Olhos no céu postos na Terra: A tecnologia espacial ao serviço da proteção do planeta



Quando pensamos em tecnologias do Espaço, a primeira imagem que vem à mente de muitos será, certamente, a imensidão negra que se estende a toda a volta do nosso pequeno planeta azul, um sem fim de possibilidades e de mistérios. Mas é também a partir do Espaço que se pode olhar para a Terra, vê-la no seu conjunto como um sistema praticamente fechado: uma “redoma de vidro” dinâmica, frágil e repleta de vida.

As batalhas pela proteção do planeta – contra as alterações climáticas, a perda de biodiversidade e a poluição – tendem a ser vistas como sendo travadas com os pés bem assentes na terra, mas cada vez mais essa luta está a ser reforçada com dados recolhidos a muitos quilómetros acima das nossas cabeças.

A primeira fotografia da Terra vista desde o Espaço data de 24 de outubro de 1946, tirada por uma câmara instalada num míssil que chegou aos 104 quilómetros de altitude, onde, segundo consenso científico, o nosso planeta acaba e começa a grande vastidão para lá dele. Desde então, passámos a perceber que olhar para a Terra de cima (como se fôssemos visitantes de um outro mundo) permite ver o que, cá em baixo, não conseguimos: a nossa casa comum como um todo indivisível.

Reconhecendo que uma compreensão da Terra como um só sistema único é fundamental para que se possa realmente perceber o que está a acontecer num planeta em transformação – acelerada pela ação humana –, nasceram os programas de observação da Terra. Essas iniciativas, inseridas no âmbito de entidades responsáveis pela investigação e economia espaciais, como a Agência Espacial Europeia (ESA), a NASA e a Agência Espacial Portuguesa (AEP), pretendem recolher informações sobre uma miríade de aspetos do nosso planeta, como a qualidade do ar, a ocupação dos solos, a saúde dos oceanos, a poluição atmosférica e a cobertura florestal.

Carolina Sá conta-nos, em entrevista, que as observações da Terra a partir do Espaço devem ser entendidas como complementares aos dados que são recolhidos diretamente à superfície. Ou seja, os satélites devem ser complementados com outros métodos de observações e de medição.

Carolina Sá, responsável dos programas de Observação da Terra da Agência Espacial Portuguesa (AEP).

A responsável dos programas de Observação da Terra da AEP explica que, cá em baixo, “podemos medir uma árvore, uma floresta, podemos fotografar”, mas, sendo a Terra um sistema em si mesma, não se consegue ter uma imagem do conjunto total. “O satélite dá-nos essa visão global”, aponta, acrescentando que, por estarem continuamente a percorrer a órbita do planeta, é possível recolher dados da mesma forma em vários locais, o que permite fazer comparações cientificamente válidas e coerentes.

Além disso, os satélites conseguem, sem interferir, ter acesso a regiões e lugares remotos e praticamente inacessíveis que nós não conseguimos alcançar, ou que só com muita dificuldade e, por vezes, com riscos ambientais e ecológicos o conseguiríamos fazer. E essas tecnologias orbitais permitem uma recolha de dados contínua, algo que dificilmente se conseguiria fazer em terra.

“Podemos ter a escala local, regional, nacional, continental e global. O satélite dá-nos essa escala”, salienta Carolina Sá, para quem o estudo do clima, e das alterações que tem vindo a sofrer, exige dados contínuos e multi-escala ao longo do tempo, para ser possível construir algo como uma história climática e ambiental do nosso planeta. Só assim conseguimos perceber o que mudou, quando e onde, e até, porventura, porquê e com que consequências.

Olhar a Terra a partir do Espaço

A observação espacial da Terra é feita com recurso a satélites que orbitam a Terra e que estão equipados com uma série de dispositivos que permitem, precisamente, recolher dados muito variados.

Num texto publicado no seu portal online em março de 2021, a ESA escrevia que “os satélites de Observação da Terra fornecem informação preciosa sobre diversas variáveis geofísicas com regularidade, de forma fiável e para todas as partes da Terra”.

Nesse mesmo ano, a agência das Nações Unidas para as tecnologias digitais, a ITU, apontava que as capacidades de observação da Terra a partir do Espaço “melhoraram significativamente desde que os primeiros satélites meteorológicos foram lançados no início dos anos 60”. Nos dias de hoje, a crescente constelação de satélites orbitais que têm os seus “olhos” postos no nosso planeta fornecem observações cada vez mais precisas e são já peças centrais dos modelos de previsão meteorológica e climática, permitindo também avaliar o estado do ambiente e os impactos das atividades humanas.

E, num planeta assolado por crises, os programas de observação da Terra permitem monitorizar desastres, melhorar o conhecimento, a monitorização e a previsão das alterações climáticas e dos seus impactos, bem como manter um olhar atento sobre as emissões antropogénicas, algo que é crucial para cumprir os desígnios do Acordo Climático de Paris, de 2015, e tentar evitar um aquecimento do planeta acima de limites para além dos quais nada de bom nos espera.

Embora a tecnologia de observação esteja em constante desenvolvimento para permitir ver coisas que ainda não se conseguem ver, Carolina Sá diz que “há muitas outras que já se conseguem observar”. Entre elas, “as variações da ocupação do solo”, alterações das cores em terra e no mar que podem, respetivamente, indicar transformações da cobertura vegetal ou a presença de partículas em suspensão na água que estão a alterar as suas propriedades óticas, algo que pode ser observado a partir do Espaço.

O satélite Sentinel-2 acompanhou a evolução dos incêndios que fustigaram a Ilha da Madeira em agosto de 2024. Imagem à esquerda captada a 15 de agosto e à direita a dia 20. © ESA/Copernicus

Os satélites de observação da Terra estão equipados com vários sensores acoplados que são capazes de “ver” várias bandas do espetro eletromagnético, ou seja, podem captar vários tipos de luz. É como se mudássemos de óculos: quando está muito sol pomos os óculos escuros, mas com menos luminosidade tiramo-los ou trocamo-los por óculos com lentes transparentes.

O objeto de estudo pode ser a própria atmosfera, mas pode também ser o que se está a passar à superfície, pelo que a atmosfera, carregada de partículas energéticas, torna-se uma “interferência”, diz Carolina Sá.

“Mas há zonas da atmosfera em que ela é ‘transparente’”, aponta, ou seja, áreas em que a visão dos satélites consegue atravessá-la e chegar cá abaixo. São o que os cientistas chamam de “janelas atmosféricas”.

Além disso, os sensores, como podem usar vários comprimentos de onda, conseguem também ver através das nuvens, por exemplo recorrendo a micro-ondas.

Existem diferentes tipos de sensores para observar a Terra, como os óticos, que “são normalmente sensores passivos que dependem da interação do alvo com a luz solar para recolher informação”, tal como os nossos olhos humanos, e os radares, que, como os golfinhos ou os morcegos, “emitem sinais e é da diferença da chegada do sinal que retiram a informação”.

“Dependendo do que queremos observar, temos de ver as características que temos e definir qual o melhor sensor que permite observar o que queremos”, afirma Carolina Sá.

Há satélites que têm mais do que um tipo de sensor a bordo, mas há aqueles que são mais “especializados” e que têm apenas um. Em 2002, foi lançado pela ESA na atmosfera aquele que é considerado o maior satélite civil de observação da Terra construído até hoje. Tão grande quanto um autocarro e pensando oito toneladas, o ENVISAT tinha 10 instrumentos que permitiam recolher vários tipos de dados ao mesmo tempo. Esteve dez anos em órbita, após o que se perdeu totalmente o contacto com o aparelho.

“Era complicado de gerir e, hoje em dia, o que há são famílias de satélites que estão a olhar para coisas específicas”, diz-nos a cientista portuguesa da AEP. Essa é a linha seguida pelo Copernicus, o programa de observação da Terra da Comissão Europeia, que se apoia numa rede de satélites especializados, os Sentinel, sendo que o primeiro, o Sentinel-1A, foi lançado em órbita em 2014. O objetivo é ter uma constelação com 20 satélites até 2030.

“Temos a família dos óticos, temos a família das micro-ondas, e uns estão a olhar para o oceano, outros para a superfície terrestre e outros para a atmosfera”, detalha Carolina Sá. “É do conjunto dessas famílias todas que se tem essa visão integrada do planeta”, salienta.

Os dados recolhidos pelos satélites do Copernicus, programa público financiado por todos os contribuintes europeus, estão disponíveis gratuitamente para qualquer pessoa interessada em qualquer parte do mundo.

A par disso, o Copernicus dispõe de um conjunto de seis serviços, que fornecem análises dos dados obtidos: monitorização da atmosfera, alterações climáticas, meio marinho, meio terrestre, emergências e segurança. Por já serem tratados e integrados com outros tipos de dados, são serviços “de valor acrescentado” e “já fornecem informação ao utilizador final, não é preciso ser um especialista em observação da Terra para poder usar esses dados”, diz-nos Carolina Sá.

A Agência Espacial Portuguesa

Fundada em 2019, a Agência Espacial Portuguesa (AEP) foi criada para definir e implementar a estratégia nacional relativa à presença do país no crescente mundo de tudo o que está relacionado com o Espaço, desde o conhecimento científico à economia, passando pelas políticas públicas e pelas questões da defesa e, claro, do ambiente e clima.

A AEP não tem satélites próprios, estando inserida no universo dos satélites da ESA, e tem como objetivo “aumentar a utilização destes dados de satélite, a sua adoção pelas diferentes entidades, para facilitar o seu trabalho”, diz Carolina Sá. E exemplifica que, no caso de uma agência de Ambiente, “pode integrar-se os dados de satélite no trabalho que está a ser feito, e há coisas que precisam mesmo de dados de satélite e não podem ser feitas de outra forma”.

Assim, a AEP, a par de outras entidades como a Direção-Geral do Território e o Instituto Hidrográfico (da Marinha Portuguesa), procura fazer chegar aos gestores do Copernicus as necessidades nacionais relativamente a dados de satélite e “tentar direcionar o programa para essas necessidades”, uma vez que “o programa é user-driven, responde às necessidades dos utilizadores”, explica Carolina Sá.

FOTO 4: Península ibérica e parte do norte de África, em imagem captada pelo satélite Sentinel-3A em 2016. © ESA

Além disso, a agência está também presente em todas as instituições nas quais Portugal tem assento e investimentos na área do Espaço, como a ESA, a Comissão Europeia e o Observatório Europeu do Sul (ESO).

“O propósito é termos uma visão integrada de todas estas instituições e podermos, estrategicamente, alinhar a nível nacional como podemos lá chegar e como é que podemos melhor beneficiar de todos estes programas”, sublinha a responsável.

Além de ser a voz de Portugal em todos esses fóruns espaciais, a AEP tem também como missão promover o conhecimento e uso de dados de observação da Terra dentro de portas. Exemplo disso é a iniciativa “Observação da Terra para os Municípios”. Iniciada em novembro de 2023 e com fim previsto para março deste ano, com sessão no Algarve, “temos ido a todas as regiões explicar o que é a observação da Terra e o programa Copernicus, quais os serviços disponíveis, como podem ser utilizados e dar exemplos da aplicação desses serviços”.

Depois de recolhidas as necessidades dos municípios, a AEP irá convocar empresas para que desenvolvam soluções com base em dados da observação da Terra, para poderem ajudar os municípios a tirarem o melhor proveito dessas ferramentas.

E o Espaço não se resume a Ciência e investigação. Tem também uma importante vertente económica, razão pela qual a AEP tem também na sua cartilha de propósitos “fazer crescer o ecossistema Espaço em Portugal”, ligando-o a vários setores e mercados que não fazem parte desse universo.

Aliás, a cooperação entre os setores público e privado é essencial, desde logo porque os satélites do Copernicus têm uma capacidade de ampliação de até 10 metros, ao passo que alguns satélites comerciais conseguem chegar aos centímetros. A aliança entre os dois setores revela-se crucial para reforçar as capacidades de observação da Terra por parte dos programas públicos e para colocar as soluções comerciais ao serviço das populações, Estados e organizações para uma melhor compreensão e proteção do nosso mundo.

Observar lá em cima para proteger cá em baixo

No contexto europeu, existe já uma série de diretivas de cunho ambiental, ou que tocam nessa área, que estão cada vez mais a reconhecer a importância de dados sobre a Terra recolhidos por satélites para avaliar os seus resultados, para monitorizar o seu cumprimento e para aprimorar os seus objetivos.

Por exemplo, para que a União Europeia possa alcançar a neutralidade carbónica até 2050 “precisamos de ver se estamos a ir no caminho certo”, aponta Carolina Sá, e a ajuda dos satélites é fundamental, ainda que essa monitorização deva ser acompanhada por outros tipos de medições.

A cientista portuguesa recorda que a UE tem atualmente em curso o projeto “Destination Earth”, que pretende criar um “gémeo virtual” da Terra para que se possam construir modelos de previsão climática e testar múltiplos cenários possíveis. Com essa Terra digital, será possível calcular que efeitos a alteração de uma qualquer variável – aumento da temperatura média global, seca, perda de determinado habitat ou bioma – poderá ter no conjunto do planeta como um todo.

“Para isso, os dados de satélite são essenciais para ajudar a montar este ‘planeta digital’”, porque permitem uma visão global, contínua e a longo-prazo, afirma, detalhando que essa Terra digital permitirá, por exemplo, perceber até onde têm de ir as reduções de emissões de gases com efeito de estufa para ser possível manter os objetivos da ação climática mundial.

Recordando que há sensores para observação da Terra desde as décadas de 1970/1980 em órbita, Carolina Sá diz que “já temos uma série temporal de dados muito longa que nos permite fazer uma análise de impacto climático ou sobre como estão a evoluir os ecossistemas”.

A observação da Terra em Portugal

O programa de Observação da Terra em Portugal arrancou em 2019, com a criação da AEP, e são já vários os exemplos de como os dados de satélites sobre a Terra estão a ajudar a aprofundar o conhecimento sobre o que se passa à superfície da área nacional.

O serviço de monitorização da atmosfera, do programa Copernicus, acompanhou os fogos que atingiram a região norte de Portugal em setembro de 2024. O fumo e as partículas geradas pelos fogos impactaram grandemente a qualidade do ar na região. © União Europeia, imagem do Sentinel-3

O Sistema de Monitorização de Ocupação do Solo, da Direção-Geral do Território, já recorre a dados de satélite para desenvolver produtos e visualizadores que permitem contribuir para o ordenamento do território, para a sustentabilidade agrícola, para a monitorização da floresta e de recursos hídricos, para a conservação da Natureza e serviços de ecossistema, para ajudar nos esforços de proteção civil e para impulsionar a investigação científica e académica.

Também o Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) usa dados de satélites “para monitorizar as colheitas para o pagamento de subsídios”, diz-nos Carolina Sá, algo que é já aplicado às culturas de tomate e arroz. Com os planos para que o Copernicus passe a ter um satélite capaz de ver nos diferentes comprimentos de onda, “provavelmente ajudará a distinguir colheitas com maior precisão”, ampliando o leque de uso desses instrumentos a outros tipos de culturas agrícolas.

Carolina Sá revela-nos que a AEP está a trabalhar com a Agência Portuguesa do Ambiente para que essa entidade possa passar a usar dados do Copernicus para reforçar a monitorização da qualidade do ar em Portugal, de forma mais eficiente e mais rápida.

A observação da Terra é também já usada para detetar zonas de cheias e inundações, para identificar zonas de maior vulnerabilidade, por exemplo, a incêndios para uma melhor prevenção e para identificar áreas afetadas por catástrofes e ajudar nos planos de recuperação.

E mesmo na área dos seguros os dados de satélite estão a ter cada vez mais relevância, à medida que as seguradoras desbravam o caminho dos riscos climáticos.

Há, contudo, ainda algumas arestas a limar, como a redução do tempo que demora entre o pedido de dados de satélite feito por uma entidade e o recebimento de informação que permita atuar atempadamente.

“É nessa área que se está a trabalhar mais, tanto a nível europeu como nacional”, assegura Carolina Sá. “O tempo que demora a chegar uma imagem pode ser 24 horas, o que pode já não ser em tempo útil para reagir ao que está a acontecer”, aponta.

Os mares, os oceanos e a costa

“O oceano é vasto e de difícil acesso, pelo que o Espaço é realmente um dos meios mais eficazes para monitorizar”, explica Carolina Sá, ela própria oriunda da área das ciências marinhas, onde ganhou o fascínio pela deteção remota por satélite das mudanças na cor do oceano provocadas por explosões de algas microscópicas, o chamado fitoplâncton.

Sobrevoando o Mar de Barents, no Oceano Ártico, em agosto de 2024, o satélite Sentinel-3 detetou um “bloom” de algas, que alterou a cor normal do mar. © União Europeia, imagem do Sentinel-3

No entanto, e porque a observação da Terra desde o Espaço não permite, muitas vezes, grandes ampliações, “não nos dá a profundidade, dá-nos a superfície”, mas, ainda assim, sustenta a especialista, “a superfície é muitas vezes reflexo daquilo que está a acontecer em profundidade”.

A Agência Europeia de Segurança Marítima (EMSA), que tem sede no Cais do Sodré, em Lisboa, também “usa diariamente imagens de satélite para monitorizar o oceano e para avaliar incidentes de poluição, derrames de petróleo”, sendo que, quando situações dessas são detetadas, “os países são logo avisados”.

Derrame de petróleo em fevereiro de 2022, ao largo da costa do Peru, depois de mais de 10 mil barris de crude terem vertido no Pacífico na sequência do tsunami causado pela erupção do vulcão Tonga. © União Europeia, imagem do Sentinel-2

Carolina Sá diz que na Ilha de Santa Maria, nos Açores, onde a AEP tem a sua sede, têm uma antena ligada ao Sentinel-1, dedicado à monitorização terrestre e marinha e na gestão de emergências (como cheias, terramotos, deslizamentos de terras e atividade vulcânica), que permite “recolha de dados em tempo real” e “um tempo de reação de cerca de 20 minutos, entre ter a imagem e dar o alerta”.

Outra das frentes em que os dados de satélite podem ser importantes está relacionada com a erosão costeira, um fenómeno também associado à subida do nível do mar provocado pelo aquecimento global. “Ajudam a identificar erosões da zona costeira e áreas de risco”, explica-nos a cientista, dados que permitem ajustar, por exemplo, planos de urbanização e desenvolvimento.

Do mesmo modo, a partir dos satélites podemos ver partes do oceano com grandes manchas de algas, que, por alterarem a cor “normal” da água, são vistas do Espaço. Essa produtividade invulgar pode ter sido causada por algum escoamento poluente, como os que correm de explorações agrícolas, vertendo no mar grandes quantidades de nutrientes que provocam a proliferação de algas (eutrofização), algo que pode ser muito prejudicial para os ecossistemas marinhos.

A atmosfera

Os satélites que observam a Terra permitem, igualmente, detetar grandes quantidades de poeiras que atravessam vários países embaladas pelas forças atmosféricas, como aconteceu em dezembro passado quando uma grande nuvem oriunda do Norte de África atingiu as regiões sul e centro de Portugal, comprometendo a qualidade do ar. Ou a nuvem de poeira e areia que cobriu Cabo Verde em maio de 2018.

Areia e poeira são sopradas do Deserto do Sahara sobre as Canárias, em dezembro de 2024. © União Europeia, imagem do Sentinel-2

Além desses fenómenos naturais, é também possível monitorizar os níveis de poluição atmosférica causada pelas atividades humanas. Carolina Sá lembra que o satélite Sentinel-5P, especializado na qualidade do ar e poluição, na monitorização da camada de ozono e das alterações climáticas, permitiu ver as diferenças nas “nuvens” de poluição antes, durante e depois dos confinamentos da pandemia de COVID-19, na Europa e em Portugal.

Embora, quando comparado com outros países e com a região mais vasta da UE, as emissões do país surjam como uma pequena “agulha” num grande “palheiro”, foi possível ver em Portugal a diminuição das nuvens de poluição durante os confinamentos, especialmente nas grandes cidades, como Lisboa e Porto.

A conservação da Natureza e a biodiversidade

A perda de biodiversidade é uma das três grandes crises planetárias dos nossos tempos, e também nesse campo os dados de satélites de observação da Terra podem ajudar. Sobretudo ao nível da análise e acompanhamento da evolução do estado dos habitats.

“Podemos analisar o habitat, a sua degradação, e a probabilidade de haver um habitat adequado para determinadas espécies, podemos monitorizar a desflorestação na Amazónia, conseguimos ver se está a haver conservação ou não”, explica Carolina Sá, acrescentando que pode até ser possível identificar espécies de árvores em manchas florestais.

Imagem captada pelo Sentinel-2, em dezembro de 2024, mostra o Parque Natural do Vale do Guadiana, habitat do lince-ibérico. As imagens de satélite ajudam a monitorizar o estado de importantes ecossistemas em todo o mundo e nos esforços de conservação da biodiversidade. © União Europeia, imagem do Sentinel-2

No mar, “podemos identificar zonas de grande produtividade primária”, ou seja, de pequenas algas que servem de base às teias tróficas, onde muito provavelmente se congregará um elevado número de animais marinhos. Nesses ecossistemas, os dados recolhidos por satélite podem também ajudar a definir e gerir áreas marinhas protegidas (AMP), e a detetar situações de atividades ilícitas nessas zonas.

Com o avanço das alterações climáticas, zonas marinhas (e também em terra) que hoje podem ter as condições ideias para determinadas espécies que se pretende conservar, no futuro podem deixar de tê-las. Através de dados da observação da Terra obtidos ao longo das últimas décadas, é possível analisar a evolução dessas áreas e tentar perceber como é que as alterações climáticas podem transformá-las. E mais: é possível prever que outras zonas poderão, mais tarde, reunir as melhores condições para essas espécies e que, por isso, devem ser já protegidas.

“É entender o que acontece ao longo do tempo e como é que fazemos essa preservação tendo em conta a evolução das condições ambientais”, observa Carolina Sá, avançando que a definição das AMP dos Açores já teve em conta dados fornecidos pelos satélites.

Além dos habitats, também é possível, através de dispositivos colocados em determinado animal, recolher dados sobre os seus movimentos ao longo do planeta (algo apoiado por satélites de navegação) e também sobre as condições ambientais dos locais que cruza. Articulando esses dados com os de satélite, será possível identificar as regiões com as melhores condições para essa espécie, o que pode ajudar na sua proteção.

Seca e falta de água

Outro dos grandes desafios dos nossos tempos é a crescente escassez de água potável. Um dos efeitos das alterações climáticas é a maior irregularidade do ciclo hídrico, nomeadamente, da chuva. Com menos chuva e uma pressão cada vez maior ao nível do consumo, a água disponível nos solos vai desaparecendo. Não é por acaso que estamos já a olhar para o mar como fonte de água doce.

Carolina Sá diz que também a partir do Espaço é possível analisar a quantidade e a qualidade da água existente à superfície e ainda detetar zonas de maior vulnerabilidade.

“Desde logo, é possível identificar onde há água, a quantidade de água disponível, e a sua qualidade”, aponta, detalhando que “a cor pode dar-me a indicação sobre se tem muita turbidez [podendo estar poluída], se tem algum ‘bloom’ de algas”. Por exemplo, em Portugal, a água da albufeira do Alqueva já é monitorizada com recurso a dados de satélite.

Para que se consiga fazer essas avaliações desde o Espaço, que são sempre complementares às medições no local, as massas de água têm de ter um tamanho considerável, uma vez que a resolução máxima dos satélites Copernicus é de 10 metros. Massas de água de pequenas dimensões não permitem análises muito precisas e detalhadas. Contudo, Carolina Sá está confiante de que “com a evolução da tecnologia e com o aumento do número de satélites no Espaço”, essa limitação poderá vir a ser ultrapassada.

Estas imagens, captadas pelo Sentinel-2 a 14 de junho de 2017 (à esquerda) e a 8 de junho de 2022 (à direita) mostram a redução da massa de água na barragem da Bravura, em Lagos, no Algarve. © União Europeia, imagem do Sentinel-2

Além disso, os satélites podem, inclusivamente, medir a quantidade de água nos solos e as suas perdas através da evapotranspiração, e a AEP está a participar num projeto europeu que visa perceber como é que esses dados recolhidos no Espaço podem ajudar a tornar a agricultura mais sustentável, com menos gastos de energia e de água, e até indicar que espécies ou colheitas são as mais adequadas para determinada área do país, tendo em conta as condições ambientais.

Influenciar políticas públicas

Dado o manancial de informação que é possível obter, os dados de satélites de observação da Terra podem ajudar a conceber, implementar e fazer o acompanhamento de políticas ambientais, mas também de outros tipos, como controlo de fronteiras e segurança, tráfego marítimo e prevenção e recuperação em contexto de desastres.

“A nível europeu, isso está a acontecer mais agora”, diz-nos Carolina Sá, com muitas diretivas e outros instrumentos legais a terem já dados de satélites na sua base. Mas é possível ir ainda mais longe, e esse trabalho está já a ser feito por impulso da Comissão Europeia.

Tendo o programa Copernicus já mais de uma década, “penso que já se atingiu uma maturidade e um grau de confiança” que permite o uso desses dados na governação local, nacional, regional e mesmo global. Contudo, a responsável considera que “há ainda, muitas vezes, uma falta de conhecimento dos decisores políticos sobre estas ferramentas”, daí a razão de ser de iniciativas como as que a AEP tem dinamizado para aproximar os municípios portugueses da Observação da Terra.

Contudo, nem sempre o calendário político e os ciclos mais morosos da Terra parecem ser compatíveis. “O problema das políticas públicas é que é preciso algum tempo para ver os seus impactos e os ciclos eleitorais não estão adequados a esse timing, e acabamos, muitas vezes, por nem ver o impacto dessas mesmas políticas”, explica.

Por isso, salienta a importância da Terra digital que a Comissão Europeia está a desenvolver, que permitirá, assim se espera, testar cenários hipotéticos e os impactos de determinadas políticas, de forma a poder ajustá-las o melhor possível tendo em vista os resultados que se quer alcançar.

Ao nível da adoção e uso dos dados de satélites de observação da Terra pelo poder local, como câmaras municipais, há desafios, desde logo a falta de recursos humanos que sejam capaz de aproveitar ao máximo esses dados. A AEP está também empenhada em ajudar essas entidades a fazerem uso dessas ferramentas para uma melhor gestão dos territórios e comunidades que têm a seu cargo.

Assim, os dados dos satélites “podem ajudar a monitorizar os impactos das suas atividades, a serem mais transparentes e a terem conhecimento sobre o seu território, com o que podem tomar melhores decisões”, afirma Carolina Sá, algo que se aplica ao poder local, mas também aos governos nacionais e regionais, bem como às entidades internacionais.

O setor espacial português está em crescimento

O número de empresas do setor espacial em Portugal, especialmente as que usam dados de satélites para criarem produtos e serviços, tem vindo a crescer significativamente ao longo dos últimos anos, diz Carolina Sá. E há, inclusivamente, programas, como os centros de incubação da Agência Espacial Europeia (ESA BIC), especificamente dirigidos para start-ups que pretendam fazer parte dessa área em crescimento.

A AEP tem também previsto um curso online para estudantes universitários, para dar a conhecer e formar no uso dos dados de satélites em diversas áreas de conhecimento. O objetivo é “garantir que os alunos das universidades, nas suas várias vertentes, têm conhecimento dessas ferramentas”, diz Carolina Sá, que considera que é algo que no Ensino Superior pode ser melhorado.

“Vejo a Terra! É linda!”. Estas foram as palavras usadas em 1961 pelo cosmonauta soviético Yuri Gagarin, as primeiras proferidas por um humano no Espaço, para expressar o que sentia quando olhava pela primeira para o nosso planeta a vários quilómetros acima da superfície.

Saber o que temos de proteger é indispensável para sabermos como podemos fazê-lo. Os dados recolhidos sobre a Terra pelos satélites que a orbitam e observam incessantemente não são uma solução mágica para os problemas, muitos dos quais criados por nós, com que temos de lidar cá em baixo. No entanto, são mais uma valiosa fonte de conhecimento para que possamos perceber onde estamos e para onde temos de ir.

Como no diz Carolina Sá, é conhecer mais para fazer melhor.

 

*Artigo publicado originalmente na revista de março de 2025.






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