Ana Sofia Santos: “Os hortícolas não são tão apelativos quanto outros alimentos”
Na segunda-feira, a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou que consumir carne processada aumenta o risco de desenvolver cancro colorrectal e o consumo de carne vermelha, “provavelmente”, também.
Desde então, o tema está na ordem do dia: será que a afirmação da OMS é exagerada e alarmista ou, de facto, temos de começar a comer menos bacon, chouriço ou salsichas? Qualquer que seja a sua opinião, há algo que é certo: os hortícolas, ainda que menos apelativos que outros alimentos, são fundamentais para o nosso bem-estar e segurança alimentar.
Para levar esta mensagem aos mais novos e seus educadora, a nutricionista Ana Sofia Santos lançou um e-book que funciona como uma ferramenta de educação alimentar, ensinando as crianças a conhecer, valorizar, consumir e apreciar os hortícolas – o projecto recebeu uma Menção Honrosa nos Food & Nutrition Awards 2015. O Green Savers falou com Ana Sofia Santos sobre o lançamento da obra e os próximos passos da sua caminhada.
Como surgiu a ideia de criar um e-book sobre a educação alimentar?
A ideia surgiu no âmbito do meu estágio académico, no final da Licenciatura em Ciências da Nutrição da Faculdade de Ciências da Nutrição e da Alimentação da Universidade do Porto (FNCAUP), onde me foi colocado o desafio de criar um e-book para assessorar a promoção do consumo de hortícolas por parte dos Professores do pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico nas Escolas sob responsabilidade da Divisão de Educação|Saúde (DE|S) da Câmara Municipal da Maia (CMM).
Já durante a licenciatura – designadamente, na unidade curricular Nutrição Comunitária –, tive a oportunidade de desenvolver actividades de promoção do consumo de hortícolas numa dessas escolas e apercebi-me que, realmente, é possível fazer a diferença. A adesão das crianças foi extraordinária.
Essas actividades foram desenvolvidas através do programa Amigos Hortícolas, que teve a sua origem em 2008, através de protocolo entre a FCNAUP e a Câmara Municipal de Gaia. Posteriormente, o programa estendeu-se a outros municípios do Grande Porto, incluindo a Maia.
Em que fase está o projecto? Pretende comercializá-lo, fazer parcerias com empresas? Como o irá dinamizar?
O e-book está pronto a ser implementado já neste ano lectivo – 2015/16 – nas escolas sobre responsabilidade da DE|S da CMM. Nesta altura, o projecto tem uma natureza estritamente de serviço público. Tanto mais que contou com a colaboração da DE|S da CMM e da FCNAUP. No entanto, tal não deverá invalidar o objectivo de, no futuro, o comercializar, uma vez que o e-book pode (e deve) ser também usado pelos pais que tenham interesse em promover o consumo de hortícolas junto dos seus filhos. O mesmo se aplica a eventuais parcerias com empresas que se queiram associar à mesma missão.
A dinamização começa agora, e a 2.ª Menção Honrosa do Food and Nutriton Awards 2015 (F&NA 2015), na categoria Iniciativa de Mobilização, deverá contribuir muito para esse efeito. Por outro lado, estou também a contar com o contributo e avaliação dos implementadores – o e-book inclui uma secção de avaliação para esse efeito –, de modo a promover a eventual revisão e divulgação em outros municípios ou escolas particulares.
Quanto custou este e-book e que objectivos financeiros tem para ele?
O principal investimento na elaboração do e-book foi o tempo. Na realidade, tratou-se de um processo minucioso de compilação, revisão e adaptação de diversas actividades implementadas nas aulas práticas da unidade curricular de Nutrição Comunitária, dos anos lectivos 2012/13 e 2013/14. Em paralelo, foi também realizada pesquisa profunda para enquadramento teórico do assunto, incluindo os estádios cognitivos e metas curriculares das crianças do pré-escolar e o 1.º ciclo do ensino básico, para classificação de cada actividade.
Foi também prestada uma especial atenção ao grafismo do e-book, de modo a potenciar a sua aceitação, destacando o excelente empenho e trabalho gráfico assegurado por uma familiar com formação na área.
Por fim, não posso deixar de registar a extraordinária contribuição das minhas orientadoras de estágio na CMM – Dr.ª Marta Sampaio – e FCNAUP – Prof. Dr.ª Bárbara Pereira.
No futuro, que ideias tem para uma nova versão deste e-book ou até para tratar o tema de uma outra forma?
Em resultado da avaliação da implementação e da evolução da divulgação do e-book, é expectável que ele seja periodicamente actualizado, podendo, inclusive, ser objecto de aplicação ou site na internet para generalização do acesso.
Paralelamente, algumas das actividades – por exemplo, as que se assemelham a jogos para interacção de grupos – poderão ser disponibilizadas de forma independente do e-book, à semelhança de vários outros exemplos do género já disponíveis. Por último, e atendendo ao reconhecimento que se espera associar à mascote – o Tobias – e aos símbolos dos hortícolas, poderá também ser desenvolvido merchandising – já disponibilizado na cerimónia de entrega de prémios do F&NA 2015 – com esses elementos e associado à mensagem de promoção do consumo de hortícolas, sendo que, também neste caso, já há vários exemplos em implementação.
Quais as grandes preocupações que os pais devem ter no que toca à alimentação dos seus filhos?
A principal preocupação deverá ser a de garantir a diversidade na alimentação dos filhos, pelo que, nesse caso, os hortícolas deverão ter uma preponderância importante, uma vez que representam um dos maiores grupos da Roda dos Alimentos.
Assim, entendo que tem que ser esclarecido que uma alimentação diversificada não implica banir os alimentos que os filhos mais apreciam. No entanto, tal poderá representar a necessidade de rever alguns hábitos alimentares. Se essa transição for implementada de forma faseada, não deverá criar a resistência que todos os pais receiam e, por isso, muitos não estão dispostos a incorrer. Se tivermos sempre presente que amar é também dizer não e que os pais sabem mais, a saúde dos filhos – presente e futura – vai ser a principal beneficiada no processo. A mascote – o Tobias – pode servir de inspiração.
As crianças portuguesas valorizam os hortícolas? Que trabalho tem sido feito em Portugal, nesta área, para que exista uma evolução na forma como as crianças olham para os vegetais?
Apesar da importância do grupo alimentar dos hortícolas, há que reconhecer que os mesmos não são tão apelativos como outros alimentos, em termos de aparência, palatabilidade ou disponibilidade. Definitivamente, os hortícolas não constituem o alimento preferido das crianças e os apelos a que as mesmas são submetidas diariamente – via publicidade ou sociedade – não são promotoras da inversão desse facto. Actualmente, em Portugal, há um deficit do consumo de hortícolas, mesmo apesar de, no contexto europeu, registarmos um dos mais elevados níveis de consumo per capita deste tipo de alimentos.
Acho que devemos ter confiança num futuro melhor, com mais hortícolas na nossa dieta, sendo que existem sinais de esperança – hoje já é possível, em Portugal, ter uma refeição que inclui ou sopa ou fruta (maçã ou uvas) ou hortícola (mini-cenouras), mesmo que tal implique a dispensa das batatas fritas.
O desafio continua a ser tremendo e desigual, mas pequenos contributos – como o e-book – podem fazer alguma diferença. É essa perspectiva que, numa primeira fase, me levou a avançar com este projecto e que me alimenta o ânimo para o levar para outros níveis.
Actualmente existem, a nível nacional, vários programas de educação alimentar destinados a apoio a docentes, nomeadamente o Projecto Vitalidade XXI e o programa Apetece-me, mas nenhum destes programas está exclusivamente focado numa temática, designadamente sobre o consumo de hortícolas.
De que forma o investimento recente de várias autarquias em hortas sociais e urbanas pode mudar a percepção das crianças em relação aos hortícolas?
Acho que as hortas sociais e urbanas podem ser um excelente meio para divulgar os hortícolas junto das crianças. O e-book foi elaborado com a visão de que a promoção do consumo de hortícolas é potenciada se os implementadores e o público-alvo tiverem o conhecimento da origem e dos respectivos benefícios. As hortas em questão têm exactamente a virtude de ilustrar todo o processo de cultivo dos hortícolas.
Com o devido enquadramento e envolvimento das crianças, esse processo só poderá resultar no incremento da aceitação dos hortícolas e, por inerência, melhorar a percepção dos mesmos. Os hortícolas são um alimento de excelência: faz bem à saúde e até pode ser cultivado por uma criança.
Este artigo faz parte de um vasto trabalho sobre os vencedores do Food & Nutrition Awards 2015. Todos os vencedores da iniciativa portuguesa podem ser consultados neste link.