Entre a conservação e o cativeiro: Seria possível um mundo sem zoos?
Travar e reverter os danos causados pelas sociedades humanas à biodiversidade do planeta Terra, é uma das grandes demandas dos nossos tempos. A perda de espécies tem acelerado fortemente nos últimos séculos, devido à destruição de habitats, à poluição, à caça e ao comércio, legal e ilegal, de espécies selvagens.
No entanto, nos debates sobre a conservação da biodiversidade, raramente se ouve falar do papel que os parques zoológicos podem desempenhar, não apenas para resgatar do precipício da extinção espécies de animais selvagens em risco, mas também para aproximar as pessoas do chamado ‘mundo natural’ e, assim, ajudar a mobilizar esforços, vontades e, claro, investimento para essa missão.
A questão dos zoos provoca grande polarização e até alguma controvérsia. Se, por um lado, essas instituições defendem que são essenciais para a conservação da biodiversidade, e que sem elas muitas espécies de animais certamente desapareceriam, por outro há os que acreditam que os zoos causam mais prejuízos do que benefícios, por manterem animais selvagens em cativeiro, fora dos seus habitats naturais.
Os ‘prós’ e os ‘contras’
O papel dos zoos na conservação de espécies selvagens e na investigação científica sobre elas não gera consenso, nem entre cientistas, nem entre membros do universo conservacionista.
Nuno Gomes Oliveira, presidente da direção da FAPAS – Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade, é um dos que duvida de que a conservação e a investigação são, de facto, a razão de ser dos zoos. “São muito poucos os casos de espécies recuperadas a partir de zoos”, contou-nos o responsável, indicando que “o papel dos zoos clássicos na conservação e na investigação é residual”.
No entanto, Jorge Palmeirim, presidente da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), disse-nos que “alguns zoos estão de facto a fazer uma contribuição significativa para a conservação ex-situ (isto é, fora do habitat natural) das espécies animais ameaçadas. Organizados em redes, têm conseguido manter em cativeiro populações de muitas espécies que desapareceram totalmente ou quase da natureza. Nalguns casos de sucesso, animais criados em zoos foram essenciais para reintroduzir espécies na natureza, ou para reforçar as suas populações”.
Embora reconheça que o ideal será “preservar as espécies nos seus habitats naturais”, o biólogo salientou que “a destruição maciça de habitats, que tem tido lugar nas últimas décadas, tem inviabilizado a conservação de algumas espécies na natureza”. Sobre a investigação, disse que “os zoos têm também desempenhado um papel importante, especialmente desenvolvendo métodos de manutenção e criação em cativeiro, que se tornam muito úteis quando é necessário recorrer à conservação ex-situ de espécies ameaçadas”.
Quanto ao que diz a Ciência, parece haver estudos que suportam ambos os pontos de vista: alguns dizem que os impactos sobre o bem-estar dos animais mantidos nos zoos são reduzidos e que essa questão não se sobrepõe à conservação da espécie como um todo, ao passo que outros apontam para o aumento dos níveis de ansiedade dos animais cativos e para alterações comportamentais resultantes do cativeiro.
“Não há uma opinião universal em relação aos zoos”
Em conversa com a ‘Green Savers’, Paulo Sousa, biólogo de formação e responsável do Mestrado em Biologia da Conservação da Universidade de Évora, sublinhou que “não há uma opinião universal em relação aos zoos”, avançando que, mesmo na comunidade científica, existem diversas perspetivas. “Há opiniões fundamentadas, mais ou menos científicas, e depois há as opiniões pessoais. E os cientistas também têm opiniões pessoais”, ressalvou.
O biólogo explicou que, no chamado ‘mundo ocidental’, “estamos cada vez mais urbanos, cada vez mais as pessoas vivem nas cidades e estão a abandonar o território”. Para ele, esse afastamento da natureza, e da fauna selvagem, sobretudo, faz com que os residentes citadinos queiram “ter a experiência de ver fauna”. E é aí que os zoos podem ter um papel importante a desempenhar.
Não há uma opinião universal em relação aos zoos. Há opiniões fundamentadas, mais ou menos científicas, e depois há as opiniões pessoais. E os cientistas também têm opiniões pessoais.
“A procura pelo contacto com a natureza será maior nos próximos tempos, à medida que nós, humanos, pelo menos os ocidentais, nos vamos restringindo às grandes cidades”, observou, pelo que “os parques zoológicos podem ter o efeito de promover essa vivência, essa experiência com os animais, evitando que as pessoas comprem animais ou, pior ainda, vão para a natureza, que desconhecem, perturbar a vida selvagem”, colocando em risco as suas próprias vidas, bem como as dos animais.
Embora admita que, enquanto biólogo, o ideal seria a fauna manter-se selvagem, nos seus habitats naturais de origem, Paulo Sousa acredita que é preciso encontrar “um equilíbrio”, que permita satisfazer o desejo humano de contacto com a vida selvagem, neste caso em zoos, e ao mesmo tempo evitar que as pessoas vão em busca dessas experiências no mundo natural, “onde podem fazer estragos”.
Por isso, “se um jardim zoológico for bem gerido, acho que é um bom compromisso”, sublinhou.
“Os zoos não são todos iguais”
Paulo Sá Sousa alertou que não nos podemos deixar tentar por generalizações, porque “os zoos não são todos iguais”.
“Há uns anos eram todos iguais, mas alguns fizeram progressos em termos de melhoramento ambiental e preocuparam-se em criar programas de conservação”, salientou o cientista, ressalvando que “existem zoos há anos a trabalhar em programas de conservação”, mas que também há aqueles que “ainda mantêm o carácter expositivo”, sendo pouco mais do que “jardins com animais”.
“Eles são todos parques de animais, só que o intuito com que são mantidos e geridos pode ser muito diversificado”, disse-nos Paulo Sousa.
Para Jorge Palmeirim, “os zoos do passado eram de facto pouco mais que ‘jaulas montras’, onde eram mantidos animais em espaços claramente inadequados”, mas, “nas últimas décadas, tem havido a preocupação em aumentar o bem-estar e o sucesso da sobrevivência e reprodução dos animais dos zoos, através do aumento dos seus espaços e do enriquecimento dos ambientes, de acordo com as características de cada espécie”.
Como tal, observou que “já se está a caminho desse novo formato de zoo, ainda que esteja longe de ser universal”.
Se, há uns anos, os zoos eram considerados meros ‘expositores’ de animais selvagens, Élio Vicente, diretor de Conservação do Zoomarine, em declarações à ‘Green Savers’, explicou que o que mudou não foi tanto a forma como os zoos são geridos ou “a filosofia dos espaços”, mas sim a forma como as pessoas hoje veem o trabalho por eles desenvolvido.
“As entidades zoológicas sempre fizeram muito, mas nem sempre comunicavam e, antes do nascimento da internet (e, posteriormente, das redes sociais), muito do trabalho científico, conservacionista e pedagógico, era apenas do conhecimento de especialistas”, apontou, referindo que “hoje em dia, é muito mais fácil comunicar e saber o que é feito pelos zoos”.
Para o responsável, “as pessoas agora estão mais bem informadas sobre o trabalho que entidades zoológicas progressistas fazem, todos os dias, pelo mundo. E Portugal não é exceção, muito pelo contrário”. Élio Vicente garantiu-nos que “os zoológicos modernos seguem diretrizes internacionais, que determinam quais os zoos que podem ser licenciados e iniciar operação”, e são sujeitos a inspeções e processos de certificação “muito rigorosos e realizados de forma regular e sistemática”.
Impactos do cativeiro nos animais selvagens
Para Paulo Sousa, os impactos do cativeiro nos animais selvagens dos zoos são “um facto”. O biólogo apontou problemas sobretudo psicológicos e comportamentais, que resultam do confinamento, pela falta de atividade ou por causa de “atividades rotineiras”. E deu como exemplo os grandes felídeos, que, quando em jaulas, apresentam um “comportamento de vai e vem contínuo”.
“Muitos jardins zoológicos têm procurado minimizar esse problema”, explicou, mas “há sempre um problema de confinamento num jardim zoológico, especialmente quando ele próprio está confinado geograficamente”.
Paulo Sousa afirmou que isso pode ser contrariado através do chamado “melhoramento ambiental”. “Há uma tentativa, por parte dos jardins zoológicos modernos, dos mais atualizados, para recriar condições o mais próximas possível das condições naturais”, explicou-nos, dizendo que, ainda assim, nunca se consegue uma aproximação total aos habitats naturais.
Mas mesmo esse melhoramento tem limites, e pode ser constrangido pela falta de espaço para expansão das instalações. Por isso, sugeriu que alguns zoos, para fazerem frente, por exemplo, aos impactos das alterações climáticas nas espécies que têm a seu cargo, deveriam pensar em planos de relocalização, “para ganharem espaço para os animais”.
Élio Vicente considera que as acusações de que o cativeiro nos zoos provoca ansiedade nos animais, e de que vai contra a sua natureza, são “injustas e baseadas na ignorância”. Para ele, experiências como mergulhos com golfinhos, por exemplo, “podem ser (e são) fontes de estímulo cognitivo e de enriquecimento ambiental”.
“Se tais acusações de stress fossem verdadeiras, os programas não seriam implementados (tal como não são com muitas outras espécies que vivem em zoos e não gostam de tais contactos), as autoridades já teriam atuado, e, por exemplo, as taxas de reprodução seriam muito menores”, sublinhou.
A conservação e o negócio
Uma das críticas apontadas aos zoos é o facto de usarem animais selvagens em cativeiro para gerarem receitas, nomeadamente através da venda de bilhetes. Por outro lado, os defensores dos zoos dizem que, se não for dessa forma, não têm como financiar a manutenção dos animais e dos espaços, nem implementar programas de conservação e educação.
Seria possível que um reforço do financiamento público ajudasse os zoos a abdicar da vertente ‘negócio’, reduzindo a dependência da venda de bilhetes e de experiências com animais selvagens, e a focar-se mais afincadamente na dimensão da conservação?
O docente da Universidade de Évora disse que “em Portugal, não”, criticando o reduzido investimento público que tem sido feito na conservação da vida selvagem no país, e recordando que, ao longo de vários governos, “tem havido um desinvestimento na conservação da natureza”.
Isto porque, continuou, “a conservação da natureza em Portugal passou para a União Europeia”, sendo feita sobretudo através de projetos LIFE, promovidos por universidades e organizações não-governamentais, e as instituições públicas apenas surgem como “parceiras” e “vão por arrasto”.
Por isso, os zoos nunca poderiam viver de financiamento público, assumiu Paulo Sousa, “até porque mudava o Governo e mudava logo o paradigma”. Como tal, admitiu que não vê “alternativa ao modelo que temos atualmente”, em que a vertente ‘negócio’ dos zoos é fundamental para financiar essas instituições e o seu trabalho.
As entidades zoológicas sempre fizeram muito, mas nem sempre comunicavam e, antes do nascimento da internet, muito do trabalho científico, conservacionista e pedagógico era apenas do conhecimento de especialistas.
Nuno Gomes Oliveira, da FAPAS, contou-nos que “esta é a dimensão económica e social do problema. Mas não serão os apoios públicos que alteram a situação, pois há zoos com apoios públicos que têm, na mesma, falta de qualidade”.
Ainda que entenda que o trabalho de conservação ex-situ dos zoos “poderia ser reforçado com financiamento público”, Jorge Palmeirim afirmou que “a visitação de zoos pelo público pode desempenhar um papel importante na educação sobre a biodiversidade, aumentando o interesse público na sua conservação”.
“Contando que os visitantes não comprometam a conservação em cativeiro, devido a uma perturbação excessiva, pensamos ser desejável a compatibilização da conservação ex-situ com a visitação”, explicou o responsável da LPN, acrescentando que “zoos que funcionem bem, com atividades de educação ambiental, continuam a ter um papel importante na consciencialização para a necessidade de conservar a biodiversidade”.
Élio Vicente, do Zoomarine, disse-nos que “o financiamento público é, muitas vezes, impossível ou muito escasso”, pois, segundo ele, “ainda vivemos num país onde há agentes que consideram que, antes de se ajudar animais, deve-se ajudar pessoas”. Como tal, observou que “o financiamento público, num país como Portugal, nunca chegará para todas as espécies e para todos os habitats que necessitam urgentemente de apoio”.
O futuro dos zoos: desmantelamento e digitalização
Quanto ao que o futuro poderá reservar aos zoos, as opiniões também divergem. Jorge Palmeirim considera ser possível abandonar o atual formato dos parques zoológicos, em prol de “centros de reprodução em cativeiro de espécies ameaçadas, com financiamento público”, ainda que admita “parecer improvável que os Estados assumam todo o trabalho que é hoje realizado pelos zoos, com verbas obtidas através da venda de bilhetes”.
Já Nuno Gomes Oliveira afirmou que “não parece possível desmantelar os zoos”, sobretudo porque “seria impossível dar destino aos muitos milhares de animais neles mantidos e que, na generalidade, não podem ser devolvidos à natureza”.
Sobre a possibilidade de pôr fim aos zoos, Élio Vicente disse-nos que “seria condenar à morte milhares de animais e fazer retroceder, ética e moralmente, a nossa sociedade em dezenas de anos, em termos de Educação Ambiental, Ciência e Conservação”.
Por sua vez, Paulo Sousa não afasta a possibilidade de esse caminho futuro poder passar pela digitalização.
“Isso não é nada que não esteja de acordo com as tendências atuais da civilização ocidental, que é muito mais digitalizada e procura já experiências de realidade virtual”, elucidou, referindo que, dessa forma, talvez fosse possível satisfazer o tal desejo dos humanos alienados do mundo natural de contactarem com a vida selvagem, sem que seja preciso manter os animais em cativeiro.
Contudo, acredita que experiências desse tipo, comercialmente apelativas, poderiam aprofundar o ‘fosso’ entre o que é a realidade e o que nos é mostrado virtualmente, porque podemos, com um clique de um botão, ser transportados para a savana africana ou para a tundra antártica e ver imediatamente animais selvagens, algo que não aconteceria no terreno.
“A observação de animais na natureza não é estimulante. É muito difícil ver animais na natureza”, comentou Paulo Sousa.
Nuno Gomes Oliveira é mais crítico de uma eventual digitalização dos zoos, afirmando que “é pura moda e a sensibilização e educação ambiental não se fazem em ‘espaços virtuais’, mas sim no terreno, em contacto direto dos nossos sentidos com a natureza, seja numa área protegida, seja num zoo”.
Ainda sobre uma digitalização dos zoos, Élio Vicente considera que não há ecrã que faça a vez da experiência ao vivo. “Ecrãs não substituem cheiros… Uma ida à praia não pode ser substituída por um documentário sobre o mar. Acariciar um cão não pode ser trocado por um jogo de cães num telemóvel”, apontou o responsável de conservação do Zoomarine.
Seria então possível um mundo sem zoos? Também aqui as opiniões são díspares.
“Daqui a umas dezenas de anos, creio que sim”, disse-nos Paulo Sousa. Isto porque “estamos num processo de digitalização, todos estamos a caminhar para a realidade virtual”, pelo que poderá ser esse o futuro dos zoos.
Mas Élio Vicente pensa que “um mundo sem Zoos seria como um mundo sem arte, sem literatura, sem escolas, sem hospitais”, pois, “em muitos países, o salvamento de muitas espécies depende apenas de zoos. Sem zoos progressistas, este mundo seria, biológica e socialmente, muito mais cinzento, ecologicamente muito mais frágil, e eticamente muito mais pobre”.
A distância que separa as vozes ‘pró’ e ‘contra’ ainda é grande e, até ao momento, não foi possível transpô-la. Seja como for, é importante perceber que nem todos os parques zoológicos são iguais, e podem diferir no que toca às condições disponíveis e às espécies que albergam, bem como à missão que os orienta.
*Artigo publicado originalmente na revista da Green Savers de SET/OUT/NOV de 2023