Play Up diz “não” ao próprio desperdício e faz do seu resíduo uma arte



A Play Up surgiu há 20 anos no seio de uma empresa têxtil familiar, a ETFOR, situada numa pequena vila do norte de Portugal. Surgiu da vontade de terem as próprias criações e como forma de dar mais autonomia à empresa. “A ETFOR tem 35 anos, a Play UP faz este ano 20, portanto, tinha 15 anos”, conta-nos, Bruno Correia, Mananing Partner da Play Up, sublinhando que “foi numa perspetiva de nós como indústria, podermos fazer algo mais, não estarmos só dependentes de produzir para terceiros e podermos, no fundo, acrescentar valor à empresa. Aqui também está relacionado com a entrada dos filhos na empresa. Os nossos pais criaram a empresa e depois, em momentos diferentes, fomos ingressando. Havia muito a mensagem que as empresas têxteis deviam criar as suas próprias marcas e foi um bocadinho por aí”.

Bruno é um dos quatro filhos dos fundadores da empresa que vê na matriarca a inspiração. “A minha mãe está cá e ainda é a inspiração de toda a gente”. Susana Correia, Diretora Criativa da Play Up e irmã mais nova de Bruno, interrompe e reforça com um sorriso: “ainda hoje de manhã tinha um fato de banho da produção, que assentava muito mal. Ela refez o molde todo, foi à confeção e pôs aquilo impecável!”

“A minha mãe”, continua Bruno, “teve um sonho, porque ela não queria trabalhar na agricultura, que era o que antigamente as pessoas faziam aqui, e ao mesmo tempo teve a parte do trabalho e a visão de conseguir evoluir, que é o mais difícil. Muitas vezes as pessoas ficam em frente a uma máquina a vida toda. Ela teve sempre essa visão”.

No meio dos farrapos

Lúcia Correia, de 72 anos, começou a trabalhar como costureira a fazer roupas para clientes particulares. “Geria porque, na altura, já era uma pessoa muito inovadora”, afiança-nos Bruno. “Ela ia à feira a Barcelos, comprava os tecidos muito baratos, fazia modelos muito bonitos e vendia mais caro. Era debaixo da nossa casa (ao lado da fábrica), que era a sala da costura. Digamos que nós nascemos lá no meio dos farrapos, como se costuma dizer. Ela tinha essa vertente criativa e ao mesmo tempo de saber fazer. Ela era capaz de trabalhar num dia 16 horas”, conta com orgulho.

 

Esse espírito trabalhador dos pais passou para os filhos e foi com naturalidade que se foram integrando todos no projeto. “Quando os meus pais criaram a empresa, eu e a Susana tínhamos de ficar em casa, eu tinha de arrumar a cozinha e tinha de ficar com ela porque eles tinham de ir trabalhar. Digamos que sempre fizemos parte desta realidade em casa. Aliás, as nossas férias grandes eram a trabalhar na empresa, eram no embalamento a fechar saquinhos, era a fazer caixas e digamos que sempre tivemos uma responsabilidade”, explica Bruno.

A nossa mãe ia à feira a Barcelos, comprava os tecidos muito baratos, fazia modelos muito bonitos e vendia mais caro. Era debaixo da nossa casa (ao lado da fábrica), que era a sala da costura. Digamos que nós nascemos lá no meio dos farrapos, como se costuma dizer. Ela tinha essa vertente criativa e ao mesmo tempo de saber fazer. Ela era capaz de trabalhar num dia 16 horas, Bruno Correia

O managing partner da Play Up chegou à empresa com 26 anos. Tirou a licenciatura em design gráfico e depois criaram a marca numa altura (2004) em que a Susana dizia que “a última coisa que queria era trabalhar aqui”, revela Bruno.

Seguiram-se dois anos de otimização do método de trabalho, com o objetivo

de antecipar a finalização das coleções e assim conseguirem entrar no mercado B2B. Em 2006, tiveram a primeira participação numa feira internacional de moda infantil, a FIMI, em Valencia.

O início da Play Up

No início, a Play Up foi criada “muito em coerência com as marcas que prevaleciam no mercado português e com uma identidade pouco definida”, explica Susana. Após alguns anos a contruir “o nosso posicionamento de mercado, a criar uma rede comercial e procedimentos de logística”, acrescenta a criativa, “iniciámos o nosso projeto de internacionalização de forma regular e mais consistente”.

Em 2012 marcaram presença na Pitti Immagine Bimbo, em Florença, e na Bubble, em Londres, seguindo-se a primeira participação na feira Playtime, em Paris, no ano de 2014. “A boa aceitação que tivemos nestes eventos fez-nos crer que era possível imprimir outros valores na marca e transparecer muito do que gostamos, somos e valorizamos. Este foi o momento em que questionámos o conceito da Play Up, refletimos sobre o nosso percurso e para onde queríamos ir, o que conduziu à criação de uma direção criativa”, sublinha Susana.

Mas como é que surge esta ideia da sustentabilidade? “Foi muito quando começámos a fazer a feira de Paris”, responde Susana. “Para além das marcas serem super-transparentes, os stands estarem completamente abertos, não haver a parte da exuberância de Itália e de serem marcas pequeninas, quase de vão de escada, mas que mostram ali uma especialidade que a pessoa faz, uma criatividade muito mais simples, desprendida…”

Com o lançamento da coleção de Inverno de 2017, iniciaram um processo de rebranding da marca e apresentaram uma nova imagem e um novo logótipo, inspirados na filosofia do “Back to Basics”. Nesta coleção, introduziram pela primeira vez, o uso fibras biológicas.

Um estilo de vida alinhado com as necessidades do planeta

Na coleção de Verão de 2018, “houve uma alteração considerável na nossa estética que se traduziu em peças mais simples e intemporais. Gradualmente, fomos tomando maior consciência das nossas opções e inspirados no tema “In Praise of Analog”, lançámos a coleção de Inverno de 2018 – uma coleção de rutura, com uma linguagem completamente diferente. Explorámos o regresso às nossas origens, à Natureza e ao ‘fazer com tempo’. Mais do que uma orientação estética, esta coleção refletiu a nossa vontade de criar um compromisso com um estilo de vida mais alinhado com as necessidades do nosso planeta”, sublinha Susana.

Em 2019 deram início à série “Embracing Slow Making” e às colaborações da marca com artistas portugueses emergentes que utilizam os recursos de modo sustentável. “O fascínio pela singularidade própria dos produtos artesanais, levou-nos a incorporar o universo dos fazedores no nosso trabalho, permitindo-nos ao mesmo tempo contribuir para a preservação dos nosso saber-fazer coletivo”. Para a diretora criativa, este “casamento feliz” traz a arte “para o nosso dia-a-dia, incorpora pessoas que nos inspiram e isso também passa a ser um bocadinho o mote da inspiração das nossas coleções. A nossa inspiração acaba por ser um bocadinho fora do comum das plataformas de tendência, de entender a nossa linhagem de pensamento de uma forma diferente”.

CAPÍTULO X: MÃE LÚCIA – Uma homenagem à mentora

A série teve 10 capítulos. Cada capítulo teve um artista que foram convidando com artes diferentes, desde a cerâmica à botânica, tecelagem, marcenaria. Ou seja, tiveram várias artes convidadas e quando chegaram ao décimo capítulo, já sabiam que o décimo teria de ser algo especial.

“E aí a inspiração foi a mentora do projeto – a nossa mãe. No fundo, foi olhar para as nossas raízes e para as nossas origens e fechar este ciclo de quem nos dá a vida e toda a criação da marca”, conta Susana, sublinhando que “a escolha da nossa mãe – Lúcia – como inspiração e tema desta celebração, faz-nos todo o sentido. Para além de “ser quem nos deu a vida, é a mentora deste projeto, detentora de um dom especial e uma força da natureza. É na analogia entre a nossa mãe e a mãe natureza que nos revemos. Tudo é um ciclo e nós fazemos parte dele”.

A escolha da nossa mãe – Lúcia – como inspiração e tema desta celebração, faz-nos todo o sentido. Para além de ser quem nos deu a vida, é a mentora deste projeto, detentora de um dom especial e uma força da natureza. É na analogia entre a nossa mãe e a mãe natureza que nos revemos. Tudo é um ciclo e nós fazemos parte dele, Susana Correia

Aqui exploram as suas raízes, a arte de costurar, a infância, as brincadeiras e muitas memórias que foram reavivando ao longo desta criação. “Ao fazer esta retrospetiva, ganhamos uma maior consciência sobre este bonito ciclo que é a vida, o que nos inspirou a replicá-lo na Play Up. Olhámos para o nosso desperdício como um valioso recurso e criámos uma coleção cápsula – Close the Loop – feita com fio obtido da reciclagem de matérias-primas excedentes, totalmente reciclado e reciclável. Pela primeira vez, apresentámos indicadores de medição de impacto e utilizámos novas práticas de design circular como:  design para desintegrar e monomaterial”, revela a diretora criativa que acredita que devem diminuir a utilização de produtos que exigem uma maior exploração da natureza e assim contribuir para uma mudança de consumo.

“Tal como os nossos pais, a natureza dá-nos a sensação de fazermos parte de algo para além de nós próprios. Um sistema maior que nos ajuda a dar sentido a tudo e que nos faz querer lutar pela sua preservação”, afiança.

Assim, com o capítulo X criaram uma nova série, o “Embracing Circularity”, para reforçar o compromisso da Play Up com os valores da economia circular, implementando ações concretas para tornar a marca mais sustentável, nomeadamente ao nível da gestão responsável dos resíduos da marca.” Não deixa de ter os artistas, mas é a nossa forma de abraçar a circularidade e, no fundo, isto deu origem a uma nova forma de expressão da marca que é convidar os artistas a incorporar o nosso resíduo nas suas criações. Ou seja, com os nossos saberes ancestrais conseguir introduzir o nosso resíduo e criar peças de arte”, explica Susana.

Para a primeira coleção desta nova série, onde criar arte com o próprio resíduo têxtil será uma nova forma de expressão da Play Up, a artista escolhida foi Vanessa Barragão. “É extremamente gratificante começar o primeiro capítulo desta série com a arte têxtil que nos diz muito e com uma pessoa que nos inspira tanto. A Vanessa foi a nossa artista convidada. Ela tem uma relação com a natureza fantástica, mora perto da praia, ou seja, tem uma ligação com os oceanos muito bonita”, conta Susana.

Para a Diretora Criativa da Play Up, “todo o seu trabalho tenta representar os ecossistemas dos corais ameaçados pelas alterações climáticas e tem aqui um papel em alertar para os efeitos nefastos que as alterações climáticas estão a ter nesses ecossistemas”. Aqui, continua, “foi um bocadinho a inspiração neste tema dos oceanos e em todo o trabalho da Vanessa que criou duas peças que acompanham as nossas coleções. Uma tapeçaria feita por ela com o nosso resíduo desta coleção, com os excedentes da produção desta coleção, usou o nosso fio do Close the loop que já tínhamos criado na coleção anterior e ainda incorporou algumas peças danificadas neste pós-consumo que recebemos na Take back”.

Uma marca alinhada com os princípios da sustentabilidade

A indústria têxtil é uma das mais poluentes do planeta e com a emergência de uma transformação completa do enquadramento para a produção e consumo de moda na Europa, a Play Up destaca-se nos Setores do Têxtil e do Vestuário português. Joana Campos Silva, Consultora de Comunicação e Moda Circular, tem como missão ativar mudanças positivas por meio da comunicação, criando marcas mais humanas e responsáveis e, ao longo dos últimos anos, colaborou com a PlayUp de forma “intensa” para melhorar o compromisso e a perceção da marca junto do consumidor final.

A ideia central é ‘CRIAR VIDA’ e, por isso, “demos à 10ª coleção o nome ‘Mãe’, ‘Mãe Lúcia’ (a fundadora do projeto), mas também a ‘Mãe natureza’. A ideia de dar vida contaminou todas as ações, produtos e eventos, e fizemos evoluir o slogan da marca de ‘Embracing Slow Making’ para ‘Embracing circularity’”, Joana Campos Siva

“A marca na sua natureza já estava alinhada com os princípios da sustentabilidade, como demonstra o seu histórico, no entanto o desejo era que a 10ª coleção mais do que sustentável, fosse circular”, conta à Green Savers, sublinhando que “a ideia central é ‘CRIAR VIDA’” e que, por isso, “demos à 10ª coleção o nome ‘Mãe’, ‘Mãe Lúcia’ (a fundadora do projeto), mas também a ‘Mãe natureza’. A ideia de dar vida contaminou todas as ações, produtos e eventos, e fizemos evoluir o slogan da marca de ‘Embracing Slow Making’ para ‘Embracing circularity’”.

Sobre os novos processos de gestão e produção e iniciativas a visar a sustentabilidade desta marca, Joana explica que, “para além de incorporarmos estratégias de design circular em toda a coleção, criámos uma matéria-prima resultante do resíduo de fábrica, adotámos o sistema de Take Back e criámos uma loja de segunda mão (REcircle)”.

Estratégias de design circular e matéria-prima reciclada

A consultora sublinha que, ao longo dos últimos anos a Play Up, tem vindo adotar estratégias de Design Circular, mas com a coleção cápsula “CLOSE THE LOOP”, integrada na coleção MÃE, acentuaram os princípios do design circular em 3 critérios (1- Desenhado para a reciclabilidade de materiais 2 – Desenhado com materiais responsáveis 3 – Desenhado para a longevidade).

Joana destaca ainda a matéria-prima reciclada, uma vez que criaram a (RE)PLAY, uma fibra com certificação GRS, que foi obtida a partir de resíduos da fábrica – o que permitiu “reduzir a necessidade de produção de algodão virgem, economizando água, energia e recursos naturais” – e o benefício do Take Back, que ajuda a combater o desperdício têxtil em 3 iniciativas. “Permite reparar as peças em fábrica, ajuda a circular roupas boas, pois são passadas a novas famílias através da revenda e garantia de descarte com segurança: As roupas que não podemos reutilizar serão recicladas”, explica.

Mas quais os Ciclos da Sustentabilidade e de que forma é que a Play up os respeita? Joana conta que, nesta viragem, a Play Up “está comprometida em regenerar a mãe natureza através dos produtos que cria”. Segundo a consultora, na marca, “a economia circular incorpora 3 ciclos: 1ª mão – Dar vida a produtos bons e positivos que nos protegem, através do eco-design; 2º mão – Dar vida a roupas antigas, através do take back e revenda; 3º mão – Dar vida ao resíduo, tornando-o num nutriente, através da reciclagem”.

De uma forma geral, a consultora considera que a indústria portuguesa “tem no seu ADN fornecer o mercado internacional, garantindo ao mercado externo segurança a vários níveis: a segurança social e a segurança ambiental” e que os sectores do Têxtil e do Vestuário “têm incorporado mecanismos para reaproveitar a água, usar menos químicos e ainda investido milhões de euros em energias renováveis”.

Relatório de Sustentabilidade do CITEVE

Uma evolução que, acrescenta Joana, “tem exigido um investimento contínuo em certificações internacionais”. Segundo o relatório de Sustentabilidade do CITEVE, num total de 1826 empresas, as certificações do OEKO-TEX100, GOTS (Global Organic Textile standard), OCS (Organic Content Standard), GRS (Global Recycled Standard) e RCS Recycled Claim Standard, são as certificações mais usadas.

A consultora viu com “muito bons olhos” a iniciativa do CITEVE em criar o primeiro relatório sustentável, uma vez que “precisamos de dados e de uma fotografia real do sector”. No entanto, num universo de quase 12 mil empresas de Têxtil e Vestuário, ter o relato de 77 empresas “é pouco, mas já é um começo”. Segundo a responsável, o relatório identifica os tópicos materiais, “permitindo às entidades mais pequenas recorrerem de um relatório credível para se guiarem”. A identificação dos tópicos / temas materiais “permite que as empresas concentrem os seus esforços e recursos financeiros nas áreas mais críticas à sua atividade”.

A indústria da moda será uma das mais regulamentadas do futuro, é importante que as empresas integrem estes novos modelos económicos, se quiserem sobreviver no futuro próximo, Joana Campos Siva

Para Joana, o relatório “confirmou algumas boas práticas”, como é o caso da água e acentuou alguns problemas, como é o caso da digitalização, o Eco-design e a Eco-engenharia ainda com pouca representatividade. Por outro lado, lamenta, o Eco-Design “é uma medida difícil de implementar, se a indústria for vista como mera fornecedora e não parceira estratégica”.

Novos modelos para sobreviver no futuro

A consultora acredita que as etapas da cadeia de valor linear “funcionam bem em Portugal e acompanham as exigências internacionais mais sustentáveis”. No entanto, acrescenta, “o maior impacto das operações acontece na aquisição de matérias-primas virgens (muitas delas vindas da Índia ou da China), e essa é a área onde deveríamos investir mais. “Acredito que o mercado pode crescer no desenvolvimento de matérias-primas locais, com menor pegada”, afirma”, afirma.

Por outro lado, diz ainda Joana, nas novas etapas da cadeia de valor, “para criar circularidade têxtil em circuito fechado, ainda são um ponto crítico e que exige reflexão. Em particular a triagem e as limitações da reciclagem mecânica”. E para evoluir na circularidade tal como é exigido pela União Europeia, “necessitamos de escalar outros processos, como é o caso da reciclagem química”, explica.

Joana Campos Silva considera a bioeconomia “fundamental” para a sustentabilidade dos têxteis, “uma vez que o seu modelo económico assenta em substituir a utilização de recursos fósseis por recursos renováveis de base biológica”, mas, para além do Be@t – o projeto de bioeconomia da têxtil que assenta em 4 pilares: biomateriais, circularidade, sustentabilidade e sociedade – “ainda existem outros projetos dedicados à descarbonização, água, digitalização, entre outros”.

E deixa um aviso: “a indústria da moda será uma das mais regulamentadas do futuro” e “é importante que as empresas integrem estes novos modelos económicos, se quiserem sobreviver no futuro próximo”.

*Artigo originalmente publicado na revista impressa de março





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