiologia do solo.

Aqui está a mudança fundamental: já não dependemos apenas da intuição e da tradição. Hoje dispomos de métricas, protocolos e indicadores, que nos permitem transformar “casos inspiradores” em sistemas replicáveis.

É precisamente esta transformação, da tradição para a prática monitorizada, que o Programa Regenerar da Fundação Mendes Gonçalves está a materializar através de “laboratórios vivos” de agroflorestas regenerativas. Mais do que demonstrações, estes espaços funcionam como centros de investigação aplicada, integrando ciência e prática em diferentes contextos — nas áreas produtivas, nas salas de aula e às mesas de refeição. Ao unir tradição e inovação, respondem a uma agenda global e local. Para ampliar esta transição, é essencial reforçar a formação académica e profissional no setor agrícola e ajustar as políticas públicas e instrumentos financeiros para apoiar práticas regenerativas.

A Lei de Restauração da Natureza, que entrou em vigor em 2024, obriga Portugal a restaurar ecossistemas sem abdicar da produção de alimentos. Parece um dilema impossível, mas talvez a resposta se encontre na própria História desta terra. Os antigos ibéricos já sabiam algo que a ciência atual confirma: produção e regeneração podem andar de mãos dadas.

É esse o nosso compromisso: reverter a acelerada degradação dos ecossistemas, alimentando as comunidades do presente, enquanto garantimos às futuras gerações um ambiente natural e equilibrado. As decisões que tomamos hoje compõem a História que os nossos descendentes irão contar. Sejamos bons antepassados do amanhã. Ainda temos essa escolha.






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