Praias de Aveiro são das mais vulneráveis da Europa



A ligação de Portugal ao mar é muito anterior à época em que os navegadores lusitanos ajudaram a desbravar os oceanos. Esta ligação é relembrada, quase todos os anos, quando o mar galga os areais e destrói o que se atravessa no caminho. Mas será o mar o culpado destes prejuízos que por vezes acabam em tragédia?

Os estragos provocados no último Inverno são o exemplo claro da força do mar mas também da má gestão e de décadas de mau ordenamento do território na orla costeira. A segunda metade do século XX assistiu a construções desmesuradas de habitações em zonas costeiras de risco, construções que foram autorizadas pelas entidades competentes.

Nos últimos 50 anos, a urbanização dos terrenos na costa aumentou 300%, e população a residir junto ao mar cresceu quase para o dobro. Porém, uma em cada dez habitações está actualmente desocupada, o que indicia que há casas a mais nestas zonas.

Estes dados integram o projecto Change, estudo que analisou as dimensões sociais da crise costeira no país a partir da ocupação desordenada do território e da longa história erosiva da costa nacional.

O projecto, que envolveu investigadores do Instituto de Ciências Sociais e da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, coordenado por Luísa Schmidt, permitiu fazer um levantamento das diversas políticas públicas dos últimos anos para o litoral e caracterizar a amplitude social da crise costeira, traçando ainda possíveis cenários sobre os impactos da subida do nível médio do mar em Portugal.

O estudo centrou-se em três zonas chave de grande risco de erosão e de ocupação desordenada: Barra-Vagueira (Aveiro), Costa da Caparica-Fonte da Telha (Almada) e Quarteira-Vale do Lobo (Loulé). Destas três zonas costeiras, são as praias de Aveiro que estão expostas ao maior risco. Com a ria de um lado e o mar do outro, a zona entre a Praia da Barra e a Praia de Mira (mais a sul da Vagueira) é das “mais vulneráveis [a inundações pelo mar] a nível europeu”, como salientou Luísa Schmidt durante a apresentação do estudo. A zona a norte da Praia da Barra também corre grande risco, mas menor que a sul, já que as Dunas da Reserva Natural de São Jacinto ajudam a evitar os efeitos da erosão.

Retratos problemáticos da Vagueira, Caparica e Quarteira

Até aos anos 1980, a Praia da Vagueira – e região costeira adjacente – era uma praia de pescadores, envolta por terrenos agrícolas bastante férteis e, até há bem pouco tempo, podia ver-se os pescadores praticarem a pesca de arrastão com ajuda de bois. Contudo, a partir desta data, esta praia, assim como a da Costa Nova e da Barra, começaram a ser cada vez mais procuradas para a prática balnear. Esta procura impulsionou a ocupação desordenada durante os anos 1990.

Entre 1950 a 2011, por exemplo, a população residente entre a Barra e Vagueira aumentou 169%. Actualmente, 42% das habitações deste local são casas de ocupação sazonal e 58% são habitações permanentes. Aliado à ocupação da costa, onde os alojamentos cresceram mais rápido que a população, a linha costeira sofreu um grande recuo desde 1947, cerca de 500 metros. Este recuo tem impactos directos em todo o ecossistema da ria, contribuindo para a sua destabilização.

Num inquérito feito à população da Barra-Vagueira, os investigadores do Change concluíram que 70% dos inquiridos considera que a erosão da costa é um problema grave e 83% acha que as alterações climáticas têm um impacto nesta erosão. Porém, apesar de reconhecer o risco que corre, 94% desta população nunca participou em discussões públicas sobre a temática.

Na Costa da Caparica a situação é semelhante: 86% da população considera a erosão um risco grave mas 96% nunca se envolveu em sessões de discussão. Tal como a Barra-Vagueira, a zona da Caparica é afectada pelo problema da erosão e da ocupação desordenada, sendo a zona da Cova do Vapor a mais afectada pela acção erosiva do mar.  Em 2011, viviam cerca de 6.062 famílias nesta zona da margem sul de Lisboa.

Porém, a maior pressão da população na Caparica começou a sentir-se na segunda metade do século XX, antes da ocupação da Vagueira. Mas mesmo há 50 anos, quando a ocupação da população ainda não se sentia com tanta pressão a erosão nesta zona já era grande: entre 1957 e 1964, a linha de costa recuou 100 metros e em 1959 iniciou-se a construção do campo de esporões para a protecção da costa.

Na Quarteira, a ocupação mais acentuada começou a sentir-se nos anos 1970, década em que ocorreu a construção do primeiro aldeamento no Vale do Lobo. Até então, a Quarteira era uma grande quinta, e a sua praia era apenas ocupada por pescadores. Os veraneantes preferiam zonas como a Praia da Rocha ou Monte Gordo para passar as suas férias. Mas, com a abertura do aeroporto de Faro o cenário alterou-se e também a Quarteira começou a ser procurada para a prática balnear. Mais tarde chegaram os turistas estrangeiros.

Em 2011, a zona da Quarteira, que engloba Vilamoura e o Vale do Lobo, tinha 8.867 famílias. Nos últimos dez anos o número de alojamentos aumentou 213,1%, construindo-se em arribas e outras zonas de risco. Cerca de 68% das habitações são sazonais, sendo apenas 32% das casas de carácter permanente. É nesta zona algarvia que a população encara a erosão costeira como um risco elevado, com cerca de 99% dos inquiridos a indicarem este dado.

E como vão ser estas praias em 2100?

O projecto Change traçou ainda cenários sobre os previsíveis impactos das alterações climáticas na costa portuguesa, nomeadamente o aumento do nível médio do mar, potenciado pelo aquecimento global.

Partindo de uma base comum, foram elaborados mapas de vulnerabilidade para três cenários: 2025, 2050 e 2100 – sendo este último o cenário mais gravoso. Considerando apenas o nível da água do mar, sem olhar a outros factores, como a interacção das marés, a erosão, a interacção das ondas com o fundo oceânico e outros factores antropogénicos, em cenários de inundação da orla costeira, a Vagueira, a Caparica e Quarteira poderão ter, em 2100, quotas de inundação de 4,1 metros. Para 2025, as quotas de inundação para a Vagueira e Caparica serão, respectivamente, de 2,5 e 2,9 metros. No caso da Quarteira, os valores são de 2,7 e 3,0 metros para 2025 e 2050.

Não existe “uma única chave para o resolver o problema”

Actualmente, mais de 80 entidades têm competências na gestão da orla costeira, com municípios e freguesias excluídos. Na linha de costa vivem hoje populações muito diversificadas e unidas por um problema comum: a cada vez maior vulnerabilidade dos lugares costeiros onde instalaram as suas casas, investimentos e actividades.

Soluções? Segundo Luísa Schmidt, não existe “uma única chave para resolver o problema”. As soluções para o litoral lusitano têm estado bloqueadas, tanto pelo complexo sistema de gestão jurídico-político como pelas turbulências das dinâmicas sociais de ocupação. A importância dos valores económicos, principalmente do sector imobiliário, tem também dificultado a aplicação das soluções. A sobreposição de planos de várias escalas ao longo do tempo e durante ciclos legislativos curtos tem dificultado a integração de políticas e estratégias de longo prazo, bem como a definição de prioridades.

Foto:  frestivo / Creative Commons





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