Entrevista: Armazenamento de energia em ar comprimido “pode contribuir para evitar apagões como o de abril de 2025”



O investigador Ricardo Pereira, da NOVA FCT, acredita que o armazenamento de energia através de ar comprimido em estruturas geológicas pode ser um passo crucial para a descarbonização do setor energético e para reduzir a dependência externa. Com mais de 20 anos de experiência na indústria de prospeção e exploração de hidrocarbonetos, começou a estudar esta tecnologia em 2019, quando se deparou com um estudo académico sobre o Armazenamento de Energia com Ar Comprimido (CAES) em meio geológico. Desde 2022, lidera uma linha de investigação multidisciplinar que avalia o potencial desta tecnologia, com aplicação ao caso português.

Em entrevista à Green Savers, o investigador revela que o CAES funciona como uma “gigante bateria subterrânea” que armazena o excesso de eletricidade gerada por fontes renováveis, permitindo libertá-la quando necessário. “O ar fica armazenado em rochas porosas que contêm águas salinas, ou em cavernas de sal. Posteriormente, e quando necessário, o ar armazenado a grande pressão pode ser libertado para produção através de turbinas que, por descompressão, permitem novamente gerar eletricidade sem recurso a combustíveis fósseis”, explica Ricardo Pereira, sublinhando que esta tecnologia não apenas contribui para a sustentabilidade, como também pode atuar em situações de emergência, ajudando a mitigar apagões e estabilizar a rede elétrica.

O que motivou este estudo sobre armazenamento de energia através de ar comprimido em estruturas geológicas?

Com uma experiência de trabalho de mais de 20 anos na indústria de prospeção e exploração de hidrocarbonetos, em 2019 deparei-me com um estudo académico sobre o Armazenamento de Energia com Ar Comprimido (Compressed Air Energy Storage – CAES) em meio geológico. Na época, trabalhava na Indústria e percebi que esta seria uma oportunidade de contribuir com todo o conhecimento adquirido e um passo importante para a descarbonização do sector energético e redução da dependência e pobreza energética.

Desde 2022, com base na minha experiência profissional e académica e agora enquanto Investigador da NOVA FCT, implementei uma nova linha de investigação multidisciplinar ligada à utilização de recursos energéticos sustentáveis, para avaliar o potencial desta tecnologia, com aplicação ao caso português, mas não só. Este é um tema que, entretanto, é forte componente na nova licenciatura em Geologia para a Sustentabilidade da NOVA FCT, em que esperamos cativar jovens que aceitem o desafio de contribuir com conhecimento de Geociências para a transição energética. Atualmente, oriento estudantes de mestrado e doutoramento a trabalhar este tema, que demonstra que é um tema cativante para os jovens.

Ao mesmo tempo, foram desenvolvidas parcerias com a Universidade de Lisboa, nomeadamente com a Faculdade de Ciências e Instituto Superior Técnico, das quais esperamos em breve poder apresentar resultados muito interessantes. O armazenamento de energia elétrica é atualmente não apenas uma oportunidade, mas uma necessidade.

Como funciona, na prática, esta “gigante bateria subterrânea”?

O conceito é simples. Utilizando o excesso de produção de eletricidade de fontes renováveis, por exemplo solar e eólica, é possível comprimir o ar atmosférico injetando-o em estruturas geológicas a grande profundidade. O ar fica armazenado em rochas porosas (arenitos ou calcários) que contêm águas salinas, ou em cavernas de sal. Posteriormente, e quando necessário, o ar armazenado a grande pressão pode ser libertado para produção através de turbinas que, por descompressão, permitem novamente gerar eletricidade sem recurso a combustíveis fosseis, num processo sem emissões de gases de efeito de estufa.

Esta produção pode funcionar em ciclos diários, ou sazonais, conforme o consumo de eletricidade: preferencialmente em períodos em que as fontes renováveis não podem gerar energia por falta de sol ou vento, reduzindo assim o consumo de consumo de gás para produção de eletricidade. Ou mesmo em períodos de seca, com os impactos esperados das alterações climáticas, em que as hidroelétricas poderão não ter caudal suficiente para produção energética.

O conceito é simples. Utilizando o excesso de produção de eletricidade de fontes renováveis, por exemplo solar e eólica, é possível comprimir o ar atmosférico injetando-o em estruturas geológicas a grande profundidade

Este método seria suficiente para evitar apagões como o de abril?

O CAES pode contribuir para evitar apagões como o de abril de 2025. É possível utilizar o ar armazenado na subsuperfície para atuar em “black start” e ajudar não apenas a regular a potência na rede de forma quase instantânea, como também em caso de emergência e quando outras infraestruturas eventualmente ficassem inoperacionais, recorrendo à energia armazenada para mitigar os efeitos de um apagão e permitindo que estruturas críticas tenham acesso a energia. Não seria uma solução mágica nem universal, mas um forte contributo para a gestão da rede elétrica regional ou nacional. Por ter uma resposta rápida na produção, sistemas CAES modernos (especialmente os do tipo adiabático) podem responder rapidamente e, entre segundos a minutos, estabilizar a rede elétrica.

Quais são as principais vantagens desta tecnologia comparativamente a outras formas de armazenamento, como baterias químicas?

O armazenamento de energia com ar comprimido possui várias vantagens em relação às baterias e mesmo outras tecnologias existentes ou emergentes, como o hidrogénio verde. Em termos de durabilidade, os sistemas CAES podem operar durante décadas (por exemplo Hunfort na Alemanha nos anos 70, ou McIntosh no EUA nos anos 90), enquanto baterias químicas geralmente têm uma vida útil máxima de 15 anos (dependendo da tecnologia). Também os custos de produção e operacionais por MWh são inferiores, embora o seu investimento inicial seja mais elevado. O CAES é mais eficiente e permite o armazenamento de longa duração e em larga escala (MWh a GWh), mais adequado a suportar o consumo de pequenas cidades ou suportar a gestão da rede nacional. As baterias, contudo, serão mais adequadas para consumo em pequena escala, individual doméstico ou pequenas empresas.

Os sistemas CAES podem operar durante décadas (por exemplo Hunfort na Alemanha nos anos 70, ou McIntosh no EUA nos anos 90), enquanto baterias químicas geralmente têm uma vida útil máxima de 15 anos (dependendo da tecnologia).

Existem riscos associados à compressão e armazenamento de ar em cavidades subterrâneas?

Do ponto de vista de segurança, o CAES em meios geológicos apresenta risco baixo para as populações. O ar armazenado é ar atmosférico que respiramos e, por isso, não é tóxico como o CO2, nem explosivo como o hidrogénio. Como tal, sem riscos de contaminação de aquíferos de água potável, nem em caso de eventuais fugas para a superfície, o que seria sempre difícil de ocorrer, com os conhecimentos científicos e de engenharia existentes. Contudo, existem sempre riscos, como em muitas outras atividades industriais. Os riscos geológicos associados ao armazenamento na subsuperfície poderão existir, mas não são conhecidos, até à data, incidentes relevantes. Eventuais riscos podem não apenas ser prevenidos e reduzidos através de estudos prévios de Geologia e Engenharia, como podem ser monitorizados com equipamentos de alta tecnologia, e eventuais incidentes rapidamente mitigados com as medidas adequadas. Daí que o estudo antecipado do potencial de armazenamento tenha de ser investigado adequadamente antes de chegar a uma fase de decisão. É nisso que se tem estado a trabalhar neste projeto de investigação.

Que tipos de estruturas geológicas são mais indicadas para este tipo de armazenamento?

Existem dois tipos principais de estruturas geológicas para armazenamento de ar comprimido na subsuperfície. Podemos armazenar em cavernas de sal, por dissolução controlada de rochas salíferas, formando assim uma grande cavidade em forma de charuto dentro do diapiro de sal, onde pode ser injetado e produzido o ar. A outra forma, e que poderá ter ainda mais potencial de armazenamento e produção, será em rochas porosas e permeáveis, como arenitos ou calcários, e seladas a topo por argilitos, a profundidades de mais de 500 metros, onde o ar injetado irá ocupar o espaço entre os grãos, criando assim um enorme volume de armazenamento da pluma de gás. Sabemos, que em Portugal estas estruturas existem, pois através de dados recolhidos de antigas campanhas de prospeção de petróleo e gás, foram demonstradas a presença e qualidade de algumas destas estruturas e das suas rochas. Temos informação valiosíssima que tem de ser utilizada para uma transição energética sustentável e socialmente aceite. É fundamental envolver antecipadamente as populações para comunicar os benefícios e riscos associados, para atingirmos uma transição energética eficaz e benéfica para todos.

Temos informação valiosíssima que tem de ser utilizada para uma transição energética sustentável e socialmente aceite. É fundamental envolver antecipadamente as populações para comunicar os benefícios e riscos associados, para atingirmos uma transição energética eficaz e benéfica para todos

Qual seria o custo aproximado de implementação em larga escala em Portugal?

Neste momento, não existem números exatos dos custos envolvidos, pois estes dependem muito do tipo de modelo termodinâmico e energético utilizado, mas principalmente das condições geológicas para armazenamento como a profundidade ou do tipo de rocha, que controlam os critérios para definição de todas as infraestruturas de superfície e para perfuração de poços injetores e produtores. Resolvidas algumas destas questões, esperamos conseguir obter valores mais robustos que ajudem a construir cenários realistas para as condições de mercado.

Esta tecnologia tem aplicações para além do armazenamento de emergência?

Esta tecnologia tem implicações para a forma como vemos e planeamos o nosso sistema energético nacional num contexto de mix energético. Em Portugal, sem reservas conhecidas de petróleo ou gás – apenas temos potencial para eventuais descobertas – a redução da dependência energética, apenas poderá acontecer se tivermos acesso a outras formas de energia. A dados de 2023 (DGEG, Energia em Números – 2025) importamos aproximadamente 67 por cento da energia primária que consumimos, nos transportes, na indústria e mesmo nas nossas casas. E é aqui que o armazenamento de energia elétrica de fontes renováveis mostra o seu aspeto crítico e estratégico. Se temos tido um trajeto positivo na produção de fontes renováveis, e em certos períodos temos excedente de produção de eletricidade destas fontes, com eventos recentes em Portugal de “curtaillement” da fotovoltaica, pergunto o que fazer com o excesso. A solução está na possibilidade de armazenamento a larga escala e de longa duração, e este apenas pode ser efetuado na subsuperfície, em que o CAES é uma das possibilidades. Se pudermos armazenar eletricidade durante o dia para consumir durante a noite, isto implicaria uma redução do consumo de gás natural. Mesmo sendo uma pequena percentagem, poderia ter efeitos económicos significativos e reduzir o índice de dependência energética, em que Portugal está mal classificado em relação à média europeia de cerca de ~58%.

importamos aproximadamente 67 por cento da energia primária que consumimos, nos transportes, na indústria e mesmo nas nossas casas. E é aqui que o armazenamento de energia elétrica de fontes renováveis mostra o seu aspeto crítico e estratégico.

Quais os próximos passos do vosso projeto de investigação?

Além da investigação em curso, procuramos entender melhor quais os controlos geológicos que poderão fazer entender as formas mais eficazes e seguras para atingir uma fase de projeto piloto. Isto passa por procurar parcerias estratégicas com empresas no sector da energia, comprometidas com uma transição “net-zero” e forte consciência social, bem como procurar financiamento público de investigação em Portugal ou da União Europeia, que permita suportar a criação de uma equipa multidisciplinar, equipamentos e trabalhos de campo. Gostaria muito que daqui a uns cinco anos fosse possível avançar para um projeto piloto e testar a eficácia do armazenamento de ar comprimido em Portugal, onde temos as condições geológicas e de sistema energético suportado por renováveis, favoráveis para tal acontecer.

Existe algum cronograma concreto para instalar este tipo de sistema em Portugal?

Atualmente, a legislação não permite que projetos de armazenamento de energia com ar comprimido na subsuperfície possam ser desenvolvidos. Talvez este seja um dos problemas mais difíceis de resolver para atingir melhores níveis de descarbonização da rede energética. E sem legislação própria, as empresas não podem realizar estudos detalhados ou pensar um projeto concreto num curto espaço de tempo, o que é, em si, um forte bloqueio ao desenvolvimento tecnológico e captação de recursos humanos qualificados. Sem a colaboração com empresas de energia, este tipo de projeto também não pode existir.

Atualmente, a legislação não permite que projetos de armazenamento de energia com ar comprimido na subsuperfície possam ser desenvolvidos. Talvez este seja um dos problemas mais difíceis de resolver para atingir melhores níveis de descarbonização da rede energética

Desta forma, e com estas limitações é difícil estabelecer um cronograma que possa fazer do armazenamento de energia com ar comprimido uma realidade. Contudo, a maturidade da tecnologia não é um impedimento, pois há casos recentes de sucesso com o CAES a ser implementado na China, Canadá, Austrália e alguns países europeus. Falta ser comunicada uma visão estratégica nacional que não apenas enquadre o armazenamento de energia de longa duração, mas que invista fortemente na investigação e desenvolvimento, com interligação com uma indústria comprometida com a transição energética

 






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