Dia Mundial do Solo: “O estado dos solos no País é muito preocupante”



Esta sexta-feira assinala-se o Dia Mundial do Solo, efeméride instituída em 2013 pelas Nações Unidas com o derradeiro propósito de sensibilizar para a importância da “terra” debaixo dos nossos pés, tanto para o bom funcionamento dos ecossistemas, como para a prosperidade das comunidades humanas.

Este ano tem como lema “Solos saudáveis para cidades sustentáveis” e tem como foco as paisagens urbanas, com vista a relevar o papel fundamental que os solos desempenham nas cidades. Isto, porque a sua indispensabilidade não se resumo ao “campo” ou ao mundo rural.

Nas cidades, os solos estão sobretudo escondidos sob tapetes de asfalto, sob edifícios de todas as formas e feitos, tornando-os impermeáveis e extirpando-os de dinâmicas naturais essenciais como os ciclos da água e do carbono, impedindo-os de ser o lar de tantos seres vivos, grandes e microscópicos, que, noutras circunstâncias, proliferariam e ajudariam a impulsionar os sistemas que dão vida à Terra.

Nas cidades, e também noutros contextos cada vez mais, os solos são asfixiados pela expansão da presença humana. Como se não bastasse, são degradados e desvitalizados por práticas insustentáveis, afogados em químicos que encurtam as suas vidas e dizimam a biodiversidade que os sustenta, e que muitos de nós ignoramos ou desconhecemos.

Solos portugueses são sobretudo “delgados” e “pobres em matéria orgânica”

Sobre os solos em Portugal, a geógrafa Maria José Roxo diz-nos que “o estado dos solos no país é muito preocupante”. A catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e especialista em solos explica que, devido ao clima, ao relevo, à natureza e composição das rochas que compõem os solos e à vegetação que os cobre, em Portugal  são predominantemente “delgados” e “pobres em matéria orgânica”, pelo que são “limitas as áreas com solos profundos e férteis”.

No Norte e Centro interior, os solos são mais pobres quando comparados com “os bons solos”, mais férteis e com maior potencial agrícola, que se encontram na região do Ribatejo ou no Alentejo, em solos argilosos conhecidos como os “Barros de Beja”.

Por todas essas características, os diferentes tipos de solo no país estão especialmente suscetíveis à degradação, seja pela ação erosiva da água que por eles corre, pela perda de matéria orgânica, pela contaminação, pela compactação ou pela impermeabilização.

Assim, condições naturais e atividades humanas reforçam-se mutuamente e concorrem para ameaçar os solos em Portugal. Maria José Roxo aponta como uma das principais ameaças a erosão causa da força da água, sobretudo a que é lançada sobre as terras por chuvas muito intensas. Essa erosão é “facilitada por um relevo com vertentes declivosas, pela ausência de coberturas vegetais protetoras e por práticas agrícolas em que a mobilização do solo é uma constante”.

“Como resultado, o país apresenta uma das taxas de erosão mais elevadas da Europa, o que significa uma diminuição da fertilidade dos solos, por perdas significativas da matéria orgânica e, logicamente, da sua capacidade produtiva”, detalha a académica.

Além disso, há que não esquecer o papel que os incêndios, presença regular e cada vez mais intensa em Portugal, têm na degradação de solos já de si pobres. Segundo a investigadora, esses fenómenos contribuem “de forma significativa” para a perda de um “recurso natural vital”, o que põe em causa “a própria recuperação dos ecossistemas florestais”. Isso, porque, como nos diz, “as características físicas, químicas e biológicas dos solos são profundamente alteradas e degradadas”.

Essa degradação alimentada pelas chamas cria as condições ideias para a propagação da desertificação, que é um estado avançado de degradação dos solos, em zonas secas e sub-húmidas como as paisagens sujeitas ao clima mediterrânico, causada por fatores climáticos e humanos.

O Alentejo, o Algarve e o interior do Norte e Centro são as regiões de Portugal mais suscetíveis à desertificação, devido, elucida Maria José Roxo, “ao aumento da aridez, à crescente irregularidade das precipitações, ao aumento das temperaturas, às secas recorrentes e às práticas agrícolas intensivas, bem como à remoção dos matos e dos resíduos vegetais das culturas”.

Foto: Mike Erskine / Unsplash.

A académica salienta que também como ameaça que tem vindo a crescer a impermeabilização dos solos, fruto do crescimento urbano e de construções de infraestruturas como estradas e de “megaprojetos para produção de energia fotovoltaica”, bem como da expansão de áreas industriais “sobretudo no litoral”.

Além disso, há também o problema da contaminação dos solos, especialmente em áreas perto de antigas áreas de exploração de minerais, de zonas industriais, de pecuária intensiva e onde se apliquem em excesso agroquímicos.

“A poluição por nitratos é uma verdadeira preocupação em algumas regiões do País, uma vez que o risco não é apenas para os solos, mas igualmente para os aquíferos e para a emissão de gases com efeito de estufa para a atmosfera”, avisa.

O que tem feito Portugal? Alguma coisa, mas não chega

Portugal tem vindo a adotar diversas medidas agrícolas que vêm da União Europeia, como as que resultam da Política Agrícola Comum, e que tentam, apesar dos audíveis e repetidos alertas dos agricultores e representantes do setor, alinhar o uso e a gestão dos solos com objetivos de sustentabilidade ambiental. Há várias décadas que também foi implementado o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação.

Contudo, “os resultados no território ainda são uma realidade pouco visível”, lamenta Maria José Roxo. Ainda que reconheça que os planos de prevenção e gestão de incêndios sejam “um exemplo concreto onde se avançou”, principalmente por considerarem que a reflorestação e a gestão da paisagem “devem ser feitas de forma sistémica, tendo por base as características geográficas de cada região”, a académica diz que ainda não se conseguiu alcançar “os resultados esperados”.

Foto: Emma Renly / Unsplash.

“É fundamental, reconstituir uma paisagem em mosaicos, evitando monoculturas, privilegiando as espécies mais bem-adaptadas ao clima e ao tipo de solo, procurando um maior equilíbrio ecológico e assegurar o bem-estar das populações”, defende. E acrescenta que é imprescindível investir também ma melhoria de sistemas de monitorização dos solos, em especial em áreas mais suscetíveis à desertificação, e na investigação científica, pois, como nos recorda, “só se gere bem o que se conhece”.

Olhando para as medidas que existem hoje em cima da mesa para proteger e revitalizar os solos, Maria José Roxo é perentória: “é necessário ir mais longe e de uma forma muito eficaz”. Desde logo, argumenta, é preciso uma Lei dos Solos que “proteja de forma concreta o solo como recurso não renovável” e aumentar a adoção da agricultura regenerativa e de conservação mesmo em sistemas mais intensivos.

Ademais, é necessário haver “uma integração dos instrumentos e medidas com reflexo no território” que garantam “a proteção do solo a longo prazo”, uma vez que, refere a especialista, “encontram-se dispersos entre os setores da agricultura, ambiente e ordenamento, sendo essencial existir uma maior coordenação e fiscalização”.

É igualmente crucial fazer a sociedade compreender a importância dos solos e “a sua ligação a outros recursos naturais, como a água e a biodiversidade” e acabar com a escassez de investimento financeiro na regeneração de áreas degradadas, na descontaminação, na monitorização e na investigação.

Os solos no mundo

Em 2024, quase duas dezenas de investigadores lançaram-se na avaliação do estado dos solos a nível mundial. Num artigo publicado na revista ‘Annual Review of Environmental Resources’, alertavam que a maioria dos solos do planeta estavam apenas em condições razoáveis, más ou muito más e que, à escala global, eram mais as instâncias de agravamento das más condições do que de melhoria.

Cerca de 33% dos solos mundiais, estimou a mesma equipa, apresentavam estados de degradação moderados ou severos devido, sobretudo, à erosão, à compactação, à poluição, à acidificação e à salinização. Entre as principais ameaças identificaram-se a erosão, a perda de matéria orgânica, o desequilíbrio de nutrientes, a perda de biodiversidade, a impermeabilização e a falta de água, para nomear apenas alguns.

Embora reconheçam que, pelo mundo fora, têm, especialmente nos últimos anos, surgido iniciativas e políticas que pretendem proteger e recuperar os solos, e que há uma consciência cada vez maior da importância de promover o seu bom estado e funcionamento, “o estado dos solos não tem sempre melhorado onde tais iniciativas têm sido implementadas”. Isso deve-se especialmente à falta de conhecimento suficiente sobre o solo, de tal forma que, dizem os cientistas, os casos de sucesso no restauro e proteção dos solos estão em locais “com base de dados consideráveis sobre o solo e redes de monitorização ambiental consistentes”, onde quem os gere é capaz de suportar adequadamente suportar os custos dessas ações.

“Solos saudáveis contribuem para uma grande variedade de serviços de ecossistema e praticamente para todos os [Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas”, escrevem, lembrando que há muito a aprender com práticas antigas de gestão sustentável dos solos. A título de exemplo, apontam o caso da “terra preta” na Amazónia, um tipo de solo extremamente fértil que foi criado ao longo de séculos por várias gerações de grupos indígenas, que enriqueceram o solo pobre com carvão vegetal de pequenas fogueiras que usavam para cozinhar alimentos, com ossos de animais e estrume.

Uma “prática secular esquecida”, dizem, cuja perda será, porventura, tão significativa do ponto de vista cultural quanto será em termos do seu valor prático.

Mais recentemente, no início deste mês de dezembro, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) publicou um relatório no qual alerta para o perigo crescente da intensificação agrícola.

Nos últimos 60 anos, a produção agrícola mundial triplicou, ao passo que a área cultivada aumentou apenas 8%, o que significa que se está a tirar (ou a tentar fazê-lo) cada vez das mesmas terras. Atualmente, revela a análise, mais de 60% da degradação dos solos provocada pelos humanos acontece em zonas agrícolas.

Foto: James Baltz / Unsplash.

Prevendo-se que a população global chegue aos 9,7 mil milhões de pessoas até 2050, a agricultura terá de produzir 50% mais alimentos do que em 2012, e consumir 25% mais água doce. No quadro de crises planetárias em crescendo, incluindo o número de pessoas sem acesso a alimentos em quantidade e qualidade adequadas, os especialistas dizem que muitos desafios avizinham-se, e não estão num futuro distante, mas ao virar da esquina.

O relatório avisa que expandir a área agrícola “já não é viável”, uma vez que destruir florestas ou converter ecossistemas frágeis poria em risco a biodiversidade e os ecossistemas dos quais a própria agricultura depende.

Então o que fazer? A FAO indica que é preciso repensar a forma como se produz, bem como atentar seriamente nos custos ambientais, sociais e económicos dessa mesma produção.

Como tal, o foco deve estar em produzir de forma mais inteligente e não apenas em maior quantidade, como transitar para culturas mais diversas e, assim, resilientes a choques climáticos, como secas, adotar práticas mais eficientes e adaptadas ao contexto e condições ecológicas locais e promover o alinhamento entre a agricultura e a conservação dos ecossistemas para que ambas possa beneficiar uma da outra de forma sustentável.

A propósito do lançamento do relatório, Qu Dongyu, diretor-geral da FAO, dizia que, com as alterações climáticas a ditarem onde e como se produz alimentos, “as escolhas que fizermos hoje no que toca à gestão dos solos e da água determinarão como daremos resposta às atuais e futuras necessidades” e também o estado em que deixaremos o planeta para as gerações que estão por vir.

Proteger os solos é proteger o planeta e as pessoas

“Os solos constituem uma infraestrutura ecológica vital para a manutenção da vida no Planeta”, assevera Maria José Roxo, lembrando que não se trata apenas de terra que cultivamos, mas de um mundo, muitas vezes ignorado, com múltiplas dimensões: ecológica, económica, social e cultural. Como tal, torna-se evidente que, como diz a académica, “é essencial para todos os organismos vivos”, os humanos e os não-humanos.

Por ser um sistema aberto no qual “se dá troca de energia e matéria”, tem de inevitavelmente ser visto como “frágil e complexo”, e, claro, de grande importância.

Os solos suportam uma enorme diversidade de formas de vida, são parte fundamental do ciclo da água, atuam como sumidouros de carbono, são centrais para a produção de alimentos e servem de suporte físico tanto para construções humanas como para ecossistemas. Os solos são, por tudo isso e até por mais, aliados de peso que não devemos menosprezar na luta contra as grandes crises planetárias.

Para as alterações climáticas, os solos ajudam na mitigação, com o sequestro de carbono, mas também na adaptação, ao aumentarem a resiliência hídrica e face a fenómenos como secas e ondas de calor. No que toca à perda de biodiversidade, a conservação e regeneração dos solos são essenciais para o bom funcionamento dos ecossistemas e para as espécies que deles fazem parte. Quanto à poluição, os solos são (com limites, claro) barreiras naturais biogeoquímicas, que filtram e degradam poluentes.

Assim se vê que proteger os solos é muito mais do que, simplesmente, proteger os solos.

Foto: imsogabriel stock / Unsplash.

Olhando para o futuro, e em particular para Portugal, Maria José Roxo diz que o que acontecerá aos solos dependerá “da eficácia das políticas públicas que promovam a sua conservação, proteção e regeneração”. Para tal, decisores políticos, empresas e cidadãos comuns, como eu e talvez o leitor, têm de perceber que os solos são “um elemento vital e decisivo para a resiliência ecológica, económica e social”, especialmente “num contexto global complexo e incerto”.

Acautela a catedrática que as crises planetárias, bem como “a pressão cada vez maior sobre os recursos naturais e a instabilidade dos sistemas agroalimentares”, têm de ser entendidas por aquilo que realmente são: “sinais de alerta para a urgente adoção de estratégias de proteção e regeneração mais ambiciosas”.

Com cenários climáticos futuros pouco animadores, têm de ser prioridades “ações e medidas que contribuam para a mitigação e adaptação à mudança climática”, assegura-nos, acrescentando que é crucial “uma participação ativa na escolha de opções para o uso do território, porque o futuro dos solos e dos recursos naturais a ele ligados dependerá das opções tomadas hoje”.

Os solos levaram séculos, milénios ou talvez até mais a formar-se, mas podem ser destruídos mais rapidamente do que se calhar pensamos, e, como as coisas vão, estamos, espécie humana, a contribuir coletivamente para mais essa extinção.

Tendo como pano de fundo um negrume crescente, mas ainda não totalmente cerrado, o solo “deve ser tratado como um recurso finito estratégico do país e indispensável e insubstituível para o bem-estar das gerações futuras”, declara Maria José Roxo, uma noção que se deve aplicar não só a Portugal, mas ao mundo inteiro.






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