Grandes potências divergem na ONU até em temas como insegurança alimentar e clima
Grandes potências mundiais – como Rússia, China, EUA e Europa – entraram ontem em confronto no Conselho de Segurança da ONU sobre a crise climática e insegurança alimentar, temas que, na teoria, gozam de um maior consenso global.
Em causa está um debate de alto nível do Conselho de Segurança da ONU para abordar a ligação e o impacto das alterações climáticas e da insegurança alimentar na paz e segurança internacionais, que foi convocado pela Guiana – país que preside este mês o Conselho de Segurança.
Apesar de o objetivo do debate ser gerar uma maior compreensão, respostas mais coordenadas e abordagens proativas às ligações entre a insegurança alimentar e as alterações climáticas num contexto de paz e segurança, na prática o tema não gerou o consenso esperado.
Quer os representantes da Rússia, quer da China, questionaram se o Conselho de Segurança era o fórum onde as questões climáticas deveriam ser abordadas, em linha com a tese que defendem tradicionalmente, mas foram mais longe e acusaram os países ocidentais de terem praticado e continuarem a praticar um “colonialismo” que incentiva a insegurança alimentar.
O tom mais agressivo foi usado pelo embaixador russo junto à ONU, Vasily Nebenzya, que apelou à reflexão sobre como “diante dos benefícios astronómicos do complexo agroindustrial ocidental, a ameaça da fome é sentida de forma mais aguda pelos países em desenvolvimento com populações em crescimento”.
Segundo o diplomata russo, isso ocorre porque, “no passado, os colonizadores ocidentais cultivaram as terras das suas colónias para extrair o máximo lucro e garantir alimentos para as suas próprias populações”.
Nebenzya sublinhou ainda que o agravamento da insegurança alimentar deve-se também às sanções que são aplicadas precisamente – embora não o tenha dito explicitamente – a países aliados da Rússia, como Cuba, Venezuela, Bielorrússia, Coreia do Norte ou Irão.
O diplomata acabou por alertar contra os supostos objetivos ocultos da assistência alimentar em todo o mundo: “Por cada dólar que [as potências ocidentais] gastam em assistência, exigirão que sacrifiquem a soberania e independência política e muitos países africanos já sentiram isso em primeira mão, [mas] não irão mais tolerar essas abordagens”, defendeu.
O embaixador chinês, Zhang Jun, fez eco praticamente das mesmas ideias do seu colega russo: “A assistência humanitária não deve ser utilizada como alavanca de pressão, nem deve estar sujeita a condições políticas”, disse, dando o exemplo do Afeganistão, onde a ameaça de um corte total da ajuda paira constantemente sobre o regime talibã se a situação das mulheres no país não melhorar.
Zhang culpou os subsídios agrícolas no ocidente e o poder de quase monopólio das grandes multinacionais alimentares, quase todas ocidentais, por “criarem turbulência e desequilíbrio no mercado alimentar global”.
Os embaixadores russo e chinês sublinharam também que os seus países prestam assistência alimentar aos países mais pobres, quer técnica, quer financeira, chegando no caso da China a 130 países beneficiários.
Por outro lado, países como Estados Unidos e Reino Unido focaram-se na necessidade de uma abordagem coordenada face às alterações climáticas, degradação ambiental e conflitos, e colocaram o Conselho de Segurança como um dos palcos para a discussão acontecer.
A sessão foi aberta pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, que lembrou que em 2022 o clima e os conflitos armados foram as principais causas de insegurança alimentar aguda para 174 milhões de pessoas, fazendo ainda referência às inundações e secas que destroem as colheitas, mudanças nos oceanos que perturbam a pesca ou a degradação da terra e das águas subterrâneas.
Entre os países que mais sofrem com a relação entre fome e conflito, Guterres citou os casos da Síria, Myanmar, Gaza, Haiti, Etiópia e Sudão, lugares onde milhões de pessoas se tornaram dependentes da ajuda internacional para se alimentarem.
“É angustiante ver os Governos gastarem pesadamente em armas, ao mesmo tempo que privam os orçamentos para a segurança alimentar, a ação climática e desenvolvimento sustentável mais amplo”, disse.
O secretário executivo da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, Simon Stiell, lembrou que a relação entre fome e conflito é antiga, já que “historicamente, as revoltas do pão desencadearam revoluções e derrubaram Governos”, e a competição por terras cultiváveis é uma constante em tempos de seca e calor e, geralmente, leva à violência intercomunitária ou à violência entre países.
Mas, sobretudo, lamentou as graves deficiências no financiamento das políticas climáticas: “As necessidades de financiamento para a adaptação climática são pelo menos dez vezes maiores do que os atuais fluxos financeiros públicos internacionais”, assinalou Stiell.