Invertebrados: Os ‘mal-amados’ da fauna portuguesa estão em perigo e é preciso agir para protegê-los



Esta terça-feira, foram apresentados publicamente os resultados do trabalho que dará origem ao primeiro Livro Vermelho dos Invertebrados de Portugal Continental alguma vez criado. Das 865 espécies avaliadas, entre crustáceos, bivalves, insetos, aracnídeos, caracóis e lesmas, verificou-se que 201 (23%) estão ameaçadas.

O projeto arrancou em 2018 e envolveu mais de três centenas de pessoas, com a missão de avaliar o risco de extinção das espécies de invertebrados que ocorrem em Portugal Continental. Apesar de abranger uma pequena porção do universo total de espécies que se estima que ocorram no país (entre 20 mil e 30 mil), o trabalho procurou incluir o máximo de diversidade possível de todos os grupos de invertebrados.

Em declarações à ‘Green Savers’, Mário Boieiro, investigador do pólo do cE3c da Universidade dos Açores e um dos coordenadores-gerais do projeto, afirmou que Portugal tem “uma riqueza bastante elevada” de espécies de invertebrados e que “comparativamente a outros países da Europa, temos um grande número de espécies que são exclusivas do nosso país”.

A elaboração do trabalho que dará forma a este Livro Vermelho “pretendeu dar resposta à falta de informação que nós temos” sobre essas espécies, e permitiu criar “uma boa ferramenta” que poderá ser aplicada pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), “mas também pelas câmaras municipais e pela própria sociedade”.

O responsável avançou que existem muitas espécies sobre as quais pouco ou nada se sabe hoje, cerca de um terço das que foram avaliadas, e que, apesar da falta de informação disponível não permitir fazer uma avaliação concreta do seu estado de conservação, podem estar ameaçadas.

Os investigadores envolvidos explicam que os invertebrados representam “a maior parte da diversidade terrestre” da fauna portuguesa, sendo, assim, “um importante grupo de organismos”, com muitas espécies que apenas podem ser encontradas em Portugal.

O trabalho debruçou-se também sobre as 14 espécies que estão protegidas ao abrigo da Diretiva Habitats, da União Europeia, que, segundo o cientista português, constituem “um elenco de espécies que não é representativo da diversidade dos invertebrados em Portugal, nem tão pouco inclui as espécies mais ameaçadas” no país.

Passam por baixo dos nossos pés ou a zumbir pelos nossos ouvidos, mas quase nunca damos por eles. São o objeto da admiração de alguns, da rejeição de tantos outros. Os invertebrados são considerados os ‘mal-amados’ da fauna, a fonte de muitos medos, preconceitos e noções erradas, mas a sua importância ecológica é gigantesca e ignorá-la pode ter efeitos catastróficos.

Portugal: Um país com uma “biodiversidade notável” de invertebrados

Na sessão de apresentação, Mário Boieiro informou que o território continental português se caracteriza por uma “biodiversidade notável” que resulta da sua localização geográfica, a meio caminho entre a Europa e África, o que, explica o biólogo, “faz com que aqui se concentre uma rica diversidade” de espécies.

Além disso, o facto de Portugal continental ter sido um ‘refúgio’ para várias formas de vida durante os períodos de glaciação, que tornaram praticamente inabitáveis vastas extensões da Europa, foi outro dos fatores que gerou uma ‘explosão’ de biodiversidade.

No entanto, Boieiro reconheceu que, no que toca aos invertebrados, o conhecimento científico é deveras “heterogéneo”. Se sobre alguns grupos se conhece muito, sobre outros o que se sabe é ainda escasso.

Gafanhoto da espécie Stenobothrus grammicus.
Foto: José Conde

Por isso, defendeu que o conhecimento sobre os invertebrados é “crítico” para que se possa avaliar os riscos de extinção que as diversas espécies enfrentam e para implementar as medidas de conservação necessárias e adequadas.

O investigador explicou ainda que os invertebrados são dos animais “mais vulneráveis à extinção”, devido às suas distribuições restritas e ao facto de, no decurso de uma longa história evolutiva, se terem tornado fortemente especializados nos habitats em que vivem. Por isso, mudanças ambientais, como as provocadas pelos efeitos das alterações climáticas (seca e incêndios mais intensos e frequentes) e pela ação humana direta (agricultura e urbanização), podem pressionar cada vez mais essas espécies e empurrá-las para a extinção.

O projeto contou, numa primeira fase, com a recolha de informação dispersa em publicações científicas e académicas, sobre a abundância, distribuição e ecologia dos invertebrados em Portugal. De seguida, essa informação, que já não era recente, foi atualizada com trabalho de campo em cerca de 200 locais de norte a sul do país, incidindo sobretudo em Zonas Especiais de Conservação (ZEC), tendo sido recolhidos vários espécimes que, numa terceira fase, foram analisados e identificados em laboratório.

Contudo, por causa da pandemia, essa etapa sofreu alguns atrasos, pois os investigadores, fruto das medidas de confinamento, estiveram impedidos de aceder aos laboratórios durante algum tempo.

Por fim, a quarta fase do projeto foi a avaliação propriamente dita do risco de extinção enfrentado pelas espécies avaliadas, seguindo os critérios da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).

201 espécies de invertebrados ameaçadas e o que não se sabe ainda é muito

Do total das 865 espécies de invertebrados avaliadas, 201, entre todos os grupos estudados, foram classificadas em categorias de ameaça: ‘Vulneráveis’, ‘Em Perigo’ ou ‘Criticamente em Perigo’.

Os investigadores estimam que também 16 espécies estarão extintas em Portugal continental. Mário Boieiro avançou que foi feito “um grande esforço” para encontrá-las, mas sem sucesso, pelo que se considera que são “espécies que estarão extintas no nosso país”, embora ocorram ainda em Espanha.

O coordenador do projeto destacou para “um grande número” de espécies de invertebrados, cerca de 30%, “não temos ainda informação suficiente” para que seja possível avaliar o risco de extinção. “É necessário haver um maior esforço de recolha de dados, sobretudo no campo, para num futuro próximo podermos avaliar estas espécies”, argumentou.

Foram também identificadas 364 espécies na categoria de ‘Pouco Preocupante’, cerca de 40% do total, um número que Mário Boieiro disse ser “relativamente elevado”.

Caracóis, lesmas, bivalves e crustáceos

Daniel Pires, investigador da BIOTA, outra das entidades que participou no projeto, e um dos coordenadores da equipa de especialistas que se dedicou ao grupo dos gastrópodes (lesmas e caracóis), bivalves e crustáceos, revelou que atualmente conhecem-se 184 espécies de gastrópodes em Portugal continental, sendo que 20 apenas ocorrem no país.

Para a avaliação do risco de extinção, foram selecionadas 79 espécies de lesmas e caracóis (53 terrestres e 26 aquáticas), entre elas todos os endemismos lusitânicos e 18 espécies endémicas da Península Ibérica.

Do total, 14 espécies estão ameaçadas, sete aquáticas e sete terrestres. Cinco delas foram avaliadas como estando ‘Criticamente em Perigo’, oito ‘Em Perigo’ e uma ‘Vulnerável’. Deste grupo fazem parte nove espécies endémicas de Portugal continental e quatro da Península Ibérica.

De acordo com Daniel Pires, estas espécies consideradas ameaçadas têm “uma distribuição geográfica reduzida”, com populações “fragmentadas” ou encontradas em poucos locais, e o seu habitat tem “sofrido um declínio, seja em quantidade, seja em qualidade”.

O investigador reforçou que “o desconhecimento para este grupo é muito elevado”, sendo que para mais de 60% das espécies de gastrópodes não existe informação que permita fazer a sua avaliação, incluindo duas espécies endémicas de Portugal continental.

Com base em avaliações feitas no passado, Daniel Pires alertou que “houve um agravamento do risco de extinção para a maior parte das espécies” de gastrópodes.

Quanto aos bivalves, os investigadores concluíram que oito espécies estão ameaçadas, incluindo duas espécies de esferídeos e seis espécies de mexilhão-do-rio, entre elas duas protegidas pela Diretiva Habitats: a Margaritifera margaritifera e a Unio tumidiformis.

Margaritifera margaritifera.
Foto: Joaquim Reis

“Os resultados não são de todo animadores”, admitiu Daniel Pires.

Sobre os crustáceos, estão descritas 32 espécies para Portugal continental, tendo sido avaliadas 22, das quais três são endémicas do país e cinco da Península Ibérica.

Crustáceo da espécie Lepidurus apus.
Foto: Luis Cancela da Fonseca

Tal como o grupo dos bivalves, o dos crustáceos apresenta também um cenário negro, pois, do total, 19 espécies estão ameaçadas, “a maior parte delas classificada como ‘Em Perigo’”, explicou o investigador.

As ameaças a estes grupos de animais vêm, sobretudo, dos incêndios, que provocam a destruição dos habitats das espécies terrestres, as secas e a expansão das áreas agrícolas e urbanas.

Por isso, defendeu Daniel Pires, são necessárias medidas que permitam restaurar os habitats degradados, reduzir o risco e ocorrência de incêndios, controlar as espécies exóticas invasoras, proteger os charcos, combater a poluição dos cursos de água e implementar mecanismos que permitam uma monitorização constante dessas espécies.

Entre insetos e aracnídeos: Pressão humana está a alterar e destruir habitats

Patrícia Garcia-Pereira foi uma das responsáveis pelo trabalho levado a cabo pelas equipas que tiveram a seu cargo a avaliação do risco de extinção de espécies de insetos e aracnídeos.

Estes grupos apresentam uma grande diversidade em Portugal continental, com mais de 13 mil espécies de insetos e mais de 800 de aranhas, com a cientista a apontar que, nestes dois grupos, existe “uma outra ordem de grandeza e de diversidade”.

Foram 754 as espécies que foram avaliadas para o Livro Vermelho, entre 42 aranhas, 59 escaravelhos, 33 abelhas, 16 formigas, 115 borboletas e mariposas, 69 moscas, 12 percevejos e mais de 140 gafanhotos e grilos, entre muitas outras.

Aranha Anapistula ataecina.
Foto: Pedro Cardoso

Desse total, percebeu-se que 160 espécies (21%) estão ameaçadas: 18 ‘Criticamente em Perigo’, 84 ‘Em Perigo’ e 58 ‘Vulneráveis’. Além disso, cerca de 20% das espécies de insetos e aranhas não puderam ser avaliadas por falta de informação disponível.

Patrícia Garcia-Pereira confessou que, dado o número de espécies avaliadas, foi um trabalho “de loucos”.

No topo da lista das principais ameaças, as alterações climáticas destacam-se com grande evidência, sendo o fator que mais “pesa” para mais de 80% das 160 espécies ameaçadas. Mas também a atividade turística, o abandono dos métodos tradicionais da agricultura em prol de abordagens mais intensivas e ambientalmente insustentáveis, o desenvolvimento urbanístico e os incêndios.

“Está tudo a ser alterado e destruído”, alertou a investigadora do cE3C e do Tagis – Centro de Conservação das Borboletas de Portugal, avisando que se nada for feito para travar as alterações climáticas perto de 60 espécies ameaçadas de insetos e aracnídeos podem deixar de existir em Portugal.

Lestes-do-montesinho, espécie ameaçada de libélula.
Foto: Albano Soares

Patrícia Garcia-Pereira afirmou que para se poder evitar o pior é urgente sensibilizar para a conservação destas espécies e dos seus habitats, monitorizar continuamente o desenvolvimento dessas populações de invertebrados e continuar a investigar e a produzir conhecimento científico sobre elas.

E argumentou que é “importante aumentar as áreas protegidas” no país, com a criação de micro-reservas, restaurar habitats degradados e ter “novas políticas agrícolas que sejam compatíveis com a conservação da Natureza e destas espécies ameaçadas”.

É preciso aumentar a consciência pública da importância dos invertebrados

Nuno Sequeira, membro do Conselho Diretivo do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), entidade parceria no desenvolvimento do Livro Vermelho dos Invertebrados de Portugal Continental, que esteve presente na sessão em representação do Secretário de Estado da Conservação da Natureza e Florestas, João Paulo Catarino, afirmou que “a maior parte das pessoas ainda não tem grande noção da importância dos invertebrados nos ecossistemas”.

Pequenos e muitas vezes ignorados, estes animais desempenham funções fundamentais para a saúde e estabilidade dos habitats, além de estarem na base de muitas teias tróficas e, por isso, serem essenciais para a sobrevivência de tantas outras espécies, e de serem cruciais a polinização de diversas plantas, incluindo para aquelas que usamos na nossa alimentação.

Recordando que cerca de 35% das espécies de invertebrados avaliadas pelo projeto serem endémicas de Portugal continental, Nuno Sequeira frisou que este trabalho não é apenas importante para a comunidade científica, mas também para o país e, especialmente, para ajudar a informar políticas públicas e processos de tomada de decisão em matéria de conservação da biodiversidade.

“Agora que temos o conhecimento, há que pôr mãos à obra para aplicá-lo”, declarou.

O Livro Vermelho, que ainda não está disponível mas em breve estará, é, segundo Mário Boieiro, um dos coordenadores do projeto, “um documento importante para quem toma decisões”, que passará a tomá-las tendo em conta a existência de espécies ameaçadas em determinado local e aferir da melhor forma as consequências dessas ações.

“Mas o Livro é muito mais do que isso. Vai chegar ao cidadão comum”, contou-nos Boieiro, que espera que a obra ajude a mobilizar a população geral para a conservação da Natureza e transforme a forma como, até agora, temos lidado com o ambiente, mas que também nos faça ver estes pequenos animais com outros olhos.

Este foi o primeiro Livro Vermelho especialmente dedicado aos invertebrados em Portugal, desde que a primeira dessas obras foi lançada na década de 1990. O investigador quer acreditar que não serão precisos passar mais 30 anos para que possa haver outro livro sobre os invertebrados, mas para isso é preciso financiamento.

“Esperemos que os próximos livros aconteçam a um ritmo mais rápido”, salientou.





Notícias relacionadas



Comentários
Loading...