Reportagem: Só há futuro se for verde
As vozes a favor de promover medidas de estímulo verdes alinhadas com os objetivos climáticos surgem de todos os lados. Governos, empresas, entidades financeiras, sociedade civil e juventude são os protagonistas de uma recuperação económica justa e sustentável.
A confeção de uma simples t-shirt é um problema de sustentabilidade e diz respeito aos Estado, empresas e consumidores de todo o mundo. Esta peça de roupa consome 2.700 litros de água (a mesma quantidade que um adulto bebe em dois anos de vida) em toda a cadeia de valor, pode percorrer milhares de quilómetros desde os campos de algodão até ao retalho final, com enormes emissões de dióxido de carbono, e passa por 100 pares de mãos.
Os trabalhadores das fábricas, sobretudo no Bangladesh ou no Vietname, ficam apenas com dois a três por cento do preço final do artigo – e trabalham longas horas extraordinárias sem qualquer ajuda na doença. E o que pode cada um de nós fazer para construir um futuro mais sustentável e ajudar a travar esta exploração?
Fazer compras conscientes tendo em conta a origem e os materiais utilizados é um passo. Mas não chega. É fundamental a ação de governos, empresas e instituições financeiras. Aliás, a via de uma recuperação verde tem sido defendida por alguns economistas internacionais, como Joseph Stiglitz [Nobel da Economia em 2001] e Nicholas Stern. “Devemos direcionar os gastos públicos para projetos verdes e intensivos em mão-de-obra, o que tem muito mais retorno do que cortes de impostos”, afirmou Stiglitz num artigo publicado no jornal The Guardian.
“Não devemos resgatar empresas que já estavam em declínio antes da crise; fazer isso apenas criaria ‘zombies’, limitando em última instância o dinamismo e o crescimento. Nem devemos resgatar empresas que já estavam demasiado endividadas para serem capazes de suportar qualquer choque”, continuou. Segundo o economista se os Estados investirem na economia verde, então iremos recuperar mais facilmente da crise causada pela pandemia.
Aliás, um estudo da co-autoria de Stiglitz, Stern, e outros economistas, publicado pela Oxford University em maio de 2020, revela que existe um consenso generalizado de que a recuperação económica pode, em simultâneo, criar trabalho e ter impactos ambientais positivos. Voltando ao exemplo da produção da t-shirt, visto que a indústria têxtil é a segunda mais poluente do mundo – fica apenas atrás da extração de petróleo -, toneladas de químicos, pesticidas e fertilizantes acabam dissolvidos em rios, lagos e afluentes. E como as constantes lavagens desgastam os tecidos, milhões de microfibras vão parar ao mar onde podem ser engolidas pelo peixe que consumimos em casa.
“Há várias frentes que têm de ser atacadas para se recuperar o planeta, mas acho que acima de tudo vai resumir- se a uma coisa: o sistema tem de mudar”, começa por dizer Sérgio Ribeiro, CEO do Planetiers World Gathering, o maior evento de sustentabilidade do mundo e que decorreu em outubro na Altice Arena, em Lisboa. “Mas não podemos cancelar tudo, desligar as coisas todas e começar um mundo novo, é preciso haver uma transição”, explica ao Green Savers. Um dos pontos que o empreendedor considera essencial para a recuperação verde é a criação de postos de trabalho ‘verdes’ e inclusivos. Isto porque, como o próprio defende, não se pode optar entre o meio de subsistência e fazer o bem pelo planeta, tem de existir uma união entre as duas partes.
É aí que entram os privados, “as empresas e as organizações têm a chave da mudança, mas não a podem fazer sozinhas”, acrescenta. Quanto ao papel dos governos nesta recuperação, Sérgio considera que são muito importantes. Têm de ser colocadas indicações na direção certa, fazer uma transição mais rápida e “retirar a carga fiscal de coisas que são importantes socialmente”. “Os governos têm de ter noção do processo e têm de acelerar um pouco mais a mudança, e ver onde é que está a ser investido o dinheiro para a recuperação sustentável”, aponta.
MUDANÇA
O contexto atual, em que o mundo está a viver um período pandémico devido à propagação da covid-19, é o momento ideal para se apostar numa recuperação verde, apoiada na conservação ambiental e nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Acima de tudo, deve apostar-se na descarbonização da economia, promovendo uma transição sustentável, inclusiva e resiliente para as gerações futuras. Francis Salema, jovem ativista do movimento da Greve Climática Estudantil ou “Fridays For Future”, deu o seu testemunho ao Green Savers e falou da importância do papel dos jovens no futuro do planeta.
“Eu diria que o papel dos jovens hoje em dia é incentivar as restantes gerações a fazerem alguma coisa pelo planeta, porque somos a geração que tem mais interesse em que haja um futuro sustentável”, começa por explicar, reforçando que o período que se vive atualmente é o indicado para fazer “a mudança que queremos ver no mundo”. Salema considera que as novas gerações estão num bom caminho relativamente à consciencialização da sustentabilidade, embora tenha de ocorrer uma mudança a nível estrutural. “Como estamos num sistema que continua a ser altamente insustentável, considero que as pessoas estão em perigo de ser enganadas pelos processos de Greenwashing que se vê a nível económico e político, produtos que dizem ser verdes e sustentáveis e que na verdade não são, ou políticas ambientais que são muito ambiciosas mas que depois se traduzem noutro tipo de projetos.”
Quanto à recuperação verde em Portugal, Francis Salema considera que os jovens têm um papel essencial no incentivo da mudança, mas que existe muito para alterar, como é o caso dos transportes públicos. Fora do centro de Lisboa, estes precisam notavelmente de um maior investimento, como o caso da rede ferroviária do país, cujo “projeto está demasiado debilitado”. Francis Salema sublinha ainda a necessidade de fazer uma transição energética, “com requalificação dos trabalhadores” e ainda “mais políticas para evitar o Greenwashing” “Há muitas coisas que temos de fazer realmente para que o nosso mundo seja um pouco mais verde. E somos aqueles que estão mais informados no sentido de fazer essa mudança, portanto temos de incentivar a trazer mais pessoas para esta luta”, conclui a jovem ambientalista.
PACTO ECOLÓGICO
A cada ano que passa, a atmosfera fica mais quente e o clima muda um pouco mais. Dos oito milhões de espécies que habitam o planeta, um milhão corre o risco de extinção. As florestas e os oceanos estão a ser poluídos e destruídos. O Pacto Ecológico Europeu é uma resposta a estes desafios. Trata-se de uma nova estratégia de crescimento que visa transformar a UE numa sociedade equitativa e próspera, dotada de uma economia moderna, eficiente na utilização dos recursos e competitiva, que, em 2050, tenha zero emissões líquidas de gases com efeito de estufa e em que o crescimento económico esteja dissociado da utilização dos recursos.
O pacto pretende igualmente proteger, conservar e reforçar o capital natural da UE e proteger a saúde e o bem-estar dos cidadãos contra riscos e impactos relacionados com o ambiente. Ao mesmo tempo, esta transição deve ser equitativa e inclusiva. Deve dar prioridade às pessoas e prestar atenção às regiões, às indústrias e aos trabalhadores que enfrentarão os maiores desafios. Tendo em conta as mudanças substanciais que acarretará, esta transição deve contar com a participação ativa e a confiança do público, fatores fundamentais para o êxito e a aceitação das políticas.
É necessário um novo pacto que reúna os cidadãos, em toda a sua diversidade, com as autoridades nacionais, regionais e locais, a sociedade civil e a indústria, trabalhando em estreita colaboração com as instituições e os órgãos consultivos da UE. Para concretizar o Pacto Ecológico Europeu, segundo a UE, é preciso repensar as políticas com vista a um aprovisionamento energético limpo transversal a toda a economia: indústria, produção e consumo, grandes infraestruturas, transportes, alimentação e agricultura, construção, política fiscal e prestações sociais.
Neste âmbito, o Green Savers ouviu também John Elkington, fundador da Volans [empresa de consultoria ambiental] e também conhecido como “o pai da sustentabilidade” – foi ele o primeiro a defender a ideia de que o ambiente deve ser igualmente visto numa perspetiva social e económica. O especialista apresentou alguns aspetos relativamente à regeneração do sistema.
Elkington considera que a pandemia veio acordar as pessoas e as empresas para a mudança, e que se começa a ter mais consciência acerca da sustentabilidade, optando por criar novos compromissos para um futuro mais verde. “Veio dar um boost, um impacto massivo no mundo. Os governos devem agir, especialmente os que têm beneficiado dos combustíveis fósseis, e aceitar a mudança”, afirma.
O especialista aponta como necessária uma alteração no sistema, deixando de existir o foco nos retornos financeiros, e passando a existir um sistema de valor, em que as empresas contribuem para a sociedade e para o seu progresso, vendo o negócio, a sociedade e o ambiente como um todo.
PORTUGAL
Por cá, o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, apontou recentemente a mobilidade elétrica como grande aposta ambiental do Governo para a próxima década, para reduzir as emissões carbónicas, defendendo que “não é por decreto que se vai lá, mas com vontade” das pessoas. A mobilidade é assim um dos dois setores onde terá de haver maior redução das emissões de dióxido de carbono (CO2), “sendo responsável por cerca de 25% das emissões em Portugal, pois queremos chegar a 2030 com um terço de mobilidade elétrica”, disse.
O ministro afirmou que o Governo não pretende deixar “esta importante questão para a última década do compromisso que Portugal assumiu para a redução das emissões de CO2, ou seja, até 2050”. “Daqui até 2050 faltam três décadas. A época mais exigente é esta, 2020/2030 e queremos chegar a 2030 com um terço da mobilidade elétrica no país”, apontou o titular da pasta do Ambiente.
O Governo garante que a recuperação económica na sequência da crise provocada pela covid-19 não coloca em causa as metas ambientais e que a urgência no combate às alterações climáticas se mantém. Entre os desafios propostos estão a descarbonização da economia, o uso eficiente de recursos, apostando na economia circular e na bioeconomia, a resiliência das infraestruturas, a modernização e transformação digital de setores económicos estratégicos, a preservação da biodiversidade e eliminação da poluição, e a valorização do capital natural.
No mesmo sentido, mais de 60 empresas assinaram o manifesto “aproveitar a crise para lançar um novo paradigma de desenvolvimento sustentável”, promovido pelo Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável (BCSD na sigla em inglês). Entre as 64 signatárias do manifesto estão mais de metade das empresas do PSI20 que defendem que a solução para a crise causada pela pandemia passa também por promover uma transformação do modelo de desenvolvimento – Altice Portugal, Altri, Brisa, Cimpor, CTT, EDP, Efacec, Galp, Jerónimo Martins, NOS, REN, Sonae e Navigator são algumas delas.
“Porque as crises constituem oportunidades ímpares para repensarmos o nosso futuro, o BCSD Portugal e os seus associados acreditam que este é o momento para lançar novas bases para um crescimento mais inclusivo, sustentável e, de um modo geral, para construir um novo modelo de partilha de valor com a sociedade e as futuras gerações”, destacou João Wengorovius Meneses, secretário-geral do BCSD Portugal.
As empresas signatárias pretendem contribuir para a construção de um modelo de desenvolvimento baseado em cinco princípios: promoção do desenvolvimento sustentável e inclusivo, promoção do crescimento, busca da eficiência, reforço da resiliência e reforço da cidadania corporativa. Já as organizações ambientalistas portuguesas defenderam que a União Europeia tem de atingir a neutralidade carbónica em 2040, dez anos antes da meta definida pela Comissão Europeia.
A Zero, GEOTA, LPN e Quercus consideram que uma “lei climática europeia forte e ambiciosa” deve ser uma das prioridades de Portugal na presidência do Conselho da União Europeia, que assumirá no primeiro semestre de 2021. Nos compromissos ambientais europeus deve também estar a “redução de emissões de gases de efeito de estufa para pelo menos 65%”, a eficiência energética de pelo menos 45% e metade da energia consumida deve vir de fontes renováveis já em 2030.
Para as quatro associações, é preciso que o próximo orçamento da União Europeia, que financia as suas instituições, eleja o Pacto Ecológico Europeu (assumido em 2019) como medida de recuperação dos países no contexto da crise provocada pela pandemia.