“Não há Outros…” – por Ilidio Anastácio
“A minha liberdade termina quando começa a liberdade dos outros.” Esta é uma frase que surge com naturalidade quando, informalmente, as pessoas falam sobre os limites dos seus comportamentos ou atitudes. Tal como todas as frases que são ditas muitas vezes, passam a verdades, mesmo que nunca ninguém tenha demonstrado a sua validade. Caso a sua validade seja demonstrada, os outros serão promovidos a carcereiros do meu agir e viverei dentro dos limites imaginários que interpreto como os seus interesses, e enclausurado poderei anuir que “o inferno são os outros” como proferiu Sartre. Admitamos que este cenário não é agradável!
Ainda assim, a referida frase contem um raciocínio extremamente relevante: o modo como ajo depende da consciência que tenho de mim e do que me rodeia. Infelizmente a frase parte de um pressuposto individualista negativo: a minha liberdade, os meus interesses portanto, não são coincidentes com os dos outros, são contrários, ou antagónicos, tendo assim de os refrear para evitar conflitos.
Deste modo, cada pessoa é entendida como uma entidade isolada, cercada por interesses contrários aos seus que limitam a expansão do seu agir à medida que os outros se aproximam. Ora, este entendimento corresponde a um certo tipo de consciência de mim e dos outros, onde interesses individuais não se cruzam. A sociedade seria, assim, um aglomerado de vontades individuais, potencialmente conflituosas.
Se nos debruçarmos sobre as inúmeras questões ambientais, tais como as agressões feitas aos ecossistemas, a poluição, a contaminação, o esgotamento de recursos, a aniquilação da biodiversidade, podemos constatar que quem é promotor, em larga escala, desses actos, sabe exactamente o que está a fazer. Tem conhecimento. E até podemos dizer que tem consciência, mas esta não vai além dos seus próprios interesses. È uma consciência curta, pouco expandida, virada para si própria, e que termina em si mesma, confundindo-se com a inconsciência de que a luta pelos seus interesses se pode traduzir no seu próprio desaparecimento. Deste modo, esta consciência narcísica afigura-se de tal modo exacerbada, que se aproxima do padrão viral, o qual desprezando o facto de poder levar à morte o seu hospedeiro, procura independentemente de tudo satisfazer o seu propósito.
Agimos em função dos nossos interesses. Agimos em função da nossa consciência. Esta é a chave! Repare-se que a imputabilidade de um acto, ou seja, a atribuição de responsabilidade de um acto a uma pessoa, depende do grau de consciência que esta tem do que está a realizar. Não se pode esperar que alguém com uma consciência muito reduzida chame uma ambulância se encontrar outro cidadão caído no chão.
Impõe-se, portanto, questionar que consciência temos de nós próprios. E que consciência temos dos outros. E que consciência temos do ar que respiramos, da água que bebemos, dos alimentos que ingerimos. O mesmo é dizer que consciência temos da poluição do ar, da contaminação dos cursos de água e dos aquíferos, dos agro-tóxicos que estão presentes na alimentação. Temos conhecimento. Mas que consciência temos?
Se, como um todo, a consciência for composta por um mero conjunto de interesses individuais, todo o meio em que vivemos entrará em colapso. Não é sustentável! Não existem recursos para a existência de 7 biliões de automóveis, 7 biliões de casas, 7 biliões de frigoríficos, 7 biliões de televisões… Não é possível…
E se os outros forem o meu paraíso, ao invés de inferno? E se os outros partilharem dos meus ideais? E se os outros me tornarem mais feliz? E se nos juntarmos em torno de interesses comuns e agirmos juntos para construir um mundo mais simples, mais humano, mais afectuoso? E se eu ganhar consciência de que o meu destino é indissociável do dos outros? Que o meu destino é indissociável do dos ecossistemas? Que o mundo é a minha casa e que é possível haver uma vontade conjunta de bem-estar e felicidade, com base na harmonia e parcimónia? Que todos juntos somos um só ser vivo global, onde as liberdades individuais se potenciam e expandem umas nas outras?
Não podemos esperar ultrapassar as nossas dificuldades se mantivermos um nível de consciência curto, individual e narcisista. Como disse Albert Einstein não é possível esperar resultados diferentes se continuarmos a agir do mesmo modo. O agir, o agir bem, o agir ético depende do grau de consciência, não apenas do grau de conhecimento. O conhecimento é neutro, a consciência é um conhecimento interiorizado, que se relaciona com valores, com o que considero importante, essencial e prioritário.
O meu bem será o bem do outro. Tal como um povo não pode ser próspero mantendo outro povo na miséria, pois isso não é sustentável sob nenhum ponto de vista, o meu bem-estar não pode ignorar o bem-estar dos outros, nem o bem-estar do meio onde todos habitamos, a nossa casa, a Terra. Esta é uma consciência alternativa à consciência inconsciente do declínio do planeta. A consciência que estamos todos, irremediavelmente, juntos. Somos apenas um ser vivo.
Uma história oriental conta assim:
“O discípulo pergunta ao Mestre:
– Mestre, como posso tratar os outros, principalmente os que ainda expressam violência e raiva?
O Mestre responde:
– Não há outros…”
Ilidio Anastácio
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