Helena Freitas: Conservar a Laurissilva “é um imperativo de sobrevivência”
É uma das biólogas mais conceituadas da Europa. Venceu o prémio Ernst Haeckel 2024, promovido pela European Ecological Federation (EEF). É professora catedrática e investigadora da Universidade de Coimbra na área da Biodiversidade e é também Diretora do Parque de Serralves. Devido ao flagelo do incêndio na Madeira, a investigadora diz que devia ser criado um Instituto Interdisciplinar da Laurissilva e explicou à Green Savers como este deveria ser. Com o desaparecimento da Laurissilva a ilha terá um clima mais inóspito, os solos ficarão mais pobres, haverá menos água e um maior risco de derrocadas e cheias.
Uma das grandes questões relativamente ao incêndio da Madeira é a destruição da biodiversidade da ilha. Segundo a Quercus o incêndio do Pico Ruivo deve ter extinguido algumas espécies únicas no mundo. Ainda há esperança?
Haverá certamente perdas para a biodiversidade, mas não posso afirmar que houve extinção de espécies sem uma validação que terá necessariamente que ter em conta a informação de base a que reportamos. Quais as espécies? O que se pode dizer é que tornamos os habitats mais vulneráveis e isso pode de facto afetar as populações e as espécies, mas é preciso verificar a extensão dos impactos. É extemporâneo falar em extinção de espécies.
A floresta Laurissilva é património da humanidade. É fundamental haver um objetivo de conservação. O que é preciso ser feito, ou seja, como se pode precaver no futuro um acontecimento desta natureza, uma vez que na ilha da Madeira devido à sua orografia, ventos e alterações climáticas já aconteceu no passado…
A conservação da Laurissilva é fundamental. É claro que a Madeira tem outros habitats relevantes além da Laurissilva (como os que integram a rede Natura 2000) e seria importante pensar em conjunto o reforço das ações de conservação. É verdade que os riscos (incêndio, cheias) serão cada vez mais significativos, em particular tendo em conta as alterações climáticas, a expansão de infestantes e a pressão de diversas atividades humanas, mas essa perspetiva obriga-nos a atuar de forma mais organizada e inteligente. O planeamento é essencial e a Madeira tem que se preparar. No plano da prevenção dos incêndios florestais, há hoje mais competência técnica e capacidade para ordenar o espaço florestal para uma intervenção eficaz. Por outro lado, a tecnologia hoje pode ajudar a antecipar situações críticas, recorrendo à utilização de sensores e a uma vigilância tecnológica robusta. Podem evitar-se práticas de risco —não se compreende que se permita o uso de fogo nas festas de verão. Tem que se envolver a comunidade no esforço de prevenção, via literacia e capacitação.
As consequências dos incêndios de 2010, 2012 e 2016 foram causadas por mão humana, contudo as alterações climáticas não têm ajudado os ecossistemas a recuperar…
Os ecossistemas têm muita dificuldade em recuperar por várias razões: a Laurissilva não está preparada para o fogo e no geral quando se perde não tem capacidade de recuperação — muito menos quando grande parte das áreas ardidas tem a sua envolvente dominada por espécies invasoras de crescimento rápido que rapidamente tomam conta das áreas degradadas. Perante temperaturas mais elevadas e baixa humidade, é a própria perda da floresta que contribui para agravar estas condições. Por outro lado, há viveiros de plantas nativas e recursos humanos preparados para colaborar no restauro ativo da floresta.
Qual o papel da floresta Laurissilva — além da parte turística, o seu desaparecimento deve implicar para o equilíbrio na ilha da Madeira… Como e quais as consequências do seu desaparecimento?
O desaparecimento da Laurissilva na ilha da Madeira, o coração do coberto vegetal da ilha, terá consequência muito graves. A ilha terá um clima mais inóspito, os solos ficarão mais pobres, o que significará menos água e menor capacidade de retenção de solo fértil. Teremos uma maior dependência alimentar do exterior, um maior risco de derrocadas e cheias, uma alteração hídrica com implicações no clima regional e local, e uma perda do maior ativo turístico da ilha. Julgo que os madeirenses terão ainda o impacte psicológico desta destruição e da incapacidade em garantir este legado único para as gerações futuras — desde logo dos naturais da ilha!
Há espécies vegetais que podem desaparecer — quais as mais ameaçadas, mas também animais, quais?
Há espécies animais e vegetais que podem desaparecer, mas esse estudo tem que ser feito. Podemos ter espécies que não sobrevivem porque o número de efetivos populacionais não permite, caso das aves marinhas e plantas que não toleram o aumento de temperatura ou a menor disponibilidade hídrica (neste caso, árvores). Teremos também fauna do solo a perder habitat, mas esta avaliação não pode ser feita sem estudos orientados e rigorosos.
Quantos anos serão precisos para recuperar estes ecossistemas?
Gostava de lhe dizer, mas não sei. No caso da Laurissilva estamos a falar de uma floresta com milhões de anos de evolução — que significado pode ter neste caso uma recuperação? O que temos obrigação é de proteger o que é cada vez mais frágil
Algo mais que considere importante para esclarecer a opinião pública.
Penso que conservar a Laurissilva é um imperativo de sobrevivência. Esta Missão Laurissilva deve contemplar três eixos:
1 – Planeamento da prevenção contra os riscos de incêndio e cheias, um trabalho que deve ser desenvolvido em colaboração com as entidades nacionais, envolvendo técnicos desta área, bombeiros, proteção civil e autoridades florestais regionais, capacitando a intervenção regional;
- Uma atuação pedagógica junto das comunidades e dos cidadãos, envolvendo-os no conhecimento do território e atribuindo um papel mais ativo/comprometido na prevenção e controlo dos riscos;
- Um programa de biodiversidade.
Como seria esse programa de biodiversidade? Fala da criação de um Instituto Interdisciplinar da Laurissilva…
Devia ser criado um Instituto Interdisciplinar da Laurissilva, integrando investigação, conservação, educação e o envolvimento da comunidade. Este instituto serviria como um centro para investigadores, conservacionistas, educadores e o público colaborarem na proteção e estudo da floresta Laurissilva. Este Instituto Interdisciplinar da Laurissilva não só promoveria a investigação e a conservação da Laurissilva, mas também serviria de modelo para a forma como as modernas instalações de investigação podem integrar-se harmoniosamente e apoiar os ecossistemas em estudo.
O instituto deve estar situado na orla da floresta Laurissilva, com fácil acesso às principais áreas de investigação. Idealmente, seria construído perto de uma pequena comunidade sustentável, promovendo o envolvimento local.
O projeto do edifício incorporaria materiais sustentáveis, como madeira e pedra de origem local, com uma pegada de baixo impacto. A arquitetura seria inspirada na própria Laurissilva, utilizando formas orgânicas, grandes janelas com vistas para a floresta, além de jardins internos que criam uma transição perfeita entre o ambiente construído e a natureza.
No Centro de Investigação em Biodiversidade, haveria um Laboratório de Genómica, equipado com tecnologias de sequenciação de última geração para DNA, genética populacional e microbioma, e um Laboratório de Ecologia, para estudar interações planta-animal, fenologia e gestão de espécies invasoras. O Laboratório SIG contaria com ferramentas avançadas LIDAR, análise de imagens de satélite e modelação ecológica para monitorizar a floresta e os impactos climáticos. Em termos de conservação e restauro, o Banco de Sementes e Viveiro teria instalações para a conservação ex situ, com sementes e plantas para futuros projetos de restauro, enquanto a unidade de rewilding se focaria na reintrodução de espécies nativas e na realização de experiências sobre migração assistida em resposta às alterações climáticas.
A Unidade de Controlo de Espécies Invasoras seria dedicada ao desenvolvimento e teste de métodos de gestão de espécies invasoras, utilizando abordagens genéticas e ecológicas, enquanto o Laboratório de Clima desenvolveria modelos preditivos de impactos climáticos na Laurissilva e identificaria áreas vulneráveis.
Já a Unidade de Fenologia e Monitorização seria equipada com sistemas de monitorização automatizados e bases de dados para acompanhar as alterações ecológicas a longo prazo. O Centro de Visitantes e Educação para a Sustentabilidade incluiria espaços para programas educativos focados em conservação, ecologia e conhecimentos tradicionais, além de um auditório para palestras públicas, conferências científicas e eventos culturais que conectem a comunidade com o trabalho do instituto.
O Arquivo do Conhecimento Tradicional funcionaria como um repositório para documentar e preservar o conhecimento local relacionado com a Laurissilva, incluindo plantas medicinais e práticas sustentáveis, valorizando a etnobotânica através da investigação dos usos tradicionais das espécies da Laurissilva. O instituto também ofereceria Programas de Residência, com alojamento no local para investigadores, artistas e escritores visitantes envolvidos em projetos relacionados com a Laurissilva, fomentando a inovação interdisciplinar.
O Centro de Ciência Cidadã e Envolvimento Público contaria com um laboratório de ciência cidadã e bases de dados de acesso público. No domínio da sustentabilidade e sistemas energéticos, o projeto abrangeria conservação da água, gestão de resíduos, transporte sustentável, e conectividade digital e global, incluindo repositórios de pesquisa de acesso aberto.