Casal recolhe lixo nas praias e mostra que há um mar de possibilidades para transformá-lo em arte

Teresa Azevedo e Bruno Costa são os rostos do Mar de Experiências, um projeto com origem em Vila Chã, uma freguesia de forte tradição piscatória em Vila do Conde. Unindo expressão artística a práticas ecológicas, o casal recolhe lixo das praias e transforma-o em impressionantes instalações: tartarugas, lobos, um astronauta e até rostos icónicos como Jacques Cousteau ou o pescador local Tio Rão.
A ideia do projeto surgiu de forma muito espontânea, em 2012, quando começaram a colaborar como voluntários numa Casa-Museu da sua freguesia, Vila Chã, em Vila do Conde. Teresa, socióloga de formação, e Bruno, uniram a paixão pela cultura local e pela criatividade para dinamizar atividades culturais, desde tertúlias e exposições a documentários. “Foi nesse contexto que surgiu a nossa primeira história infantojuvenil, ‘Vila Chã, Um Mar de Experiências’, escrita pela Teresa e ilustrada por mim. A partir daí, desenvolvemos oficinas, jogos, percursos culturais e projetos educativos, sempre com o mar e a identidade costeira como fio condutor”, conta Bruno Costa à Green Savers.
Com o tempo, adianta, a crescente preocupação com a poluição marinha “levou-nos a incorporar a recolha de lixo das praias e transformar esses resíduos em arte, como nas exposições ‘Planeta Mais Azul’ ou ‘Cousteau’”.

Processo criativo começa na praia
Mas como é que tudo acontece? Teresa Azevedo explica que o “processo criativo começa mesmo na praia”. É lá que encontram os materiais “que nos inspiram”, diz. Durante o inverno, o mar devolve muitos objetos – cabos, plásticos, redes –, que recolhem com o maior cuidado. “Há um lado físico exigente, mas também uma ligação emocional: sentimos que estamos a cuidar da nossa casa comum”, conta.
Depois, continua, “no nosso atelier, observamos cada objeto, percebemos a sua história e transformamo-lo em peças com valor artístico e pedagógico. Cada criação conta uma história sobre o mar, sobre os impactos da poluição e sobre o que podemos fazer para mudar”.
Consciência ambiental tornou-se mais urgente em 2018
Teresa sublinha que sempre tiveram sensibilidade para causas ambientais, mas confessa que foi em 2018 que essa consciência se tornou mais urgente. “Deparámo-nos com a quantidade de lixo acumulado nas praias e dunas da nossa zona, o que nos afetou bastante. A partir daí, o Bruno começou a recolher objetos deixados pelo mar e a dar-lhes uma nova vida através da arte. Foi assim que nasceram exposições como ‘Praia – Outras Perspetivas’, que retrata a diversidade de resíduos encontrados, e ‘Biodiversidade que nos conta história’, onde usamos elementos naturais para ilustrar a evolução da atividade piscatória em Vila Chã”, explica.
Foi então que perceberam que o Mar de Experiências “podia ser muito mais do que um projeto cultural – podia tornar-se uma ferramenta de sensibilização ambiental com verdadeiro impacto”, conclui Teresa.
Atualmente, o Mar de Experiências é embaixador oficial da PRIO Softboard Heroes Art Room, uma galeria de arte sustentável que será inaugurada no dia 3 de junho, na Noah Surf House, em Santa Cruz, iniciativa organizada por Tiago Pires, ex-surfista profissional. Esta “Art Room” procura dar uma nova vida a resíduos e transformá-los em obras com impacto ambiental e social.
Bruno Costa explica que se juntaram a este projeto porque partilham os mesmos valores. A “PRIO Softboard Heroes Art Room” é uma galeria que junta arte e sustentabilidade de forma criativa e promove “exatamente aquilo em que acreditamos: dar visibilidade à problemática do lixo nas praias de forma criativa e acessível a todos”, sublinha.
O projeto do casal tem tido um impacto positivo, “não só porque ajuda a remover resíduos que afetam os ecossistemas marinhos, mas também porque sensibiliza diferentes públicos, desde crianças a adultos, para a importância da preservação do oceano”, aponta Bruno. Por isso, quando o público olha para o lixo – transformado agora em arte –, e percebe que cada ação tem uma consequência, “sentimos que estamos a cumprir o nosso propósito”, salienta.
Noah Surf House “é um exemplo de boas práticas ambientais”
O casal acredita que a Noah Surf House “é um exemplo de boas práticas ambientais, desde a arquitetura sustentável, até à gestão eficiente de recursos como o uso de painéis solares, sistemas de reaproveitamento de águas pluviais e iluminação LED”. Por isso, “é o local perfeito para acolher uma iniciativa que pretende sensibilizar através da beleza e da reflexão”.

Além disso, Tiago Pires é uma pessoa que os inspira porque tem usado a sua ligação ao surf para promover causas sociais e ambientais. “O facto de termos sido convidados para integrar esta galeria como embaixadores dá-nos ainda mais motivação para continuar. Acreditamos que quando a arte, a natureza e a solidariedade se encontram, nascem projetos destes, com verdadeiro impacto”, conclui.
Tiago Pires conta à Green Savers que sempre viu o surf como muito mais do que um desporto: “é um estilo de vida que transmite valores como a sustentabilidade, o respeito pela natureza e o espírito de comunidade. Por isso mesmo, quis criar algo que fosse além de uma simples competição, como o PRIO Softboard Heroes”, revela.
Desde que terminou a carreira como surfista profissional, procurou uma forma de continuar a contribuir para a comunidade, através de um projeto que reunisse desporto, cultura, amigos, família e causas solidárias. “Quis promover um encontro descontraído, onde surfistas de todas as idades e níveis e figuras públicas pudessem divertir-se juntos e, ao mesmo tempo, apoiar associações portuguesas. Para mim, este evento é um exemplo claro de como se pode aliar o prazer de estar dentro de água a causas que realmente fazem a diferença”, afirma.
O Surf como alerta para a poluição
A consciencialização ambiental e social ganhou-a quando começou a surfar. “Foi através do surf que comecei a olhar para o mar com outros olhos”, conta. “Quando se está dentro de água todos os dias, percebe-se o impacto da poluição. Plásticos à deriva, redes perdidas, lixo nas praias. Tudo isto afeta não só a beleza do lugar, mas também a própria experiência de surfar”, sublinha.
A certa altura, acrescenta, “tornou-se impossível ignorar. E percebi que podia usar o surf como meio de sensibilização. O PRIO Softboard Heroes surgiu dessa consciência: aliar a minha paixão pelo surf a um propósito maior. A ideia era criar um evento que celebrasse o surf, juntando profissionais e amadores, mas que ao mesmo tempo envolvesse a comunidade em torno de temas importantes. E temos vindo a fazê-lo há cinco edições consecutivas”.
E o balanço que faz da evolução, em termos ambientais e sociais, do PRIO Softboard Heroes desde a sua criação é muito positivo: “Tem sido extraordinário. Aquilo que começou como uma simples ideia de juntar o surf à solidariedade evoluiu para um evento de referência no calendário nacional”, afiança.
Ao longo dos últimos cinco anos, já conseguiram doar mais de 55.000 euros a instituições portuguesas sem fins lucrativos e apoiar causas muito diversas. Este ano, renovaram esse compromisso, apoiando mais quatro associações: a SURFaddict – Associação Portuguesa de Surf Adaptado, a Fundação Infantil Ronald McDonald, a Make-A-Wish Portugal e o Centro Social de Silveira.
Em termos ambientais, para além de iniciativas como o Art Room, desde o início que cada edição “é pensada com atenção ao detalhe: desde a reutilização de materiais na construção dos espaços ao envolvimento da comunidade local. Mas o mais gratificante é ver como o evento inspira outras pessoas a agir – seja pela sustentabilidade, seja pela solidariedade”, afirma.
Como é que nasce o “Art Room”?
O “PRIO Softboard Heroes Art Room” nasce da “convicção de que a arte tem um papel transformador e é capaz de nos tocar, de nos fazer refletir e, sobretudo, de nos levar a agir. Quando nos deparamos com a urgência dos desafios ambientais, sentimos a necessidade de criar uma iniciativa que fosse, ao mesmo tempo, um alerta e um estímulo à adoção de comportamentos mais sustentáveis”, explica Tiago.
No âmbito de um concurso nacional, desafiaram artistas a criarem obras de arte utilizando materiais recicláveis ou resíduos. As criações resultantes estarão em exposição de 3 de junho a 31 de agosto, na galeria na Noah Surf House, em Santa Cruz. A par destas obras, a exposição contará também com peças de artistas convidados como Gonçalo Mar, Sérgio Pipoca, Xico Gaivota, Skeleton Sea, Fiumani e com o embaixador oficial, “Mar de Experiências”. Parte das receitas provenientes da venda das peças será doada às quatro instituições apoiadas nesta edição do PRIO Softboard Heroes.
“Esta galeria é, portanto, um verdadeiro convite à reflexão e à mudança”, remata.
“Há valor naquilo que descartamos”
Questionado sobre a força da arte quando se alia à sustentabilidade, Tiago explica que a mesma “tem o poder de comunicar o que, muitas vezes, palavras não conseguem. Quando transformamos lixo em arte, estamos a enviar a mensagem de que há valor naquilo que descartamos. Mais do que estética, há simbologia, provocação, uma chamada de atenção e à ação”.
O mar é a maior reserva natural do mundo. Por isso, na opinião de Tiago, “a sua poluição é, atualmente, uma das questões ambientais mais urgentes”. Se, através de abordagens criativas e de economia circular, essa “chamada de atenção” “for canalizada para esta problemática, podemos abrir caminho para soluções sustentáveis e um futuro mais azul”, conclui.
Segundo dados da Agência Portuguesa do Ambiente, em 2022, 88% dos resíduos recolhidos em 14 praias do território continental eram compostos por plástico. A palavra “sustentabilidade” está cada vez mais presente no discurso público, mas mais do que falar sobre o assunto, é urgente agir.
