Sem desperdício todos ganham



Em Lisboa quem desce a Av. de Ceuta em direcção ao Tejo encontra do lado esquerdo os armazéns do conhecido Banco Alimentar Contra a Fome (BA). Para aí chegar é porque uma centena de metros antes passou pela Quinta do Cabrinha, bairro que fica no lado oposto da avenida e que realojou as famílias do Casal Ventoso. A vida no bairro decorre para lá da parede de edifícios que se avista da estrada.

A entrada faz-se por uma ruela perpendicular a várias filas de prédios. Na segunda fila, do lado direito, há uma porta que conduz a duas garagens subterrâneas que, juntas, ocupam uma área de 4.000 m2. Aqui, o entra e sai é feito quase em exclusivo por carrinhas e as boxes não têm carros. Mas não estão vazias. Pelo contrário. No último ano armazenaram mais de 1 milhão e 500 mil produtos (cadeiras, computadores, roupa, detergentes, tintas, etc.) doados por empresas e particulares.

O espaço é a sede do Banco de Bens Doados (BBD) e do Banco de Equipamentos (projecto que angaria apenas material informático). O BBD é uma espécie de 3 em 1: através dele as empresas satisfazem o seu papel de responsabilidade social e escoam produtos que, por uma dada razão, já não iriam comercializar; as instituições de solidariedade social recebem precioso contributo para auxiliar quem mais precisa; e o ambiente fica livre de toneladas de resíduos.

Congregar boas vontades

A ideia surgiu quando os responsáveis pelo BA constataram a disponibilidade das empresas para cederem produtos não alimentares. “Muitas vezes as organizações têm produtos que já não podem comercializar, por exemplo, porque está a terminar o prazo de validade, ou porque o contrato de leasing chegou ao fim, ou a imagem das marcas mudou, ou acabou uma promoção, o que obrigaria à acção dispendiosa de reembalar o produto”, explica Isabel Jonet, presidente do BA. Assim, em 2007 nasceu o BBD, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS). Tal como acontece com o BA, o BBD não faz entregas de produtos directamente a particulares: os destinatários dos produtos angariados são as IPSS.

O Banco não é um projecto isolado. “Surgiu no âmbito da Entrajuda, IPSS que criámos em 2004 com o objectivo de dotar as instituições do terceiro sector com equipamentos e ferramentas, como mobiliário, computadores, impressoras, etc., que as tornem mais eficientes no dia-a-dia”, conta Isabel Jonet, responsável pela iniciativa. Como? “Muitas instituições sociais não têm condições para comprar equipamento informático. Temos voluntários que criaram soluções informáticas adaptadas às instituições – permitem gerir a despesa e criar bases de dados para utentes – e instalamos este software nos computadores”, explica.

Há outros produtos de que as IPSS necessitam pontualmente para a sua actividade e que encontram no BBD, como televisores, cadeiras e mesas. Mas também há itens de que as instituições precisam com regularidade. “Recolhemos todo o tipo de produtos não alimentares – detergentes, tintas, produtos de higiene pessoal, cadeirinhas de bebé, roupa nova – que possam ajudar as instituições ou as famílias acolhidas. Este auxílio liberta-lhes recursos para áreas mais críticas, como os recursos humanos”, diz Isabel Jonet.

Uma ideia que funciona

Os resultados do Banco de Bens Doados são impressionantes. No primeiro ano de actividade angariou um milhão de produtos que distribuiu por 420 instituições de solidariedade social, as quais, por sua vez, os fizeram chegar a cerca de 100.000 pessoas carenciadas. “Sabia que a ideia tinha muito potencial, mas não previ um crescimento tão rápido”, exclama Isabel Jonet. Hoje há 19 Bancos de Bens Doados espalhados de Norte a Sul do país. A responsável acredita que, enquanto houver excedentes de produção e produtos rejeitados pela sociedade, o BBD tem espaço para crescer. E revela: “Este projecto, tal como o BA, surgiu com o propósito de lutar contra o desperdício”. Mas a verdade é que o alcance da iniciativa é muito mais abrangente.

Em 2010 foram distribuídos mais de 1.800.000 artigos por 647 instituições sociais, que apoiam cerca de 216.000 pessoas carenciadas. “Todas as semanas há 60 IPSS que vêm cá levantar produtos. Estas entregas funcionam como cabazes que são disponibilizados a cada dois meses”, explica Isabel Jonet. O BBD assegura que os produtos doados não serão comercializados. “Estes bens têm muito valor comercial. Por isso temos protocolos jurídicos com as instituições em que se comprometem a não os reintroduzir no mercado. Também temos um conjunto de visitadores que vão duas vezes por ano a cada instituição”, esclarece.

O funcionamento do BBD é assegurado por 45 voluntários e seis assalariados. Estes “eram beneficiários do rendimento social de inserção – desempregados de longa duração, pessoas com deficiência, etc. – e agora têm um contrato de trabalho”, conta Isabel Jonet. Entre os voluntários contam-se muitos desempregados, como é o caso de Raquel Serra Pinto, que trabalhava no departamento comercial de uma companhia aérea. “Conhecia as acções do BA e tornei-me voluntária porque tinha disponibilidade e imensa vontade de ajudar”, partilha Raquel Serra Pinto. Assim, há dois meses que passa as manhãs no BBD. “Coordeno a equipa de voluntárias que atende as instituições”, conta, enquanto separa peças de roupa por género, cor e tamanho. E acrescenta: “É muito gratificante e motivador. É um compromisso a que não queremos faltar pois fazemos parte de um circuito”.

Outros voluntários estão reformados, como Damásio Martins, 72 anos. Este antigo coordenador de obras está no BBD das nove às cinco. E fá-lo desde 2009. “Vi na televisão que precisavam de gente. Aqui sinto-me útil”, justifica. A influência do BBD também se estendeu à comunidade da Quinta do Cabrinha. “O bairro era totalmente fechado. Não se entrava no pátio interior, que estava todo grafitado e sujo de cocós de cão”, recorda Isabel Jonet. “Fiz uma sessão de esclarecimento, dentro do bairro, sobre o que seria o BBD. Criei dois postos de trabalho para habitantes da Quinta do Cabrinha – um para mulher-a-dias e outro para empregado de armazém”, conta. Mas fez mais. Com o apoio da Gebalis (empresa que gere os bairros municipais) e com a participação dos trabalhadores da empresa Oracle e dos moradores realizou uma acção de requalificação.

“Pintámos o bairro todo e colocámos floreiras e bancos de jardim. Ficou de cara lavada”, congratula-se. “O facto de estarmos dentro do bairro e haver um movimento permanente de cargas e descargas abriu o bairro ao exterior e conferiu-lhe uma certa normalidade de vida, que antes não tinha. E isso tem muito valor”.

*Texto: Miguel Amaral Monteiro/Foto: Luís Piteira/AFFP.

Revista Recicla.

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