Novo aeroporto de Lisboa: Impactos na avifauna são menores em Vendas Novas, mas não há ‘impacto zero’
A Comissão Técnica Independente (CTI) apresentou, na semana passada, o relatório preliminar sobre a avaliação que realizou acerca das opções que estavam em cima da mesa para a localização do novo aeroporto de Lisboa.
No relatório preliminar, a CTI avança que a opção única de Vendas Novas é a que, do ponto de vista estritamente ambiental, é preferível, seguida do Campo de Tiro de Alcochete, dizendo que as opções duais “são piores que as únicas porque duplicam externalidades ambientais negativas”.
Além das considerações ambientais mais gerais, a análise mostrou uma forte ênfase na avaliação de potencias impactos das opções estratégicas sobre as aves, quer residentes, quer migradoras. Isso deve-se ao facto de, por exemplo, os polígonos que delimitam os eventuais novos aeroportos poderem afetar as chamadas Áreas Importantes para as Aves, ou IBA, que são zonas consideradas prioritárias para a conservação de espécies e populações de aves em perigo.
Segundo o relatório preliminar, foram identificadas seis IBA nas proximidades das opções estratégias estudadas: Estuário do Tejo, Estuário do Sado, Sítio da Cabrela, Salinas de Alverca e do Forte da Casa, Lagoa Pequena e Paul do Boquilobo.
Para avaliar o possível impacto do novo aeroporto nas IBA, foi usado o indicador ‘faixa de 3km’, ou seja, aquém de uma distância de três quilómetros entre a estrutura aeroportuária e uma IBA considera-se que os impactos nas aves serão maiores.
Foram também usados os indicadores ‘cones de altitude inferior a 1.000 pés’ e ‘cones de aproximação e saída’ para avaliar a possibilidade de colisões com aves. Por isso, os relatores afirmam que a consideração desses indicadores “é crucial para a prevenção de acidentes”.
Posto de outra forma, o objetivo desta análise era sobrepor às áreas IBA e aos corredores de movimentos da avifauna, que os usam para se deslocarem de um lado para o outro (em busca de alimento, por exemplo), aquela que se prevê que seja a área usada pela estrutura aeroportuária e pelos aviões em aproximação ou saída do aeroporto.
“A alteração dos movimentos da avifauna pode ser influenciada pelas alterações climáticas, mudanças na disponibilidade dos recursos alimentares, entre outras alterações. A construção de uma infraestrutura aeroportuária, consequentemente a crescente pressão humana, traz constrangimentos para a avifauna e para os seus potenciais corredores de movimentos”, pode ler-se no relatório preliminar.
No que toca à faixa de três quilómetros, na opção única Vendas Novas e na opção dual Aeroporto Humberto Delgado + Vendas Novas (AHD+VNO) a sobreposição será nula, conclui o relatório. Na opção Campo de Tiro de Alcochete (CTA) e na opção dual AHD+CTA a sobreposição, embora exista, será menor do que nas demais opções, exceto Vendas Novas.
Contudo, as localizações que envolvem o Montijo são as que apresentam maior sobreposição com IBA, seguidas das que integram a opção Santarém.
Quanto aos ‘cones de aproximação de saída’ e aos ‘cones de 1.000 pés’, o relatório indica que a maior sobreposição com corredores de movimentos de aves acontece em todas as localizações exceto nas opções Vendas Novas e AHD+VNO. A maior sobreposição ocorre na opção única Montijo HUB, seguida da opção Santarém e da opção dual AHD+Montijo.
Ainda assim, a proposta que gerou maior apoio da CTI foi a do AHD complementada por Alcochete, que, em linha como o relatório preliminar, não se sobrepõe às áreas classificadas, mas causará “afetação limitada dos corredores de movimentos da avifauna a 1000 pés”.
Pelo que se percebe, Vendas Novas seria a mais indicada para proteger a avifauna e os seus habitats, mas é também uma das mais caras, avaliada em cerca de 9,7 mil milhões de euros.
Especialistas e ONGs saúdam rejeição do Montijo
Contactado pela ‘Green Savers’, Domingos Leitão, presidente da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), afirma que “para a SPEA e outras ONGA [Organizações Não-Governamentais de Ambiente] envolvidas na contestação da opção Montijo, consideram muito positivo que a CTI tenha concluído que qualquer das opções com o Montijo são inviáveis”.
“É algo que temos defendido nos últimos 5 anos, e que a análise da CTI vem corroborar”, salienta, avisando que o relatório é ainda preliminar e que existe ainda muita informação para analisar antes de se poder emitir uma opinião mais fundamentada.
Por sua vez, José Alves, docente e biólogo da Universidade de Aveiro e que tem acompanhado de perto os desenvolvimentos sobre o novo aeroporto de Lisboa, recorda que esta é ainda uma “análise preliminar” e que “qualquer das opções” terá de ser sujeita a Avaliações de Impacte Ambiental. Contudo, recorda que o Montijo já tem uma Avaliação de Impacte Ambiental (AIA), de 2019, em que lhe foi concedido um parecer favorável mas “condicionado”.
Essa decisão foi fortemente contestada quer por organizações como a SPEA, quer pelo próprio José Alves. Os contestatários consideram que a avaliação não foi devidamente realizada, pois comporta diversos e significativos impactos negativos sobre a avifauna da região, designadamente o Estuário do Tejo, que não foram tidos em devida conta.
Assim, tanto José Alves como Domingos Leitão consideram que a opção Montijo é realmente a pior para a avifauna.
“No que diz respeito às aves aquáticas migradoras a pior opção seria sem dúvida o Montijo, que propõe voos a baixa altitude por cima da Zona de Proteção Especial e da Reserva Natural do Estuário do Tejo. Esses impactes não são mitigáveis”, salienta o docente da Universidade de Aveiro.
E o responsável da SPEA reforça que “do que conhecemos a opção Montijo é certamente a pior relativamente ao impacto sobre as aves e outros impactos”, mas reconhece que “sem conhecer a informação disponibilizada sobre as outras opções, não podemos fazer esse juízo”.
Impactos nas aves nunca serão zero
Embora a CTI, no seu relatório preliminar, estime que a opção de Vendas Novas não afetará a avifauna, José Alves acautela que “não há impacto zero”, e que “haverá certamente alguns impactes que devem ser identificados e considerados na AIA”.
Domingos Leitão ecoa esse alerta, dizendo que “não existem aeroportos com impacto zero”. Como tal, acrescenta, “a SPEA e outras ONGA também defendem que a solução aeroportuária não pode ser vista como a única solução para a ligação de Lisboa ao resto da Península Ibérica e à Europa. Tem que haver mais discussão e mais investimento no transporte ferroviário, com muito menos impacto na biodiversidade e no clima do que o transporte aéreo”.
Quanto ao enfoque dado às aves nesta avaliação preliminar, ambos os interlocutores veem isso como algo muito positivo. O responsável da SPEA explica que “as aves são fundamentais para o funcionamento dos ecossistemas e para a produção de uma série de serviços essenciais às pessoas, por isso a proteção das aves e da natureza está consagrada numa série de leis e compromissos que Portugal tem de cumprir”.
“Um aeroporto, por um lado, causa um impacto sobre as aves e os ecossistemas, e por outro, como as aves partilham o espaço aéreo com os aviões, a existência de aves em quantidade pode pôr em risco a segurança das aeronaves e das pessoas”, refere Domingos Leitão.
Como tal, o foco na avifauna “não só é positivo para a proteção das aves, como é positivo para a segurança da operação aeroportuária. Por isso, é fundamental e obrigatório, e seria uma irresponsabilidade não considerar devidamente a interação do aeroporto com as aves”.
Para José Alves, a importância de considerar as aves no estudo da nova localização de um novo aeroporto é importante “porque aviões e aves ocupam o mesmo espaço (bem como outros grupos de animais como morcegos e insetos embora a diferentes altitudes)”.
Além disso, aponta que “esse foco resulta também do trabalho que tem sido feito para alertar os decisores políticos sobre os compromissos que Portugal assumiu de preservação da biodiversidade e particularmente daquela que não depende apenas de um território”.
“Por exemplo, aves migratórias que invernam em Portugal mas que se reproduzem no norte da Europa, não dependem apenas dos impactes num local, e o investimento na sua conservação numa determinada área numa fase do seu ciclo anual pode ver os seus efeitos anulados se noutra área, da qual dependem noutra fase do seu ciclo anual, os efeitos negativos forem muito elevados”, elucida o biólogo da Universidade de Aveiro.
Decisão final será tomada pelo novo Governo
Com o Executivo de António Costa de saída, a decisão sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa caberá ao Governo que resultar das eleições do próximo dia 10 de março.
Independentemente de quem e de que partido vier a liderar o novo Governo, os especialistas consideram que os decisores deverão ouvir as recomendações da CTI, bem como as contribuições que forem dadas durante o período de consulta pública, aberto até ao dia 19 de janeiro.
“Em qualquer processo de Avaliação Ambiental Estratégica, se o relatório refletir um trabalho responsável, independente, abrangente e participado, os decisores, sejam de que filiação partidária forem, terão obrigatoriamente de seguir as recomendações dessa avaliação. Mas para além do relatório desta AAE, terão de pesar também as opções de ligação de Lisboa a Madrid e à Europa” e perceber que “o transporte aéreo não é a única opção, nem a mais sustentável a longo prazo, face aos desafios climáticos e económicos”, diz-nos Domingos Leitão.
“Num país e num território com 4 aeroportos internacionais e sem qualquer ligação ferroviária à Europa, temos falado demais em aeroportos e de menos em ferrovia. E isso, tem de mudar”, avisa o responsável da SPEA.
José Alves, da Universidade de Aveiro, afirma que “espero que os decisores políticos considerem o trabalho técnico realizado pela CTI, bem como as contribuições que irão ser feitas durante o período de consulta pública que agora decorre, particularmente aquelas que se façam chegar por peritos nas várias matérias”.
E comenta ainda que “a opção de não construção (que a meu ver deve constar em AIA) não deve ser afastada, particularmente quando entre Lisboa e Faro há já três aeroportos internacionais, e as metas para a descarbonização sugerem a redução de infraestruturas cinzentas”.