Da Antártida a Portugal: Investigação MARE alerta para contaminação e resistência microbiana

Uma investigação liderada Bernardo Duarte, investigador do MARE/ARNET da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) revelou descobertas inquietantes sobre o alcance do impacto da atividade humana, mesmo em ecossistemas mais remotos e aparentemente prístinos, como a Antártida, foi divulgado em comunicado.
Segundo a mesma fonte, uma série de três estudos recentes sublinha a presença de contaminantes emergentes, a proliferação da resistência microbiana e os efeitos sinérgicos das pressões antropogénicas e naturais, alertando para a urgência de ações globais para proteger estes habitats vulneráveis e a saúde planetária.
Publicados entre 2021 e 2024, os estudos liderados pelo investigador do MARE/ARNET examinaram territórios tão diferente como a Antártida e Portugal. Entre os principais destaques, e para cada um, encontramos:
Contaminantes emergentes atingem a Antártida
Este estudo pioneiro detetou a presença de uma variedade de contaminantes, incluindo biocidas, poluentes orgânicos persistentes (POPs) e produtos farmacêuticos, em células de fitoplâncton recolhidas na Ilha Deception, na Antártida.
Provavelmente introduzidos pela atividade turística e pelas bases de investigação locais, estes poluentes representam uma ameaça direta para a base da cadeia alimentar da Antártica. Segundo o Investigador Bernardo Duarte, “A presença desses contaminantes numa área tão remota é um sinal claro de que precisamos rever urgentemente as diretrizes de proteção ambiental para a Antártida.”
Nos últimos anos, a crescente presença de turistas e investigadores no território Antártico tem sido associada a um aumento da pressão humana sobre os ecossistemas locais. Este impacto manifesta-se, entre outros aspetos, na introdução de uma variedade de contaminantes emergentes, tais como biocidas, Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs) e ainda Produtos Farmacêuticos e de Cuidado Pessoal (PPCPs).
Apesar da importância destes ecossistemas, existia pouca informação disponível sobre a presença destes contaminantes nos diferentes níveis da cadeia alimentar, especialmente na comunidade fitoplanctónica, que constitui a base da teia trófica marinha.
Recorrendo a uma técnica avançada de análise (espetrometria de massa de alta resolução), foi realizado um rastreio abrangente do conteúdo molecular do fitoplâncton recolhido em dois locais na Ilha Deception. Este estudo detetou a presença de setenta compostos contaminantes distintos nas amostras de fitoplâncton.
Entre os contaminantes identificados, incluem-se hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, dez tipos de biocidas (abrangendo acaricidas, fungicidas, herbicidas, inseticidas e nematicidas), onze POPs (como retardadores de chama, componentes de tintas, PCBs, ftalatos e plásticos), cinco PCPs (presentes em cosméticos, detergentes e suplementos alimentares), quarenta compostos farmacêuticos e três drogas ilícitas (segundo os standards europeus).
Os compostos farmacêuticos representaram, de longe, o grupo mais numeroso de contaminantes emergentes encontrados nas células de fitoplâncton, incluindo medicamentos de diversas classes terapêuticas (anticonvulsivantes, anti-hipertensivos, beta-bloqueadores, antibióticos, analgésicos e anti-inflamatórios).
A identificação destes compostos potencialmente tóxicos na base da cadeia alimentar marinha na Antártida levanta sérias preocupações quanto ao seu potencial impacto na estrutura e na saúde de todo o ecossistema.
Face a estas descobertas, a investigação sugere que as diretrizes ambientais estabelecidas pelo Tratado Antártico e o seu Protocolo de Proteção Ambiental sejam objeto de revisão, com vista a prevenir a dispersão destes e de outros PPCPs num ambiente tão singular e vulnerável.
Resistência Microbiana Generalizada nas Águas Costeiras de Portugal
Num contexto mais próximo, a equipa investigou as águas costeiras portuguesas, encontrando uma prevalência significativa de genes de resistência a antibióticos e metais. O estudo estabeleceu uma clara correlação entre a deteção destes genes e a intensidade da pressão humana nas áreas circundantes, destacando o potencial destes genes como biomarcadores de impacto ambiental e a necessidade de monitorização contínua. “A pressão humana está a levar ao aumento de bactérias multirresistentes, o que representa um risco significativo para a saúde planetária”, adverte Bernardo Duarte.
As zonas costeiras de Portugal continental e dos arquipélagos da Madeira e dos Açores são muito diversas e estão sujeitas a diferentes níveis de influência humana. Estas condições moldam as comunidades de microrganismos que habitam estes locais, levando-os a desenvolver capacidades de resistência.
Um estudo realizado nas águas da costa atlântica de Portugal confirmou o domínio das Bactérias sobre as Arqueias, com uma grande quantidade de grupos como Proteobacteria, Cyanobacteria, Bacteroidetes e Actinobacteria. Alguns destes grupos, como as bactérias do género Vibrio, mostraram estar associados de forma significativa à poluição causada pelo Homem.
A pressão humana, juntamente com as diferenças na variedade de espécies nos diferentes locais, afeta a presença e a quantidade de genes que conferem resistência a metais e antibióticos nas bactérias (o que chamamos de resistoma, ou seja, o conjunto de genes relacionados com resistência microbiana). Funções biológicas importantes, como a resistência a antibióticos e a resposta a situações de stress, foram encontradas frequentemente e associadas a um gradiente de pressão antropogénica.
Um resultado chave deste estudo é que os fatores ambientais, como a poluição a proximidade de zonas de elevada densidade populacional, parecem ter uma relação mais forte com a quantidade de genes de resistência encontrados do que com os tipos específicos de microrganismos presentes, indicando que a presença deste resistoma é independente da composição específica da comunidade microbiana.
Em conclusão, a análise do resistoma microbiano surge como uma ferramenta muito útil para compreender de forma mais completa a perturbação que o Homem causa no ambiente e como essa perturbação pode impactar o ecossistema e a nossa saúde, numa perspetiva de saúde planetária.
Vulcanismo e Atividade Humana Potenciam Resistência Microbiana na Antártida
Voltando à Antártida, o mais recente estudo da equipa de Bernardo Duarte focou-se na Ilha Deception, uma área com vulcanismo ativo e presença humana. A investigação revelou que as comunidades microbianas marinhas são afetadas pela interação complexa entre as emissões vulcânicas naturais e os impactos da atividade humana.
Esta combinação única de pressões tem vindo a alterar a diversidade e as funções microbianas, e a criar um ambiente favorável ao surgimento e à proliferação de genes de resistência microbiana. Bernardo Duarte salienta que “Os impactos combinados do vulcanismo e da atividade humana estão a criar um ambiente único que favorece o surgimento de bactérias multirresistentes.”
O aumento recente do turismo na Antártida tem impulsionado a investigação sobre os seus impactos antropogénicos, beneficiada pelos avanços nas tecnologias ÓMICAS aplicadas a comunidades microbianas polares.
Este estudo visou avaliar o impacto da atividade humana nas comunidades marinhas de procariotas (bactérias e arqueias) e vírus da Ilha Deception, procurando identificar potenciais indicadores (taxonómicos, funcionais e de resistoma) das pressões antropogénicas e naturais/vulcânicas.
Os filos dominantes incluíram Proteobacteria, Bacteroidetes e Actinobacteria, com variações na sua abundância associadas à atividade vulcânica e à pressão humana. A presença de Euryarchaeota em regiões vulcânicas sublinha a sua adaptação a condições extremas e resistência a metais tóxicos como o mercúrio, emitido naturalmente por estes sistemas vulcânicos submarinos.
As análises funcionais revelaram um enriquecimento de funções ligadas ao metabolismo de metais, degradação de hidrocarbonetos e metabolismo de azoto. As fontes hidrotermais submarinas foram um fator importante na diversidade funcional. A deteção de funções relacionadas com infeções nosocomiais e gastroenterites evidencia o impacto das atividades humanas nas características funcionais microbianas.
Quanto aos genes de resistência a antibióticos (ARGs), observaram-se padrões complexos influenciados por ambas as pressões. A abundância de ARGs correlacionou-se com o grupo Actinobacteria e foi acentuada pela descarga de águas residuais provenientes de ação humana. Contudo, a Baía Fumarole (com vulcanismo submarino ativo) apresentou também prevalência de certos ARGs não relacionados com a atividade humana mas sim resultantes da pressão seletiva induzida pelo vulcanismo ativo nesta zona.
A resposta destes indicadores (taxonómicos, funcionais e de resistoma) a diferentes níveis de pressão valida-os como ferramentas valiosas para avaliar e, subsequentemente, mitigar os impactos antropogénicos nas águas marinhas da Ilha Deception.
Uma causa comum, consequências globais
A interligação destes estudos pinta um quadro que merece atenção redobrada, mas importante, uma vez que mostra que quer em ecossistemas remotos e aparentemente intocados como a Antártida, quer em áreas costeiras densamente povoadas como Portugal, a atividade humana atua como um motor primário para a introdução de contaminantes, seleção e disseminação de resistência microbiana.
Os poluentes provenientes de bases de investigação e turismo na Antártida, e a pressão geral das atividades humanas em Portugal, estão a impulsionar a evolução de bactérias resistentes a tratamentos, um problema que afeta não só os nossos ecossistemas mas também a saúde pública global.
O estudo mais recente da Antártida destaca ainda como fatores naturais podem interagir com as pressões humanas para criar zonas de especial propensão para o desenvolvimento de resistência.
Estas descobertas sublinham a urgência de intensificar os esforços globais para proteger ecossistemas vulneráveis e mitigar os impactos da atividade humana. A equipa do MARE/ARNET apela a políticas ambientais mais rigorosas, uma gestão mais sustentável da atividade humana em áreas sensíveis e uma monitorização contínua e abrangente dos contaminantes e da resistência microbiana em todo o planeta.