Perseguição a tiro ameaça a recuperação do abutre-preto em Portugal
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O abutre-preto (Aegypius monachus) é uma espécie protegida ao abrigo de legislação nacional e internacional. Em Portugal, o abate ou perturbação desta ave é um crime punível com pena de prisão até 5 anos. No entanto, “infelizmente, a perseguição a esta espécie mantém-se um grave fator de ameaça e mortalidade”. Nos últimos meses, pelo menos três abutres-pretos nascidos em Portugal foram vítimas de tiro, avança o projeto LIFE Aegypius Return em comunicado.
Repúdio e condenação por um conjunto vasto e diverso de entidades
Segundo a mesma fonte, no seguimento do comunicado oficial do ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas) relativo a um abutre-preto recentemente alvejado a tiro, gerou-se um movimento de repúdio e condenação por parte das autoridades e igualmente de associações de conservação da natureza e de entidades ligadas ao setor da caça, que não se reveem e condenam veementemente este tipo de práticas criminosas.
As três Organizações do Sector da Caça (OSC) de 1.º Nível – ANPC (Associação Nacional de Proprietários Rurais Gestão Cinegética e Biodiversidade), FENCAÇA (Federação Portuguesa de Caça) e CNCP (Confederação Nacional dos Caçadores Portugueses) –, tendo sido informadas pelo consórcio do projeto LIFE Aegypius Return relativamente a um conjunto de situações similares, de imediato se solidarizaram com o consórcio de parceiros do LIFE Aegypius Return na condenação e repúdio de tais atos.
Os crimes contra espécies protegidas, independentemente das motivações, são condenáveis e devem ser os seus autores responsabilizados, para além de ser fundamental continuar a desenvolver esforços para prevenir e erradicar situações análogas.
Caracterizar o crime ambiental
A marcação de abutres-pretos com dispositivos de monitorização remota, no âmbito do projeto LIFE Aegypius Return, tem permitido obter informações mais concretas sobre o tipo de ameaças que estas aves enfrentam na Península Ibérica, bem como conhecer a hora e local exatos de acidentes e eventos criminais.
No entanto, não é possível marcar todos os abutres-pretos, e a informação recolhida pelas autoridades e pelos centros de recuperação para a fauna continua a ser essencial. A colaboração entre todas as entidades permite compreender e caracterizar o quadro de ameaça geral, que lamentavelmente continua a incluir crimes propositadamente dirigidos ao abutre-preto (e a outras espécies).
Abutres-pretos alvejados
O tiro está entre os crimes ambientais que afetam o abutre-preto. Conheça alguns dos casos mais recentes.
Mirante
O abutre-preto Mirante (nome atribuído em votação pública online) nasceu em 2023 na Herdade da Contenda. A 13 de julho desse ano foi marcado, no ninho, tendo recebido anilhas e um emissor GPS/GSM. Deixou o ninho a 15 de agosto desse ano e, durante o ano seguinte, permaneceu principalmente no noroeste da Andaluzia, tendo realizado ainda alguns voos de dispersão pelo Alentejo, ao longo da fronteira com Espanha até ao Douro Internacional, e em território espanhol, alcançando a região de Toledo.
Em setembro de 2024 foi detetada uma situação anómala nos dados do emissor, que motivou o alerta aos guardas da Junta de Andaluzia e buscas no terreno, que contaram também com a LPN (Liga para a Protecção da Natureza). Confirmou-se o pior. O cadáver do Mirante foi recolhido pelas autoridades e entregue para investigação no CAD (Centro de Análisis y Diagnóstico de la Fauna Silvestre), o laboratório de referência para estudar casos de mortalidade de fauna, do governo regional andaluz. A necrópsia confirmou o que os dados de monitorização remota já davam a entender: o Mirante foi alvejado, com tiro de espingarda, enquanto voava na região de Huelva, a cerca de 15km da fronteira com Portugal.
Bobadela
Em novembro passado, um abutre-preto juvenil foi vítima de tiro na Bobadela, em Loures. Não sendo este um território habitual para esta espécie, por vezes os juvenis (ou aves desorientadas, vítimas de envenenamento ou com sintomas neurológicos) fazem voos de dispersão algo longos, afastando-se do seu habitat. Por não se conseguirem alimentar, são muitas vezes encontrados muito débeis e exaustos, em zonas urbanas ou costeiras. É importante que as autoridades capturem estes abutres em situação de fragilidade, para que ingressem em centros de recuperação.
Todavia, a fragilidade também os torna alvos fáceis para a perseguição e o crime, e as autoridades nem sempre chegam a tempo. Foi o caso de um abutre-preto, cria de 2024, que foi encontrado ferido a tiro de espingarda na Bobadela, Loures, em novembro passado. Foi entregue no LxCRAS (Centro de Recuperação de Animais Silvestres de Lisboa) ainda com vida, mas infelizmente não resistiu aos ferimentos.
Pousio
O Pousio é a única cria conhecida da mais recente colónia, na Herdade do Monte da Ribeira, na Vidigueira. No final de janeiro, os funcionários da Herdade encontraram o Pousio no solo, com uma postura prostrada e comportamentos estranhos.
O ICNF (Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas) foi chamado e prontamente recolheu a ave, tendo-a entregado no LxCRAS. O diagnóstico foi atroz: o Pousio foi vítima de tiro de espingarda, pelas costas, enquanto estava pousado. A enorme quantidade de projéteis indica que o tiro foi feito de muito perto e, portanto, não deixa dúvidas quanto à sua intenção: 16 chumbos e fragmentos menores numa das patas, seis chumbos e fragmentos na outra, e ainda um chumbo alojado no músculo peitoral. As lesões obrigaram a várias intervenções médico-veterinárias, incluindo a remoção de uma unha. O Pousio encontra-se a recuperar, mas, ainda que venha a sobreviver, tem elevados níveis de chumbo no organismo, o que, junto com as lesões, poderá condicionar a sua qualidade de vida e capacidade de sobrevivência e reprodução.
Crime incompreensível
O abutre-preto é uma ave necrófaga obrigatória. Isto significa que se alimenta exclusivamente de animais mortos (principalmente ungulados silvestres e gado). Não é um predador, não tem impactos negativos na agricultura ou atividades humanas, nem coloca qualquer ameaça a pessoas ou animais – pelo contrário. Ao eliminar carcaças do meio natural, tem um papel essencial para a saúde humana e dos ecossistemas.
Se outrora o abutre-preto foi uma ave comum no nosso território, a perseguição, a perda de habitat, o veneno e outros fatores levaram à sua extinção como reprodutor na década de 1970. O seu regresso só foi possível quatro décadas depois, com o nascimento das primeiras crias no Tejo Internacional em 2010. O abate ou a perturbação deliberada de um abutre-preto é um crime incompreensível e injustificável, que contraria todos os esforços e investimentos que têm sido aplicados na sua recuperação.
A morte de cada abutre representa a sua perda individual, mas também impossibilita que seja gerada descendência, limitando o futuro da espécie.
Combate ao crime depende da cooperação
A perseguição da fauna constitui um crime ambiental. A punição destes casos depende de uma sólida investigação criminal, que se inicia com a deteção ou denúncia dos casos.
Um combate eficaz aos crimes contra a vida selvagem depende da colaboração de todos: autoridades, médicos veterinários, organizações não governamentais, mas também de todos os cidadãos, incluindo os caçadores. Denunciar crimes é fundamental! Se detetar ou suspeitar de práticas irregulares, denuncie pela linha SOS Ambiente e Território – 808 200 520 – ou através do site www.gnr.pt/ambiente.aspx . É um serviço disponível 24 horas por dia, durante todo o ano.
O ICNF ressalva a que subscrevem o presente comunicado e nota de repúdio, o conjunto de entidades que forma o consórcio do projeto LIFE Aegypius Return (parceiros: a Vulture Conservation Foundation (VCF), o beneficiário coordenador, e os parceiros locais Palombar – Conservação da Natureza e do Património Rural (com cofinanciamento da Viridia – Conservação em Ação), Herdade da Contenda, Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, Liga para a Protecção da Natureza, Associação Transumância e Natureza, Fundación Naturaleza y Hombre, Guarda Nacional Republicana e Associação Nacional de Proprietários Rurais Gestão Cinegética e Biodiversidade) em conjunto com as três OSC de 1.º nível, FENCAÇA, CNCP e ANPC.